Os Lusíadas, de Camões, é um resumo da literatura ocidental
Algumas notas de leitura sobre o poema fundador da nossa língua
Os Lusíadas, esse poema de batalhas medievais e de tempestades em alto-mar, de deuses pagãos e de cruzadas cristãs, essa etnografia do Oriente e celebração do amor físico, é uma verdadeira ponte literária, unindo a poesia épica grecorromana pagã ao novo espírito humanista e nacionalista que surgia no Renascimento, mas também trazendo consigo toda a religiosidade cristã e as virtudes cavalheirescas medievais.
Se o Ocidente é a união da herança grecorromana com o Cristianismo, poucas obras a representam tão perfeitamente quanto Os Lusíadas.
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No curso Grande Conversa Fundadora, estamos estudando as obras que inventaram as línguas literárias modernas. Cada aula é dedicada a uma tradição literária e a próxima aula, na quarta, 27 de julho de 2022, será sobre a nossa língua, a nossa tradição literária, a nossa herança lusófona, a nossa obra fundadora: Os Lusíadas. Abaixo, algumas notas de leitura.
(Só hoje e amanhã, até 20 de julho de 2022, estou vendendo todos os meus cursos pela metade do preço. A Grande Conversa Fundadora, por exemplo, está saindo por R$199. Por que você não aproveita pra comprar?)
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As grandes navegações e o descobrimento do Outro
Primeiro, o contexto histórico. Nessa aula aberta, do curso História do Mundo Enquanto Fofoca, eu explico um pouco da enormidade do impacto cultural que tiveram as grandes navegações ibéricas.
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Um poeta marginal
Camões passou tantas dificuldades tentando voltar pra casa que um crítico disse que Os Lusíadas é como se a Odisséia tivesse sido escrita por Ulisses. O poema contem vários lamentos de Camões, por exemplo (VII, 82):
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,
Que assi sabem prezar, com tais favores,
A quem os faz, cantando, gloriosos!
Que exemplos a futuros escritores,
Pera espertar engenhos curiosos,
Pera porem as cousas em memória
Que merecerem ter eterna glória!
No final (X, 145-6), ele parece já estar desistindo de cantar a pátria:
Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dũa austera, apagada e vil tristeza
E não sei por que influxo de Destino
Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os ânimos levanta de contino
A ter pera trabalhos ledo o rosto.
Essa decepção do poeta com a pátria, mais interessada em comprar e vender especiarias do que em cantar suas glórias e celebrar seu espírito, questiona o próprio objetivo da epopéia — que seria, naturalmente, cantar essa nação que o poeta aparentemente considera tão ingrata, tão mesquinha. Assim como o Velho do Restelo, esse lamento é outra pequena rachadura na fachada do poema, outra fratura onde o poema é jogado contra si mesmo.
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Camões, poeta renascentista e humanista
Na Idade Média, a literatura era em grande parte alegórica. (Gil Vicente, culminação do medieval, é sempre alegórico.) No Renascimento, redescobre-se a mitologia greco-romana. Para nós, essa empolgação com o antigo pode parecer empolada, artificial, pedante. Mas, nesse momento histórico, pelo contrário, ela é uma busca pelo novo, por maior abertura, por novos horizontes. A Idade Média se interessava pouco pela natureza, pelo mundo natural, laico e secular: seu interesse era o homem e sua alma. Então, a redescoberta da antiguidade também é uma redescoberta da natureza, dos bosques, dos rios, dos faunos, das ninfas.
Camões é o grande cantor do humanismo renascentista português, essa grande celebração dos mundos novos da literatura greco-romana recém-redescoberta e das novas terras além-mar, com todas as possibilidades que trazem.
É importante entender porque o poema é como ele é: em outras palavras, como pode ser tão considerado, tão canônico, um poema que nos parece tão palavroso, tão difícil de ler.
Em pleno renascimento, em plena renovação e revaloração dos valores estéticos da antiguidade, um dos critérios para um grande poema era não só apresentar o máximo domínio sobre os recursos formais da língua — uma língua que, vamos lembrar, ainda estava em fluxo, ainda era muito nova, mal acabara de publicar sua primeira gramática — mas também dominar plenamente toda aquela cultura clássica emergente e provar esse domínio com o máximo de referências com o maior brevidade.
Era uma união instável entre tradição e criatividade: o melhor poeta era aquele que falasse as coisas da maneira menos previsível, mas dentro de um modo plenamente reconhecível dentro da tradição poética clássica.
