Kafka: biografado conciso, biografia prolixa
O mestre da concisão não merecia uma biografia tão prolixa. Nova resenha na Folha de São Paulo
São necessárias 600 páginas para contar 5 anos da vida de um homem com quem nada acontecia?
(A Folha de São Paulo acabou de publicar uma resenha minha da nova biografia de Kafka. Como o espaço em jornal é reduzido, o texto saiu editado. Aqui, abaixo, vai o texto completo. Posso pedir um favor? Vão lá no texto da Folha, e comentem, compartilhem, retuítem? Muito, muito obrigado. Clicando nos links de livros e comprando qualquer coisa na Amazon BR, eu ganho uma comissão e te agradeço por apoiar meu trabalho.)
Kafka só é Kafka porque nada acontecia em sua vida. Ele morava com a família, trabalhava num escritório, escrevia num quartinho, nadava num clube, mastigava bastante a comida, caminhava muito. Era vegetariano, noivou duas vezes, nunca casou. Morreu jovem, aos 44.
Os textos que revisou e autorizou são obras primas da concisão, cada palavra é perfeita: A metamorfose, Um médico rural, O veredito/ Na colônia penal e Um artista da fome não somam 250 páginas e já seriam o suficiente torná-lo um dos maiores artistas da palavra que a humanidade já teve. (Seus textos mais longos, por outro lado, são os que escolheu não publicar, por considerá-los falhos, e que nós só lemos a sua revelia.) Kafka, mais do que qualquer outro escritor, não merecia uma biografia tão inflada e tão prolixa.
(Ah, mais um aparte: todo mês, dou uma aula avulsa de História e literatura para minhas mecenas. A aula de novembro se chamou “Kafka, um autor traído” e foi basicamente sobre essa biografia e sobre a polêmica “queima dos originais” de Kafka. Como uma palhinha especial pra vocês, vou deixar o link público por alguns dias. Podem assistir, repassar, divulgar. Vocês deixariam uns comentários lá também?)
A Todavia acabou de lançar no Brasil Kafka, os anos decisivos, volume central da trilogia biográfica escrita pelo alemão Reiner Stach. Causa estranheza a decisão editorial de começar a publicar uma trilogia pelo volume intermediário. Ainda que ela tenha sido originalmente publicada assim — esse volume em 2002, o terceiro em 2008 e o primeiro em 2014 — a tradução não precisava seguir a mesma ordem.
Como está, o leitor brasileiro não só pega a história pelo meio, mas, pior, na parte mais árida e desinteressante. O primeiro volume talvez explicasse como aquele homem tão brilhante se viu preso numa situação familiar tão tóxica. O último volume certamente incluiria sua polêmica mais conhecida: Kafka pediu ao seu melhor amigo que queimasse seus textos inacabados e escritos pessoais, caso morresse durante uma internação clínica. Acabou morrendo e o amigo publicou tudo, inclusive diários e cartas íntimas. Debate-se até hoje as ramificações éticas desse ato: o público tem direito à obra mesmo que à revelia do autor? O processo pertence a Kafka ou à humanidade?
O que sobra para o volume central? Os anos entre 1910 e 1915 são “decisivos” pois foi neles que Kafka encontrou sua voz literária e escreveu as primeiras obras já são reconhecivelmente kafkianas: A metamorfose, O veredito/ Na colônia penal e O processo. O tema central do livro é o romance entre Kafka e Felice Bauer, que acompanhamos carta a carta, em longuíssimas citações. Além disso, como Kafka queimou as cartas de Bauer, mas ela guardou as dele, só temos em larga medida o seu lado da história. (Bauer, idosa e empobrecida, só vendeu as cartas por extrema necessidade, sob imensa pressão de sua família e do establishment literário, em troca de míseros oito mil dólares.)
