Quando andamos pela rua e vemos aqueles cartazes “trago a pessoa amada em três dias”, sempre nos colocamos no lugar na pessoa que traz: “hmm, quem eu mandaria trazer?” Mas eu sempre me coloco no lugar da pessoa trazida: “imagina que horror eu estar em casa de boa e, de repente, começar a sentir um desejo repentino, uma necessidade irreprimível por uma pessoa que já era página virada na minha vida?”
(O tema do Curso das Prisões para o mês de agosto é a Prisão Monogamia. Nossa aula acontece na quinta, 28 de setembro, sempre às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Compre aqui.)
O lugar comum da nossa sociedade é que as pessoas não-monogâmicas são sedentas por sexo, não se saciam com uma pessoa só, precisam de mais, mAIS, MAIS! E, de fato, essas pessoas existem. Para elas, a não-monogamia é uma maneira de resolverem ao mesmo tempo nossa necessidade humana compartilhada por conexão humana e sua necessidade individual por sexo. E tudo bem.
Mas a não-monogamia também é um porto seguro para pessoas que precisam de menos sexo.
Eu, por exemplo, durante muito tempo achei que tinha uma baixíssima libido. Certamente, bem mais baixa do que os homens a minha volta diziam ter. Hoje, porém, depois de considerar o quanto os homens se vêem socialmente obrigados a se afirmarem garanhões, concluí que não tenho como saber. Aliás, o que seria uma libido normal? Existiria um número mágico?
Mas o fato é que, na minha vida, relacionamentos românticos, gostosos, cúmplices, compromissados, sempre foram muito mais importantes do que sexo. Então, em muitas e muitas ocasiões, o sexo foi muito mais algo que fazia para manter esses relacionamentos do que um fim em si. É como se para deixar minha namorada feliz e satisfeita eu tivesse que comer pizza com ela todo dia. Eu adoro pizza, e adoro comer pizza com ela, mas teria comido tanta pizza se não fosse essa obrigatoriedade? Certamente não.
A regra monogâmica de “você só pode transar com uma única pessoa” é por definição limitante, mas a regra “a outra pessoa só pode transar com você” me parece ainda mais opressora, angustiosa até:
— Benhê! Estou saindo do escritório, vai preparando o jantar porque vou chegar morta de fome!
— Mas, amor, passei o dia escrevendo, estou muito cansado. Você não pode comer alguma coisa pela rua? Passar num restaurante?
— Não! Você sabe que só posso comer da sua comida! Se não quiser cozinhar, vou dormir com fome. E vou continuar passando fome até você querer cozinhar pra mim de novo!
— Mas... mas... Tem um árabe aí na esquina do seu trabalho. Você adorava esse árabe. Por favor, resolve sua fome no árabe. Só hoje. Estou exausto.
— Ai, benhê, depois que provei da sua comida, não consigo nem sentir vontade de comer nenhuma outra. Tem que ser a sua ou é a fome!
Para a maioria das pessoas, esse diálogo parece perfeitamente comum, talvez até ideal, algo romântico, um sonho. Para mim, ele soa obsessivo e doentio. Fico cansado só de imaginar uma pessoa que toda vez que quiser sexo tem que ser comigo. Só poder transar com uma única pessoa é ruim, mas ser o único supridor de sexo de outra é infinitamente pior.
Quantas das pessoas me lendo, especialmente as mulheres, já fizeram sexo contra a vontade, inclusive com pessoas que realmente amavam e desejavam, só por causa das obrigatoriedades sexuais monogâmicas?
A não-monogamia também serve para nos libertar desse peso.
Sexo não é um jogo de soma zero
Se estou longe e a pessoa-com-quem-estou transa com alguém… por que isso é um problema? Se esse tal alguém foi à minha casa e comeu uma maçã, eu de fato fiquei com uma maçã a menos. Se transou com a pessoa-com-quem-estou… fiquei com menos o quê? Sexo não é um jogo de soma zero: essa transa a mais para a pessoa-que-está-comigo não significou uma transa a menos para mim. (E, mesmo se significasse uma a menos, assim como a maçã, tem mais de onde saiu essa.) Por que seria uma terrível traição a pessoa-que-está-comigo passar a tarde transando com alguém mas não, digamos, jogando tênis ou vendo tevê ou cozinhando com essa mesma pessoa?
A melhor resposta é “porque havia um acordo de não fazer isso” e eu concordo plenamente que os acordos, desde que estabelecidos de forma livre e consensual, devem ser mantidos. Mas por que esse acordo? Por que a possibilidade de as pessoas-que-estão-conosco transarem com outras pessoas é um problema tão grande que é necessário um acordo específico para evitar que isso aconteça? Aliás, não só um acordo específico, mas todo um sistema de leis, investigações, punições?
A importância excessiva do sexo na monogamia
Uma objeção comum aos relacionamentos não-monogâmicos:
— Se a pessoa com quem estou puder sair com outras, então aumentam as chances de ela me largar.
