(Sempre quero saber a opinião de vocês. Para falar comigo, basta responder esse email.)
Muita gente me pergunta o que leio, como leio, quão rápido leio, etc.
Para mim, a leitura é, antes de tudo, um enorme prazer, mas, também, fundamentalmente, um grande diálogo: quem decide qual será meu próximo livro é sempre o livro anterior. Uma leitura vai naturalmente levando à outra, concordando ou discordando, complementando ou subvertendo.
Em meus cursos, tanto no passado (Introdução à Grande Conversa) e no atual (A Grande Conversa Brasileira, ambos ainda à venda), fico espantado em como as pessoas chegam ao ato da leitura arqueadas sob o peso de regras pesadas que elas mesmas inventaram e que só servem para gerar culpa e ansiedade.
Para tentar ajudá-las, um pouco sobre as minhas leituras desse mês.
Em abril de 2021, os 22 livros que li estavam todos em algum tipo de diálogo com o curso que estou ensinando.
Em relação ao assunto, foram 11 de poesia, 5 sobre literatura, 3 romances, 2 de história, 1 peça de teatro; à língua: 11 em espanhol, 9 em português, 2 em inglês; à época: 5 do século XXI, 4 do XX, 5 do XIX, 8 da Idade Média. E 9 dos 22 escritos por mulheres.
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Lidos diretamente para o curso:
O romantismo é um dos temas principais tanto da primeira quanto da segunda aulas do nosso curso. Então, como parte da preparação, quis finalmente ler essas duas grandes obras românticas que já estavam na minha fila faz tempo:
1.66 Macário, de Álvares de Azevedo, 1850, português.
Álvares de Azevedo, nosso Byron, é meu romântico brasileiro preferido (só abaixo de Gonçalves Dias) porque é o único que une não apenas os arroubos góticos que caracterizam nosso romantismo mas também um certo cinismo irônico que não leva nada daquilo a sério. Macário é uma delícia, assim como os contos góticos de Noite na Taberna.
Se forem ler, recomendo essa edição da Martins Fontes, que traz ambos, e, para a poesia, essa edição anotada da Ateliê Editorial. Recomendo tudo deles.
2.67 Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano, 1844, português.
Um romance ambientado na conquista da península ibérica pelos mouros, escrito pelo maior nome do romantismo português. Fiquei espantado de o quanto gostei. É um sensacional, emocionante, empolgante. Aventura pura, na veia. Virei a noite lendo, não consegui parar. (Tão bom quanto O Guarani.)
O personagem título é um guerreiro que, rejeitado por sua amada, vira padre. Quando a península é invadida pelos mouros, entretanto, ele não consegue ficar longe do combate e se transforma no Cavaleiro Negro — que aparece no meio da batalha, derrota todo mundo e desaparece, mantendo sua identidade em segredo. Quando sua amada é sequestrada pelos mouros, naturalmente, é ele que vai resgatá-la — que não faz ideia que seu supercavaleiro salvador era aquele moço franzino que ela havia rejeitado. Ou seja, assim como Peri, Eurico é um super-heroi sem tirar nem pôr, mas com um elemento adicional que Peri não tinha: a identidade secreta.
Gonçalves Dias era estudante em Coimbra quando Eurico, o Presbítero é publicado e deve ter sido marcado pelo burburinho. Por um lado, ele se interessou pelo tema medieval e escreveu as Sextilhas de Frei Antão. Por outro, sabendo que o Brasil não tinha Idade Média, tomou para si o desafio de fazer pelo Brasil o que Herculano fizera por Portugal, mas usando o indígena. (Falo mais sobre isso aqui: Medievais, indianistas, inconfidentes.)
De qualquer modo, Eurico, o Presbítero é parte importante do template europeu que pautou o nosso romantismo, nosso indianismo, nosso processo de formação nacional literária.
3.68 Ursula, de Maria Firmina dos Reis, 1859, português.
Uma das leituras da nossa segunda aulas, Escravistas & escravizados. Tem a distinção de ter sido escrito por uma mulher, negra, provinciana, subalterna. Apesar de ser um romance romântico como tantos, repleto de peripécias aventurescas e centrado na paixão de um belo casal de brancos, boa parte dos personagens secundários são pessoas negras escravizadas surpreendentemente normais, retratadas pela primeira vez vistos de um ponto de vista interno, por uma perspectiva afrodescendente. Recomendo a edição da Taverna.
4.69 A escrita de Maria Firmina dos Reis na literatura afrodescendente brasileira: revisitando o cânone, de Algemira de Macedo Mendes, 2016, português.
Uma excelente tese de doutorado para me ajudar a preparar a aula sobre Ursula.
5.70 A Ponte Edênica, da Literatura dos Imigrantes de Língua Alemã a Raul Bopp e Augusto Meyer, de Valburga Huber, 2009, português.