Para os renascentistas, os antigos tinham atingido os cânones ideais, as formas ideais, os gêneros ideais. Então, bom escritor era quem melhor os imitasse.
Não é difícil de ver que Camões foi muito bem sucedido nessa tarefa.
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O horror ao mar
Hoje em dia, é mais fácil associarmos o mar à lazer do que a qualquer outra coisa. Mar é praia, é verão, é feriado. Mas esse modo de ver o mar não tem nem cem anos. Quando Dom João VI veio ao Brasil e um médico lhe receitou banhos de mar, isso foi visto como extremamente excêntrico. Do século XIX para trás, o mar podia ser muitas coisas, como o lugar onde se jogava o esgoto, uma autoestrada para chegar mais rápido nos lugares, um esconderijo de terríveis monstros, mas raramente estava associado a coisas boas ou prazeirosas. Ao se lançar ao mar, os portugueses estavam enfrentando alguns dos maiores medos da humanidade.
Em Os Lusíadas, é o gigante Adamastor (V, 37-61) que personifica não só o Cabo das Tormentas (depois, da Boa Esperança) como também todos os terrores do mar, terrores esses que os portugueses são os primeiros a vencer (42-44):
«Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do húmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pola terra
Que inda hás-de sojugar com dura guerra.
«Sabe que quantas naus esta viagem
Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem,
Com ventos e tormentas desmedidas;
E da primeira armada que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei de improviso tal castigo
Que seja mor o dano que o perigo!
«Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança;
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!
E, falando em mar, a estrofe abaixo (VI, 8), onde Baco visita Netuno em sua caverna submarina, é famosa por sua simulação verbal das ondas do mar. Percebam o som das palavras, a alternância das terminações unda e undo, e dos sons de o e u.
No mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se esconde,
Lá donde as ondas saem furibundas
Quando às iras do vento o mar responde,
Neptuno mora e moram as jocundas
Nereidas e outros Deuses do mar, onde
As águas campo deixam às cidades
Que habitam estas húmidas Deidades.
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Um épico da curiosidade
Um dos temas mais importantes, e mais representativos, de Os Lusíadas enquanto épico renascentista, é sua curiosidade e espante perante a novidade do mundo.
Em primeiro lugar, é uma curiosidade sociopolítica diante do novos homens, novos povos, novas sociedades. Quando a esquadra ancora em Moçambique, e os locais vêm em sua direção em canoas, as primeiras questões dos portugueses são (I, 45):
– «Que gente será esta? » (em si diziam)
«Que costumes, que Lei, que Rei teriam?»
O poeta tudo observa, tudo anota, tudo ressalta. Sim, o poema exalta a nacionalidade portuguesa, mas também faz uma etnografia poética dos povos que encontra. (Camões foi o primeiro grande artista ocidental a visitar o Oriente e a representá-lo, interpretá-lo, interpelá-lo em uma grande obra literária.)
Mas a obra também registra uma curiosidade pelo mundo natural, uma curiosidade que poderíamos dizer quase científica, ou proto-científica, uma vontade, uma disposição, um talento em descrever novos fenômenos naturais que o autor sabia estar poetizando pela primeira vez.
Entre as estrofes 16 e 23 do Canto V, Camões descreve uma série de fenômenos marítimos que os portugueses, como um dos primeiros marinheiros de alt0-mar, talvez estivessem vendo pela primeira vez, como as trombas d’água e o fogo de santelmo. Reparem como a linguagem está em fluxo, tentando registrar fielmente, mas também poetizar com novas imagens, sempre enfatizando ser um relato em primeira mão de um marinheiro experiente (V, 18-19):
«Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,
Ver as nuvens, do mar com largo cano,
Sorver as altas águas do Oceano.
«Eu o vi certamente (e não presumo
Que a vista me enganava): levantar-se
No ar um vaporzinho e sutil fumo
E, do vento trazido, rodear-se;
De aqui levado um cano ao Pólo sumo
Se via, tão delgado, que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia;
Da matéria das nuvens parecia.
Por fim, falando de novo na primeira pessoa, Camões encerra esse trecho enfatizando sua superioridade aos filósofos de poltrona, que presumem tentar entender o mundo, mas nunca viram as maravilhas que ele viu (V, 23):
«Se os antigos Filósofos, que andaram
Tantas terras, por ver segredos delas,
As maravilhas que eu passei, passaram,
A tão diversos ventos dando as velas,
Que grandes escrituras que deixaram!
Que influïção de sinos e de estrelas!
