Houellebecq é o profeta que a civilização ocidental merece
Novo romance de Houellebecq, "Aniquilar", traça a aniquilação de um homem e de toda a sociedade. Resenha na Folha de São Paulo.
Michel Houellebecq (pronúncia: uélbeq) não é um grande estilista da língua, não elabora enredos envolventes, não cria personagens memoráveis. Seu grande mérito está em ser um cronista, uma testemunha, um profeta. Nos séculos futuros, quando as pessoas quiserem conhecer as pessoas ocidentais da virada do XX para o XXI, será Houellebecq que vão procurar.
(A Folha de São Paulo acabou de publicar uma resenha minha do novo romance de Houellebecq. Como o espaço em jornal é reduzido, o texto saiu editado. Aqui, abaixo, vai o texto completo. Posso pedir um favor? Vão lá no texto da Folha, e comentem, compartilhem, retuítem? Muito, muito obrigado. Clicando nos links de livros e comprando qualquer coisa na Amazon BR, eu ganho uma comissão e te agradeço por apoiar meu trabalho.)
A precisão de sua sensibilidade profética é assombrosa. Seu primeiro romance, Extensão do domínio da luta, de 1994, previu a ascensão dos incels. Plataforma, de 2001, sobre colonialismo e terrorismo, prostituição e turismo sexual, antecipou os atentados terroristas em Báli do ano seguinte. Depois, Submissão, mostrando um muçulmano chegando ao poder da França, saiu na mesma semana do atentado ao jornal “Charlie Hebdo”, em janeiro de 2015. Por fim, Serotonina, de 2019, sobre agricultura e protecionismo, União Europeia e Brexit, saiu na mesma semana em que os coletes amarelos bloquearam as estradas do país.
Alguns de seus romances se dedicam a satirizar mundinhos específicos: o turismo, em Plataforma; a universidade, em Submissão; as artes, em O mapa e o território — pelo qual ganhou o Prêmio Goncourt. Todos ótimos, pois sua ironia é cáustica e irresistível. Seus romances mais geniais, porém, são também os mais ambiciosos: em Partículas elementares e A possibilidade de uma ilha, ele profetiza contra nossa civilização em escala verdadeira cósmica. O profeta Jeremias não lamentou tanto a perda de Jerusalém quanto Houellebecq a decadência da Europa do pós-guerra.
(Ah, mais um aparte: todo mês, na 2ª quarta-feira, dou uma aula avulsa de História e literatura para minhas mecenas. A aula de dezembro de 2022 se chamou “Houellebecq, cósmico e intimista” e, como uma palhinha especial pra vocês, o link está público. Podem assistir, repassar, divulgar. Vocês deixariam uns comentários lá também?)
Aniquilar, sua nova obra que sai agora no Brasil pela Alfaguara, é ao mesmo tempo macro e micro: por um lado, disseca vários mundinhos; por outro, seu tema é a entropia em si; mas tudo amarrado por um novo elemento, inédito em sua obra e surpreendente para seu leitor habitual: a esperança. Afinal, o próprio Jeremias, depois de tanto profetizar a queda de Jerusalém, foi num cartório e comprou um terreno, dizendo: “Ainda se construirão casas de novo nessa terra.” Aniquilar é esse terreno.
O romance está sempre puxando o tapete do leitor. Começamos seguindo um funcionário do governo francês encarregado de elucidar uma série de atentados terroristas, mas logo descobrimos que nem esse funcionário é o protagonista, nem o romance é um thriller de suspense. Os terroristas, é verdade, parecem querer aniquilar a nova ordem mundial, mas Houellebecq está falando de outros aniquilamentos. O verdadeiro protagonista é Paul Raison, também funcionário público e só tangencialmente envolvido na caça aos terroristas. Uma nova surpresa: de todos os protagonistas de Houellebecq, sempre homens brancos de meia-idade, vagamente ressentidos e algo apáticos, Paul é certamente o menos desagradável.
De repente, seu pai sofre um AVC e a família precisa se reunir para tomar decisões. Conhecemos os irmãos de Paul: Cécile, uma católica extremada casada com um tabelião desempregado que flerta com a extrema direita, e Aurélien, o caçula, restaurador de tapeçarias e casado com Indy, jornalista de esquerda e única personagem realmente detestável do livro. (Em geral, nos livros de Houellebecq, todos os personagens são detestáveis.)
A crítica do protagonista à Indy é bem reveladora dos limites da empatia de Houellebecq para mulheres e pessoas negras. Apesar de nem Aurélien nem Indy serem estéreis, seu filho nasceu por inseminação artificial e barriga de aluguel. Mais ainda, Indy escolheu um doador de esperma negro. Para Paul, os motivos da escolha eram claros: por um lado, a jornalista de esquerda sinalizava virtude e antirracismo; por outro, emasculava seu marido, deixando visivelmente autoevidente para todos, à primeira vista, que não era o pai biológico do filho do casal. No universo de Houellebecq, os homens brancos são sempre fracos, as mulheres, superficiais e a negritude causa ansiedade sexual mesmo quando nenhuma pessoa negra está fisicamente presente.
