"Minha vida teria sido outra. Bastava ter dito não."
Todo mundo sabe as dificuldades de ser uma pessoa diferentona. Mas quais são as dificuldades de não ser? (Reflexões sobre a Prisão Respeito.)
A Autoridade (Estado, família, escola, etc) sempre vai querer decidir o que é melhor para nós. Mas temos sim a liberdade de dispor de nossas vidas como quisermos.
A opção é entre viver a vida que escolheram pra nós, e pagar o preço, ou viver nossa vida nos nossos próprios termos, e pagar o preço.
A ilusão que nos imobiliza é enxergarmos muito claramente o preço que pagamos pela segunda, mas naturalizarmos o preço da primeira.
Se já parto do princípio que ficar horas em deslocamento para passar quase todo meu dia num cubículo realizando objetivos que não são meus em troca de um dinheiro que mal dá para eu sobreviver em uma vida na qual nunca sobra tempo para os meus projetos é a “vida normal”, então todas as dificuldades de qualquer modelo alternativo a esse, ou seja, de uma “vida anormal”, serão vistas como irrazoáveis e intoleráveis.
Todo mundo sabe quais são as dificuldades da vida de artista: ninguém fala das dificuldades de vida de não-artista.
Naturalmente, as opções não são só “se escravizar num escritório” ou “ser artista”. Cabe a cada uma de nós explorar as infinitas possibilidades que nos estão abertas entre ambos extremos.
(A próxima aula do Curso das Prisões, Prisão Respeito, acontece na quarta, 28 de junho de 2023, às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
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"Minha vida toda teria sido outra. Bastava ter dito não."
Um amigo, contando sobre suas escolhas profissionais:
"Eu queria fazer Artes Cênicas, mas meu pai, que nunca me obrigou a nada, ficou insistindo pra eu fazer Direito, que Direito dava dinheiro, que Direito era mais seguro, que com Direito eu poderia fazer muitas coisas, e falou e falou, argumentou e insistiu, sem parar."
E o que você fez?, perguntei.
"Cedi. Fiz Direito."
É uma tática, falei. Ele encheu seu saco e você, pra se livrar da chateação, cedeu e fez o que ele quis. Funcionou?
"Bem, eu queria fazer penal, mas meu pai, que é super compreensivo e bem intencionado, ficou insistindo pra eu fazer Direito Tributário, porque Tributário é que dava dinheiro, porque Penal tem que ficar lidando com bandidos, que Tributário todas as empresas precisam, que ele tinha amigos nessa área, etc etc, falou e falou, argumentou e insistiu, sem parar."
E o que você fez?, perguntei.
"Cedi. Fiz Tributário."
É uma tática, falei. Ele encheu seu saco e você, pra se livrar da chateação, cedeu e fez o que ele quis. Funcionou?
"Bem, eu queria trabalhar no Tributário de uma ONG, ajudar o mundo e coisa e tal, mas meu pai, que sempre só quer o meu bem e me ajuda muito, ficou insistindo para eu trabalhar no escritório do amigo dele, que era muito maior e mais sólido, onde eu teria um plano de carreira, onde eu prestaria serviços para as maiores e mais lucrativas multinacionais do mundo, etc etc, falou e falou, argumentou e insistiu, sem parar."
E o que você fez?, perguntei.
"Bem, aí eu rodei a baiana, né? Eu disse, porra, pai, já tenho 30 anos, sou formado em Direito, vou trabalhar onde eu quiser, caralho!"
E aí? Ele te deserdou? Deu na sua cara? Cometeu suicídio de tanto desgosto?
"Não. Ele falou, tá bem, meu filho, claro, é a sua vida."
Ficamos um pouquinho em silêncio e ele mesmo continuou:
"E eu pensei: putz, se tivesse falado isso dois anos antes, teria feito Penal e não Tributário. Se tivesse falado isso cinco anos antes, teria feito teatro e não Direito. Se eu soubesse que podia dizer não, nunca teria terminado o namoro com a Paulinha, nunca teria me forçado a ir à igreja, nada disso."
E completou:
"Minha vida toda teria sido outra. Bastava ter dito não."
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Respeito é uma via de mão dupla
Quando escrevo sobre obediência, muitas pessoas respondem com uma variação de:
"Eu obedeço meu pai/meu professor/minha esposa/etc... por respeito!"