Que estranhezas, que grandes qualidades!
E tudo, sem mentir, puras verdades.
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A expansão dos horizontes
Para a elite culta da Europa, foi impressionante, impactante, revolucionário somente a quantidade de conhecimento que as viagens portuguesas trouxeram ao continente. Até então, conhecia-se somente as bordas do Mediterrâneo e quase nada do Atlântico norte. O resto era da esfera do mito. Nesse ponto, um dos aspectos científicos mais impressionantes das viagens portugueses foi justamente começar a criar essa distinção entre mito e realidade, para nós tão clara, mas naquela época nem tanto.
Essa expansão de horizontes dá o tom de todo o poema, e já está presente na dedicatória (I, 6):
E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade
Para um europeu medieval, a cristandade é simplesmente tudo. Ela é a água para o peixe, só não completamente invisível graças aos mouros ameaçando-a pelas bordas. Para Camões, por outro lado, soldado que passou décadas viajando e guerreando pela Ásia, no poema que ele salvou à nado de um naufrágio na foz do rio Mekong, a cristandade é “pequena”. Parece pouco, mas é uma mudança revolucionária, um sintoma de como os portugueses tinham efetivamente expandido os horizontes da Europa.
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Religião versus comércio
Em Portugal, a religião cristã era um dos aspectos mais fundamentais da nacionalidade e da identidade étnica. Todas as pessoas eram, antes de tudo, cristãs. (Não é por acaso que Portugal foi o único país do ocidente onde os dias da semana cristãos foram utilizados: segunda, terça, etc. Em todos os outros países, houve a mesma tentativa mas caíram em desuso.)
A aventura expansionista de Portugal era religiosa por definição, para combater os mouros e expandir a fé cristã, e a pessoa leitora de Os Lusíadas poderia ser induzida a pensar ser essa a única razão. Naturalmente, como sabemos, uma razão também importante, e geradora dos lucros que sustentavam as esquadras, era o comércio — mencionado uma única vez no poema, muito rapidamente, quando Vasco da Gama diz ao Samorim o que o rei de Portugal quer dele (VII, 62):
«E se queres, com pactos e lianças
De paz e de amizade, sacra e nua,
Comércio consentir das abondanças
Das fazendas da terra sua e tua,
Por que creçam as rendas e abastanças
(Por quem a gente mais trabalha e sua)
De vossos Reinos, será certamente
De ti proveito, e dele glória ingente.
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A falta que faz um bom poeta
Os Lusíadas é a epopéia do patriotismo e do amor, do catolicismo e do mar, do renascentismo e do comércio. Em Camões, se juntam a exaltação da memória dos feitos de armas; a importância global de Portugal no XVI; o recente revalorização das formas poéticas antigas, entre elas, a épica; a percepção de que os portugueses no Oriente estavam realizando feitos inéditos em toda a história humana; o valor moral e cristão do projeto português de espalhar a fé cristã e frear o domínio muçulmano na Ásia; a ansiedade perante um possível esquecimento desses feitos, e uma necessidade de transformá-los em monumento perene; uma ambição e talento poéticos gigantescos; para formar assim Os Lusíadas.
O poema nos apresenta a missão de Portugal e sua história: cruzadas cristãs contra os infiéis, Reconquista da Península Ibérica aos mouros, conquista e ocupação dos territórios muçulmanos no norte da África e, por fim, expansão cristã no além-mar, com a guerra e conquista e conversão dos pagãos. Esse era o plano, essa era a missão.
Um dos tema de Os Lusíadas é que as façanhas dos portugueses, que Camões se propõe a cantar, e que afirma serem maiores e mais impressionantes que as dos gregos e romanos.
Queria aqui propor, humildemente, que, independentemente do chauvinismo português, essa afirmação é factualmente verdade. O grande feito da Ilíada é tomar uma cidade; da Odisséia, voltar pra casa; da Eneida, fundar uma cidade. Já os portugueses, em menos de um século, abrem os horizontes de toda Europa, alcançam o Oriente por mar, fundam o primeiro império naval. Não é preciso considerar esses feitos positivos para julgá-los impressionantes.
De fato, Camões afirma isso também: que esses feitos relativamente menores da antiguidade só ficaram famosos por terem tido grandes cantores. (Em outras palavras, Homero é maior que a Guerra de Troia.) Conversamente, os feitos de Portugal não eram tão reconhecidos por falta de um grande poeta (V, 97-98):
Enfim, não houve forte Capitão
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.
