O sistema capitalista nos ensina que não se fala sobre salário.
Não é apenas uma regra de etiqueta, mas algo que nos é introjetado com muita força, quase um dogma moral.
Para a maioria de nós, revelar quanto ganhamos, ou perguntar quanto outras pessoas ganham, nos parece intolerável: seria uma terrível evasão de privacidade revelar esse número, e uma terrível invasão de privacidade perguntá-lo.
Já perdi a conta de quantas pessoas amigas já entrevistaram para vagas de emprego, ou foram sondadas para trabalhos free-lance, e o bendito, fatídico número ia sendo omitido e desconversado, a famosa revelação empurrada mais e mais pra frente, até que, finalmente, quando o número finalmente aparecia, sempre menor do que se esperava, a pobre pessoa elo-mais-fraco da corrente já tinha investido tanta coisa, feito tanta coisa, que já não era mais praticável recusar.
(Esse fenômeno cognitivo é chamado de "o custo irrecuperável". Por causa dele, nos dói muito mais perder dez reais do que ganhar cinquenta.)
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A última vez que isso aconteceu comigo foi até interessante, pois os malandros mudaram sutilmente a informação sonegada.
Uma importante pós-graduação privada me convidou para dar uma aula como professor convidado: pagavam mil reais e, dentro do tema do curso, eu poderia escolher o tópico. Me senti empolgado e lisonjeado. Recebi a coordenadora na minha casa, conversamos a tarde toda. No final, de repente, como quem não quer nada, veio a informação sonegada: a "aula" tinha duração de oito horas, das 9h às 18h, com uma hora de almoço.
Fiquei tão aturdido que, na hora, não falei nada. Aceitei. Depois, comecei a ficar mais e mais incomodado. Até que entrei em contato com ela e abri o jogo:
"Olha, quando topei dar a aula como professor-convidado por mil reais, presumi que era uma aula com duração de aula. Uma, duas, talvez até três horas. Mas oito horas é um curso completo. É um outro nível de trabalho. Então, não, muito obrigado, por esse valor, prefiro não."
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Lição básica de RH:
Se empresa diz que o "salário é competivivo" mas não diz qual é o salário, então, por definição, não é. Se fosse competivivo mesmo, estaria no título do anúncio, justamente para "competir" com os outros anúncios e atrair mais candidatos.
Na imprensa, se a manchete diz: "Cantora famosa bate com o carro", a única certeza que eu tenho é que não foi nenhuma cantora famosa. Se fosse, a manchete seria: "Madonna bate o carro".
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Pois bem. Nesses dias, criei o meu Apoia-se. Na primeira página, aparece o total arrecadado e o número de apoiadores.
A princípio, aquilo me incomodou. Como assim as pessoas vão saber quanto arrecadei? Quanto ganho por mês? Jesuis, essa informação não é, não deveria ser, confidencial, secreta?
Mas uma coisa que eu sempre penso é:
"E se eu estiver errado?"
E me perguntei:
"Oxe, por que essa reação tão extremada? Qual é exatamente o problema de abrir essa informação? Qual é o malefício que pode vir disso?"
E pensei e pensei, e não me ocorreu nada. Nenhuma boa razão para essa informação ser secreta. Na verdade, todas as razões que me vieram à cabeça foram na direção oposta.
Afinal, se sou um artista que é patrocinado diretamente pelas pessoas que lhe seguem, e que criou um Apoia-se para ser mais disponível a esse público....
Não é justo que essa comunidade que me sustenta saiba o quanto ela me dá para esse sustento?
Será que não pode estimular mais artistas a escaparem das malhas do sistema capitalista e a arriscarem uma vida mais independente?
Será que não pode estimular mais pessoas a se tornarem mecenas e apoiadoras das artistas que curtem, que leem, que lhes transformaram a vida?
Porque, sim, temos, introjetada em nós, essa regra pétrea, esse preceito moral de não revelar quanto ganhamos...
Mas quem é que se beneficia disso?
Somos nós?
Não. São os patrões.
Estudo atrás de estudo comprova que, quando as funcionárias abrem quanto ganham umas para as outras... todo mundo acaba ganhando mais.
Então, é óbvio que os patrões não vão querer as funcionárias conversando sobre suas remunerações, não é?
Quando as funcionárias se unem, elas sempre ganham e o patrão, sempre perde.
Alguns links:
Salário a combinar: por que não revelar o salário nos processos seletivos?
Transparência salarial: por que divulgar salário no recrutamento
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Em suma: fiquei incomodado de abrir quanto ganho, pensei de onde vinha esse incômodo, concluí que era do sistema capitalista.
Então, decido que não. Que se for pra errar, prefiro errar no sentido oposto. Prefiro errar em prol de abrir mais, revelar mais, sonegar menos informações, especialmente às pessoas que têm a gentileza e o carinho... de me sustentar.
O valor fica.
(Pra saber quanto já ganhei, espia aqui.)
E vocês? O que acham?
nossa, muito bom ler esse texto. tenho muita dificuldade como trabalhadora de reconhecer meu proprio valor. sigo refletindo!
ótimo assunto, rende muito! saber o custo de hora do noss trabalho, o valor e como cobrar são algumas perguntas urgentes pra gente se apropriar melhor das nossas capacidades.