Em algumas hierarquias, já entramos voluntariamente e de olhos bem abertos: ao aceitar o emprego de gerente do Banco do Brasil, ou me alistar tenente da Marinha, sabemos que teremos que obedecer ao vice-presidente e ao vice-almirante, etc.
Além disso, reconhecendo ou não o Contrato Social, obedecemos ao policial militar porque ele de fato tem o poder de nos matar ou nos prender.
Fora dessas situações bem específicas, ninguém tem o direito de mandar em nós.
Apesar disso, todo dia, o dia todo, é surpreendente a quantidade de ordens, implícitas e explícitas, que recebemos de nossas mães e de nossos maridos, dos segurança de shopping e das colegas de trabalho.
Então, quando alguém me dá uma ordem, eu até poderia "obedecer por respeito". Mas uma pessoa que me dá uma ordem que ela não tem direito de dar é uma pessoa que não me respeita. E não obedeço quem não me respeita.
Também sempre escuto variações da seguinte história:
"Não pude fazer faculdade de Letras porque meu pai me obrigou a fazer Engenharia".
Nesse caso, existem duas alternativas:
Ou o pai aceita as escolhas do filho e fica feliz por ele, seja cursando Artes Cênicas ou Direito;
Ou o pai não respeita as escolhas do filho e só lhe amará e aceitará se fizer o que ele quer.
Nesse último caso, como o pai não respeita o filho, eu diria que o filho está automaticamente liberado de respeitar o pai.
Afinal, respeito é uma via de mão dupla.
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É mais fácil pedir perdão do que permissão
Uma velha parábola. Da época em que fumar ainda era socialmente aceitável.
Sala de espera. O homem puxa um cigarro e, antes de acender, pergunta à recepcionista:
“Posso fumar aqui?”
“Não, senhor.”
Ele está guardando o maço quando percebe todas aquelas guimbas a sua volta, fumadas até o fim. E questiona:
“E essas guimbas? De quem são?”
E a recepcionista, imperturbável:
“Ah, sim, são das pessoas que não perguntaram.”
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Não temos como calar o mundo
Por todos os lados, vejo pessoas mudando suas vidas, abdicando de seus sonhos, se virando ao avesso, só porque não aguentam mais os constantes comentários, críticas, questionamentos de parentes, colegas, amigas.
Mas talvez exista uma maneira diferente de encarar a questão.
A Autoridade, e todos os seus representantes, sempre tentarão determinar nossa conduta, mandar em nossa vida, julgar nossas escolhas. Não há nada que possamos fazer para calar suas vozes.
Assim como o lado bom da publicidade é que o capitalismo ainda não pode nos obrigar a consumir, esses comentários invasivos e violentos significam que estamos de fato vivendo a vida que gostaríamos de viver.
Quando o pai do ator de teatro infantil menciona, pela centésima vez, que o filho largou o curso de Direito (de Direito!!) para fazer teatro infantil (logo teatro infantil!)….
O ator pode escolher ouvir aquilo como uma crítica, como uma intrusão, como uma violência (e não estaria errado, claro)…
Mas também pode escolher ouvir aquilo como uma confirmação, uma afirmação do fato de que ele fez suas próprias escolhas e que está vivendo sua vida nos seus próprios termos. Ele pode escolher ouvir isso e pensar, , satisfeito e aliviado:
"Sim, estou ouvindo isso, mas hoje sou ator de teatro infantil como eu sempre quis. Pior seria que tivesse feito Direito, como papai mandou, e hoje estaria ouvindo igual, por alguma outra coisa qualquer, por trabalhar no escritório errado ou por ter perdido uma causa, mas nunca teria realizado meu sonho de ser ator de teatro infantil."
Como não existe a possibilidade de calarmos o mundo, nossa melhor hipótese possível é fazermos o que quisermos de nossas vidas e que o Mundo fale o que quiser.
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em junho, estamos conversando sobre a Prisão Respeito. Nossa aula expositiva acontece na quarta, 28 de junho de 2023. Antes disso, estamos debatendo sobre Patriotismo e Respeito nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp.
Sim, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?
Lindo texto. Reconfortante e direto. Obrigado por escrevê-lo.