Sem vergonha o não digo: que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque quem não sabe arte, não na estima.
Por isso, e não por falta de natura,
Não há também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Eneias nem Aquiles feros.
Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez e tão austeros,
Tão rudos e de engenho tão remisso,
Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso.
Camões, sem nenhuma humildade mas com muito talento, se oferece para ser esse poeta (X, 155):
Pera servir-vos, braço às armas feito,
Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Antes disso, porém, com menos humildade ainda, Camões desglorifica o próprio herói — provando assim que o poema era sobre tudo, menos Vasco da Gama (V, 99-100):
Às Musas agardeça o nosso Gama
O muito amor da pátria, que as obriga
A dar aos seus, na lira, nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga;
Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga
Nem as filhas do Tejo, que deixassem
As telas d’ ouro fino e que o cantassem.
Porque o amor fraterno e puro gosto
De dar a todo o Lusitano feito
Seu louvor, é somente o pros[s]uposto
Das Tágides gentis, e seu respeito.
Porém não deixe, enfim, de ter disposto
Ninguém a grandes obras sempre o peito:
Que, por esta ou por outra qualquer via,
Não perderá seu preço e sua valia.
O herói do poema não é a voz poética de Camões, não é nem mesmo a figura relativamente apagada de Vasco da Gama, mas todo o povo português. Daí o poema se chamar Os Lusíadas e não O Gama ou Vasqueida.
Camões sabe que o seu discurso de glorificação poética, apesar de baseado em feitos históricos reais, é um trabalho de imaginação, de ficção. Na verdade, ambos os registros, o poético e o histórico, vivem em simbiose: a função de ambos é a criação dos fatos, que não existiriam, que cairiam no vazio e no esquecimento, se não fossem registrados, se não recebessem forma escrita, nas mãos de poeta como Camões. Ou seja, Camões aqui afirma que ele, como poeta, por ser poeta, é mais importante que Vasco da Gama, por ser herói. Sem poetas, não existem heróis.
Os Lusiadas são uma epopéia dos tempos modernos não apenas por glorificarem o progresso náutico, técnico e cientifico; por exaltar o contato entre Ocidente e Oriente, por cantar a ação civilizadora do capitalismo mercantilista, mas, sobretudo, por problematizar o próprio objetivo, o próprio objeto, da história e da épica; por mostrar que ambos não passam de discursos que dão continuidade aos feitos dos homens.
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O anti-islamismo de Camões
Para entender o contexto do anti-islamismo de Camões, é preciso entender que a dinâmica europeus-muçulmanos era radicalmente inversa no século XVI, especialmente na Península Ibérica.
Quando Camões escreve, o último reino muçulmano na Península caíra menos de um século antes, depois de 700 anos de domínio. Portugal foi conquistada dos muçulmanos palmo a palmo, até chegar nas fronteiras atuais. Se tinham sido expulsos da península, continuavam ali, no norte da África, do outro lado do estreito de Gibraltar, uma ameaça sempre possível. Além disso, continuavam ameaçando a Europa tanto pelo leste quanto pelo mar mediterrâneo. O império turco, agora dono de Constantinopla, parecia cada vez mais poderoso. (A iniciativa de seu avanço só será quebrada em 1570, na decisiva batalha naval de Lepanto, onde combateu Cervantes.)
Havia até, ao contrário de hoje, um certo sentido de inferioridade de europeus e, em especial, ibéricos, em relação aos muçulmanos. Durante a Reconquista, os reinos muçulmanos, mesmo quando na defensiva militar, eram sempre mais ricos e refinados que os reinos cristãos — que eram pobres e guerreiros.
Então, quando Camões dá vazão ao seu anti-islamismo, ele não fala de cima pra baixo, digamos, como um europeu rico e poderoso do século XXI contra uma identidade subalterna e colonial, pobre e enfraquecida, mas como um guerreiro falando de igual para igual contra seus maiores inimigos, contra quem lutou a vida inteira, a história inteira, com quem ainda está lutando, e com quem provavelmente imagina que lutará para sempre.
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Deuses pagãos em um épico cristão
Se Camões e Portugal eram tão cristãos, se o objetivo do poema era cantar as proezas dos portugueses expandindo o cristianismo, então como pode o texto depender tanto de deuses gregos pagãos?