O que salva sua obra de ser uma bíblia da extrema direita é que ele também não tem nenhuma simpatia pelo homem branco europeu: pelo contrário, é o seu maior alvo. Aliás, talvez seja um dos segredos do seu sucesso: a direita lê Houellebecq porque compartilha sua visão apocalíptica de um Ocidente sitiado por mulheres e minorias, e a esquerda, seu desprezo absoluto pelo homem branco ocidental.
Em Aniquilar, porém, livro mais sensível e otimista de Houellebecq, existe uma saída: o amor. Aurélien, depois de se separar da esposa, se apaixona por uma enfermeira do Benin. O pai de Paul viverá seus últimos dias cuidado pela jovem esposa que o ama. Paul, enquanto cuidava do pai, se reapaixonou pela esposa com quem mal falava há dez anos. Naturalmente, a entropia é o destino comum de todos, especialmente dos homens brancos que Houellebecq adora aniquilar: Aurélien se mata, o pai fica vegetativo, Paul descobre um câncer terminal. Mas, por um breve momento, o amor lhes permite transcender a aniquilação derradeira para a qual todos nos encaminhamos, um alento maior que Houellebecq ofereceu em todos seus livros anteriores juntos. (Por óbvio, o amor redime apenas os personagens homens: em Houellebecq, as mulheres raramente são vistas como seres humanos tridimensionais. Nesse livro, pelo menos, são capazes de amor verdadeiro.)
De todos os romances de Houellebecq, Aniquilar é o mais longo e o mais tedioso. Ele está naquela fase da carreira de todo grande escritor quando os editores ou já não ousam ou não têm mais permissão de editá-lo. Cada assunto, desde cuidados paliativos na saúde pública até novas terapias contra o câncer, é dissecado com uma profundidade às vezes desesperadora. Mas talvez seja esse o objetivo: nosso desespero existencial perante à aniquilação. Quando um grande artista da palavra, no auge de seus poderes criativos, decide propositalmente nos entediar, algo ele está nos comunicando. Nenhum trecho tedioso de Moby Dick está lá à toa. A questão não é se Moby Dick tem ou não trechos tediosos, mas sim porque Melville nos impôs tanto tédio.
Ao final da leitura, o leitor percebe que Aniquilar era menos thriller político (os atentados terroristas nunca são resolvidos) e mais uma versão estendida de A morte de Ivan Illich, onde o autor, não satisfeito em narrar apenas os últimos dias do protagonista, mostrou também seu último ano de vida antes do diagnóstico. Tanto Tolstoi quanto Houellebecq nos ensinam a morrer e, em consequência, a viver, mas a diferença é que Tolstoi está narrando a morte de um só homem, enquanto Houellebecq, intimista e cósmico, está fazendo o réquiem de toda uma civilização que vai sendo aniquilada junto com Paul e sua família.
O futuro é a aniquilação. O presente nada mais é do que esse lento e contínuo processo de aniquilamento, seja do sistema econômico global, por terroristas, seja do corpo de Paul Raison, por um câncer. E a vida, bem, a vida são os amores que conseguimos roubar ao tempo. Em retrospecto, o grande mérito do enredo secundário sobre os terroristas está justamente em ser abandonado: a vida não são essas grandes aventuras e sim cuidar do pai idoso, se reaproximar da esposa afastada, se apaixonar por uma pessoa nova. Parece piegas? Certamente. O autor se casou pela terceira vez em 2018, com uma chinesa 34 anos mais jovem e pesquisadora de sua obra. Aniquilar, um Houellebecq como nenhum outro, parece obra de um homem feliz. Se mantiver sua palavra nos agradecimentos, será seu Memorial de Aires a última obra de um ironista genial e impiedoso, agora mais doce e amolecido pela idade. Não seria uma má despedida.
Serviço:
Título: Aniquilar
Autor: Michel Houellebecq
Preço: R$99,90 (480 págs); R$ 44,90 (ebook)
Editora: Alfaguara
Tradução: Ari Roitman
Classificação: ótimo
Trecho em destaque:
“Em todas as civilizações anteriores, o que permitia julgar o valor de um homem era o modo como havia se comportado efetivamente ao longo da vida. Ao darmos mais valor a uma criança – mesmo não tendo a menor ideia do que será dela – negamos qualquer valor às nossas ações reais. Desvalorizar o passado e o presente em benefício do porvir, desvalorizar o real e preferir uma virtualidade situada num futuro vago são sintomas decisivos do niilismo europeu. Então, não, realmente não sou cristão; tendo até a achar que foi com o cristianismo que isso começou, essa tendência a resignar-se ao mundo presente, por mais insuportável que seja, na expectativa de um salvador e de um futuro hipotético; o pecado original do cristianismo é a esperança.”
* * *
Gostou? Pra assistir ao vivo minhas aulas mensais, seja mecenas.
Se meus textos tiveram impacto em você, se minhas palavras te ajudaram em momentos difíceis, se usa meus argumentos para ganhar discussões, se minhas ideias adicionaram valor à sua vida, por favor, considere uma das opções de mecenato proporcionais a esse valor. Assim, você estará me dando a possibilidade de criar novos textos, produzir novos argumentos, inventar novas ideias. :)