Stach é bom contador de histórias — quase consegue tornar interessante uma biografia na qual nada acontece — mas não é bom historiador — nunca questiona as cartas e diários de Kafka, como se qualquer pessoa fosse capaz de ser objetiva a respeito de si mesma — e nem bom crítico literário: enquanto outras biografias de escritores aproveitam para arriscar novas leituras de suas obras, Stach se limita a fazer conexões forçadas entre a vida de Kafka e detalhes ínfimos dos textos. O que mais falta a Stach, ironicamente, é a maior qualidade literária de Kafka: seu compromisso com a concisão e com o tempo do leitor.
Para (os poucos) leitores com interesse profissional na vida de Kafka, a biografia é um achado. Para (os muitos) leitores comuns, seria melhor investir seu tempo e dinheiro (re)lendo Kafka. Uma boa porta de entrada é seu último conto, Um artista da fome, escrito enquanto o próprio Kafka morria de fome — tinha tuberculose laríngea e não conseguia se alimentar. É a história de um artista que morre, aos poucos e ao vivo, diante de um público insaciável. Quem sabe depois tenham até publicado suas cartas íntimas e escrito infladas biografias.
Trecho:
“Kafka ensina a humildade. Quem se atreve a lidar com ele precisa contar com o fracasso. Em inúmeros textos secundários, é tão grande o abismo entre as explicações oferecidas pelo autor e as citações do próprio Kafka, que o leitor sente calafrios. ... O biógrafo precisa ter clareza de que está entrando numa competição que não poderá ganhar. ... Não há uma frase de efeito, uma impureza semântica ou uma metáfora fraca que lhe escape. ... Sua linguagem não “flui” por si só, nem transborda pelas margens; ela é dominada como um bisturi em brasa que atravessa uma pedra. Kafka não deixa passar nada, não esquece nada. ... Quando o homem mais discreto em sua vida social provoca uma onda de choque na história da cultura universal, cujos ecos reverberam até hoje, é inevitável olhar para vida e obra como mundos incompatíveis, cada um com suas próprias regras. ... Mas o biógrafo não pode parar por aí. Ele precisa esclarecer como uma consciência a que tudo dá o que pensar pôde tornar-se uma consciência que a todos dá o que pensar. Essa é a tarefa.”
Serviço:
Título: Kafka, os anos decisivos
Preço: R$104,90 (656 páginas), R$69,90 (ebook)
Autor: Reiner Stach
Editora: Todavia
Tradução: Sofia Mariutti
Classificação: duas estrelas
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Kafka, um autor traído
Todo mês, na última quarta-feira, dou uma aula avulsa sobre História e/ou Literatura. A aula de novembro se chamou Kafka, um autor traído e está disponível gratuitamente aqui.
Para quem quiser se preparar, a obra de Kafka é pequena e dá pra ler numa única tarde —certamente a tarde mais desesperadora da sua vida.
Aqui vai o mínimo que eu recomendo para uma pessoa poder dizer que "leu" Kafka: A metamorfose, Um médico rural, O veredito/ Na colônia penal e Um artista da fome. Para quem tem pouco tempo e/ou pouco dinheiro, o volume Kafka Essencial da Penguin/Companhia traz de fato o essencial do essencial.
Reparem que (tirando a última antologia) só recomendei textos que Kafka publicou e autorizou em vida. Aliás, um dos temas da aula será justamente esse:
É ético lermos as cartas íntimas de um homem intensamente privado e tímido?
É ético lermos obras de um artista que não queria que lêssemos essas obras?
Qual é o limite da autoridade autoral de um artista?
Qual é o limite da invasibilidade do público?
Temos "direito" a usufruir de uma obra de arte só porque ela existe, ou temos esse direito somente a partir do momento em que a artista libere essa obra ao público?
E se a artista não liberar?
As aulas avulsas mensais são só para as mecenas dos planos ENCONTROS, CURSOS & MIDAS (para fazer parte, visite o meu Apoia-se) mas extraordinariamente liberei para vocês aqui:
Um beijo do Alex Castro