Esse comentário é repetido com tanta frequência que ele claramente deve soar até autoevidente para muitas das pessoas leitoras. Para os meus ouvidos, porém, soa tristíssimo. Tenho vontade de abraçar essa pessoa e dizer:
— Você é menos pior do que se imagina, e a pessoa-com-quem-está é menos leviana do que você pensa.
Pois, para fazer esse comentário, uma pessoa precisa presumir duas coisas. Em primeiro lugar, que ela é pior e menos desejável do que a média da humanidade. Logo, se a pessoa-com-quem-está sair com outras, será provavelmente com gente melhor que ela. E, em segundo, que a pessoa-com-quem-está é leviana e superficial, pois seria capaz de abandonar o relacionamento (e toda sua cumplicidade conquistada e companheirismo compartilhado) somente por ter encontrado alguém melhor de cama – como se fosse o sexo a única cola a unir o casal.
Bons relacionamentos, cúmplices, companheiros, carinhosos, são muito difíceis de encontrar. E vão muito além do sexo. Não quero de modo algum atacar a monogamia (o raciocínio acima é perfeitamente válido) mas apenas mostrar que existem outras lógicas de relacionamento, outras maneiras de pensar o afeto, outros jeitos de encarar as mesmas questões amorosas.
A lógica monogâmica diz que não podia estar saudável um relacionamento que termina porque uma das pessoas transou fora – pois, se estivesse, não teria havido esse desejo sexual por uma terceira.
A lógica não-monogâmica, por sua vez, diz que não pode estar saudável um relacionamento que termina porque uma das pessoas transou fora – pois, se estivesse, não teria terminado por uma besteira dessas.
Na mídia, as pessoas não-monogâmicas são geralmente representadas como “libertinas insaciáveis que só se importam com sexo.” Mas, pelo contrário, são as leis e costumes das sociedades monogâmicas que colocam o sexo no centro dos relacionamentos, que legislam que um casamento pode ser anulado se não houver sexo, que consideram o sexo dito “impróprio” como justificativa válida para separar famílias e até mesmo atenuar homicídios – a famosa “legítima defesa da honra”.
Um relacionamento comprometido é um vasto mecanismo composto por histórias compartilhadas, planos futuros, famílias entreligadas, vivências comuns, etc. Entre tantas peças constitutivas do mecanismo, por que priorizar e quase sacralizar justamente o sexo?
A importância relativa do sexo na não-monogamia
Como toda atividade que envolve pessoas, o sexo pode ou não ser importante, dependendo da importância que nós, pessoas humanas, damos a ele. A importância não está no ato, mas em nós. Ir na padaria da esquina pode ser a experiência mais rotineira e desimportante do mundo (como o sexo pode ser rotineiro e desimportante) e também a mais linda e transcendental do mundo, como no dia em que conheci a pessoa-com-quem-estou na fila da padaria e isso mudou nossas vidas (assim como o sexo pode ser incrível e transcendental e mudar nossas vidas).
Ao atribuir ao sexo uma importância compulsória, o sistema monogâmico acaba estigmatizando tanto as pessoas que praticam relações de sexo mais casual, sem necessariamente envolvimentos amorosos ou sentimentais, quanto as que não sentem atração sexual e levam suas vidas em grande parte sem sexo, as hoje chamadas “assexuais”.
Pois se o sexo é algo importante e mágico por definição, se o sexo é o que define o companheirismo, o afeto, a cumplicidade, então essas pessoas, seus estilos de vida, seus relacionamentos, são todos de segundo escalão. É como se o sistema monogâmico tivesse arbitrariamente instituído uma quantidade ótima de sexo que cada pessoa deve fazer: quem faz mais é “vadia”, quem faz menos é “loser”, mas o número mágico em si nunca é revelado.
Afirmar que sexo não é importante por definição não é afirmar que o sexo não é possivelmente perigoso ou fatal. Dirigir também pode ser perigoso e fatal (assim como o sexo) e, por isso, precisamos de todo um aparato de segurança, como carteira de habilitação e cinto abdominal dianteiro (ou camisinha e testes de HIV), mas isso não quer dizer que dirigir seja “importante” – pelo menos, não do jeito que o sistema monogâmico vende que o sexo é “importante”.
Assim como afirmar que sexo não é importante por definição não quer dizer aprovar que as pessoas usem ou objetifiquem ou desrespeitem umas às outras durante o sexo. Não é necessário considerar uma atividade “importante” para agir de forma respeitosa com as pessoas que praticam essa atividade conosco. Toda atividade em que pessoas estejam envolvidas deve ser praticada com cuidado, com respeito, de forma consensual, reconhecendo a humanidade, os limites e a liberdade de escolha das outras pessoas que estão desenvolvendo essa atividade com você, seja abrir uma empresa, jogar vôlei ou fazer uma suruba.
Viver de forma plena a não-monogamia também significa reconhecer que todas as pessoas têm o direito de atribuir ao sexo a importância que desejarem, e que nada disso nos exime da obrigação de tratá-las com respeito.
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
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Obrigada, Alex
Fabuloso!