Na Argentina do século XIX, como vimos na nona aula da Introdução à Grande Conversa, o gaúcho, que era um elemento popular, violento e incômodo, acaba sendo idealizado e transformado em mito nacional justamente pela intelectualidade burguesa que o combateu… mas só quando ele deixa de existir como agente político e como ameaça. (No Brasil, fizemos a mesma coisa com o Índio durante o indianismo. Esse foi o tema da primeira aula da Grande Conversa Brasileira.)
Podemos ver o mesmo processo em Os Lusíadas. A religiosidade pagã grega, que tinha sido uma inimiga ferrenha nos primeiros séculos do cristianismo, pode ser recuperada agora, depois de um milênio de soberania cristã inconteste no ocidente, por seus valores estéticos e literários, mas já completamente esvaziada de conteúdo religioso. Mais tarde, a partir do século XVIII, épocas mais racionalistas, já começamos a ouvir o comentário que algumas pessoas hoje ainda fazem: “Mas como pode usar deuses pagãos em um empreendimento para avançar a fé cristã? Não faz sentido. É uma incongruência autodestruidora”, etc.
Nesse momento histórico, entretanto, pós-medieval e pré-iluminista, de recuperação e revaloração da herança clássica, essa mistura não só não é incongruente como é definidora do espírito ocidental, essa síntese instável de herança clássica com religiosidade cristã.
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Quem são os deuses em um poema monoteísta
Havia uma teoria, popular entre os apologistas cristãos primitivos, que os deuses pagãos eram originalmente pessoas normais, que teriam sido “premiadas” por suas boas ações. Essa visão é mencionada no poema, no canto IX, estrofe 91:
Não eram senão prémios que reparte,
Por feitos imortais e soberanos,
O mundo cos varões que esforço e arte
Divinos os fizeram, sendo humanos.
Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Eneas e Quirino e os dous Tebanos,
Ceres, Palas e Juno com Diana,
Todos foram de fraca carne humana.
Uma outra teoria comum é que os deuses pagãos representariam, ou seriam, anjos, criados por Deus para gerir e observar os assuntos humanos. (Nesse caso, Júpiter simbolizaria a Divina Providência.)
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Venus lusotropical
Em Os Lusíadas, os deuses que estão do lado dos portugueses são Vênus e Marte, amor e guerra. A mensagem parece ser que esses são os dois pontos fortes de Portugal: amar e guerrear. O amor e a guerra como atividades humanas centrais, simbolizando a fusão da poesia lírica com a épica. (Se lembrarmos que, na mitologia, Vênus e Marte têm uma filha, chamada Harmonia, talvez seja esse o grande tema de Os Lusíadas: a Harmonia.)
No século XX, Gilberto Freyre, primeiro em Casa Grande & Senzala, e, depois, ao criar o Lusotropicalismo, parece defender uma tese semelhante: que os portugueses, dominados por Eros, simplesmente transavam com tudo o que viam pela frente, foram os mais sexuais e miscigenadores de todos os povos que colonizaram.
Venus, então, protege os portugueses por saber que não havia povo com mais “amor para dar”, por saber que seria idolatrada e glorificada onde quer que eles chegassem (I, 34):
Estas causas moviam Citereia,
E mais, porque das Parcas claro entende
Que há-de ser celebrada a clara Deia
Onde a gente belígera se estende.
Assi que, um, pela infâmia que arreceia,
E o outro, pelas honras que pretende,
Debatem, e na perfia permanecem;
A qualquer seus amigos favorecem.
Por fim, o poema também aproveita a “personagem” de Vênus para fazer uma ode à sensualidade e ao corpo feminino que, de acordo com a moralidade da época, só seria possível por essa ser uma deusa além da moralidade (II, 36-37):
Os crespos fios d’ ouro se esparziam
Pelo colo que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava e não se via;
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o Minino as almas acendia.
Polas lisas colũnas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.
Cum delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha é natural reparo;
Porém nem tudo esconde nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, pera que o desejo acenda e dobre,
Lhe põe diante aquele objecto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.
Igualmente, no episódio da Ilha dos Amores (IX, 18-92), os ventos humanizantes do renascimento já permitem que sejam descritas cenas de amor e de sexo — mas apenas porque as mulheres não eram mulheres, mas sim ninfas mitológicas. Apenas no renascimento seria possível simbolizar o prêmio dos portugueses como sexo com deusas.
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Em um próximo texto, vou falar especificamente sobre o Velho do Restelo.
Vem fazer o curso com a gente? A aula sobre Camões acontece na quarta, 27 de julho.
Um beijo do Alex Castro
Que bonito ! Obrigado pela oportunidade de tb historiar.