A terceira aula, em junho, Gaúchas & amazônicas, será sobre as regiões Norte e Sul, e leremos A asa esquerda do anjo (1981), de Lya Luft. Um de nossos temas será justamente a experiência imigrante na região Sul e a tão esquecida, apagada, proibida literatura brasileira escrita em língua alemã.
Livros relacionados ao curso:
6.71 Heine Hein?, poeta dos contrários, de Heinrich Heine, c.1820-50, alemão. [Trad: André Vallias, 2019.]
7.72 Selected verse, de Heinrich Heine, c.1820-50, alemão. [Trad: Peter Branscombe, 1967.]
Os poetas românticos alemães Heine e Holderlin foram dos mais lidos e imitados por nossos poetas românticos brasileiros. Boa parte da crítica literária sobre Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Castro Alves, etc, acaba sendo chegando em Heine ou Holderlin. (Heine, por exemplo, tem um poema chamado “Navio-Negreiro”, com o qual Castro Alves estabelece um diálogo no seu “Navio-Negreiro”.) Como nunca tinha lido nenhum deles (tenho uma enorme lacuna alemã), decidi aproveitar a oportunidade para conhecê-los. Holderlin ficou para o mês que vem, mas gostei muito de Heine. A tradução do André Vallias é simplesmente sensacional, sonora, fluida, recomendo. Já a de Branscombe mal pode ser considerada tradução: é apenas uma decepcionante transcrição literal.
8.73 Contando histórias em versos, Poesia e romanceiro popular no Brasil, de Braulio Tavares, 2005, português.
“Romances” eram poesias medievais narrativas (ou seja, que contavam historinhas, com começo, meio e fim) feitas para serem cantadas. Consequentemente, “romanceiro” era uma coleção de romances, sobre um mesmo tema ou sobre temas afins. Na primeira aula, lemos o Romanceiro da Inconfidência. Gostei tanto que decidi ler mais sobre romances e romanceiros. Esse livro que me indicou inúmeros caminhos. De quebra, tinha um romance espanhol lindamente traduzido pela Clotilde Tavares, irmã do autor, participante do nosso curso, e diva-professora extraordinária.
Livros levemente relacionados ao curso:
Aí, pronto. Eu já estava desde o ano passado, quando li O Poema do Cid, apaixonado por poesia medieval espanhola. E, agora, dois livros me apontavam de volta para ela: Eurico, o Presbítero e os romanceiros.
Os romances são um delicioso fosso sem fundo, pois eles são quase que literalmente infinitos: são poesias orais, recolhidas do século XVI até hoje, e, por isso mesmo, cada romance pode ter infinitas variações. Dos romanceiros, pulei para os cancioneiros (repositório de canções e cantigas, mais cultos) e também para a poesia popular de modo geral. Nossa literatura de cordel é formada, basicamente, por romances, adaptados e traduzidos ao nosso meio, à nossa cultura.
Basicamente, passei o mês de abril de 2021 declamando em voz alta pela casa os romances dos romanceiros abaixo:
9.74 Romancero [ed. Manuel Alvar, Orbis, 1982], c. séculos XII-XV, espanhol.
10.75 Romancero viejo [ed. Maria de los Hitos Hurtado, Edaf, 1997], c. séculos XII-XV, espanhol.
11.76 El Romancero Español [ed. Mauro Armiño, Alfaguara], c. séculos XII-XV, espanhol.
12.77 El Romancero Viejo [ed. Mercedes Díaz Roig, Cátedra], c. séculos XII-XV, espanhol.
13.78 Romancero y lírica tradicional [ed. Maria Teresa Barbadillo de la Fuente, Penguin], c. séculos XII-XV, espanhol.
14.79 Poesía medieval [ed. Victor de Lama, Penguin], c. séculos XII-XV, espanhol.
15.80 Lírica española de tipo popular [ed. Margrit Frenk, Cátedra], c. séculos XIII-XX, espanhol.
16.81 Poesía de cancionero [ed. Alvaro Alonso, Cátedra], c. séculos XV-XVI, espanhol.
17.82 Romancero del Cid, con el Cantar de Rodrigo [ed. Juan Bautista Bergua e Luis Guarner], c. séculos XII-XVII, espanhol.
Uma coisa interessante dos romanceiros é que eles formam um sistema parecido com uma mitologia. Por exemplo, o último livro reúne somente os romances sobre a figura do El Cid. Como são romances anônimos compostos ao longo de séculos e transmitidos oralmente, a figura que emerge é, ao mesmo tempo, reconhecível como o mesmo El Cid e, também, tão multifacetada e contraditória quanto poderia ser ainda sendo a mesma pessoa. Ou seja, assim como o Batman de Paul Dini não tem nada a ver com o de Frank Miller que não tem nada a ver com o de Joel Schumacher, mas são todos reconhecivelmente o Batman. Ou como o Aquiles de Homero e de Ovídio.
Para quem quiser ler os romances, minha edição preferida é a editora Cátedra, por Mercedes Díaz Roig. (Recomendo tudo da Cátedra, amo essa editora.) Como essa é a difícil de encontrar, as da Penguin (anotada) e da Alfaguara (sem notas) estão disponíveis para Kindle e baratinhas: podem começar por essas.
Livros cada vez mais distantes do curso mas ainda meio relacionados:
Para extrair o máximo das minhas leituras de poesia medieval, li dois livros de contexto histórico, do Richard Fletcher e um manualzão bem introdutório de literatura medieval espanhola:
18.83 Moorish Spain, de Richard Fletcher, 1992, inglês.
19.84 Em busca de El Cid, de Richard Fletcher, 1989, inglês.
20.85 Introduccion a la literatura medieval española, de Francisco Lopez Estrada, 1970, espanhol.
Por fim, um manual de versificação espanhola, muito bem escrito e didático, com excelentes seleções de poesia, que era exatamente o que eu estava precisando e nem sabia que existia. Obrigado, Elena!
21.86 Para entender a versificação espanhola... e gostar dela, de Elena Godoy, 2013, português.
A leitura menos relacionada mas ainda relacionada ao curso:
22.87 O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, 2021, português.
Talvez seja o melhor exemplo de como uma leitura pauta a outra, esse romance, novíssimo, lançado esse mês, conta a história das crianças indígenas brasileiras que a expedição de Spix e Von Martius levaram para a Europa e lá morreram. O romance é excelente, mas eu não teria comprado na pré-venda, nem lido assim que chegou, se não tivesse ensinado uma aula sobre indianismo no começo de abril.
E essas foram minhas leituras em abril de 2021.
Para leitoras na Espanha, um pedido sem vergonha
Minhas leituras sobre poesia medieval espanhola estão custando uma quantidade de dinheiro irrazoável na Amazon Espanha. Se tenho algumas pessoas leitoras espanholas, ou que estejam na Espanha, ou que tenham conta na Amazon Espanha, e caso queiram retribuir tudo o que meus textos já fizeram por elas depositando alguns euros de presente em meu cheque-regalo, eu não poderia ser mais grato.
Basta ir na URL amazon.es/cheques-regalo e depositar o valor que você quiser e puder no cheque-regalo de lll.alexcastro@gmail.com.
E saiba que você estará retribuindo, com muito troco e muita sobra, todo o bem que eu possa lhe ter feito. :)
Disclaimer da lista de leituras
Todo mês, desde 1996, faço uma lista das minhas leituras.
Leio porque é bom, porque é gostoso, porque é divertido. Leio sem obrigação, sem ordem, sem pressa. Leio com a liberdade de começar e de largar, de ler rápido ou de ler depressa, de pular de assunto em assunto, de autora em autora. Leio porque é o meu maior prazer na vida.
Faço a lista, mas nem sempre compartilho. Em primeiro lugar, porque imagino que não interesse a quase ninguém. (Se te interessa, me conta?) Em segundo, mais importante, porque fazer listas de livros reforça uma ideia que considero problemática: que “ler é bom”, que todas deveríamos “ler mais”, que ler é uma atividade intrinsecamente melhor do que correr na praia ou montar quebra-cabeças, etc.
Mas ler um livro não é mérito, não é vantagem alguma, não é algo para se gabar. Mais importante, simplesmente ter lido um livro não significa que a pessoa leitora o entendeu, que tirou dele qualquer coisa de relevante, bela, prazerosa ou útil.
Listar os livros que li faz tanto sentido quando listar os vagões de metrô que viajei. (Aliás, quase sempre, o 1022 e o 1026, que operam na linha um e são os últimos vagões de suas composições.) E daí, não?
Apesar disso, incrivelmente, como sou escritor e trabalho com livros, as pessoas pedem e perguntam.
Na verdade, as listas também me ajudam: me pego frequentemente consultando listas antigas para saber qual livro estava lendo em qual época, qual leitura fiz antes da outra, o que achei, etc.
Então, apesar do efeito negativo de divulgar listas assim, esses foram os livros que li em abril de 2021.
Último aviso: todos os links de livros direcionam para a Amazon BR. Se você clicar nos links e comprar qualquer coisa por lá (não precisa ser necessariamente o livro em que clicou), eu ganho uma comissão e você ajuda a me recompensar por esse e outros textos que curtiu. E te agradeço.
Convenções da lista de leituras
Posição no mês. Posição no ano. Título, autor, data da escritura, idioma original. [Organizador/tradutor, data da organização e/ou tradução, editora.]
Quando são dadas várias traduções de uma mesma obra, a primeira foi a principal e as demais usadas para cotejo.
Considero um livro “lido” e acrescento nessa lista quando li o suficiente sobre ele para sentir que posso escrever sobre ele sem estar blefando: o critério é subjetivo e varia de obra a obra.
Esse mês, por exemplo, existem muitas seletas e antologias de poesia. Algumas foram lidas de cabo a rabo, outras não: incluo na lista quando li não apenas o aparato crítico mas também uma quantidade que considero suficiente das principais poesias, textos, verbetes.
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Um grande beijo, do
Alex Castro