A beleza de Grande Sertão: Veredas só faz sentido em português.
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Já ouvi de várias pessoas literatas russas:
“Vocês, ocidentais, gostam tanto de Tolstoi e Dostoievski só porque não conseguem ler Púchkin e Turgeniev no original. Tolstoi e Dostoievski, apesar de maravilhosos, claro, são puro enredo, e estripulias de enredo – seja Pierre na Evacuação de Moscou, ou de Raskolnikov depois de matar a velha – são facilmente traduzíveis. Mas Púchkin e Turgeniev são grandes autores não apenas pelos enredos mas pela mágica que realizavam com a língua russa, pela poesia do estilo, pela escolha de vocabulário, pelos jogos de palavras. Como tudo isso se perde para vocês, é natural que prefiram Tolstoi e Dostoievski.”
Uma pessoa estrangeira que leu a nossa literatura em tradução poderia dizer:
“Não entendo o alarde que vocês fazem com Grande Sertão: Veredas. É legal, uma bela historinha de cowboys e crossdressing décadas antes de Brokeback Mountain, mas, sério, não chega aos pés de Machado de Assis e Clarice Lispector.”
Estilos límpidos ou racionais, intelectuais ou concisos, como Machado ou Kafka, Tchecov ou Borges, se traduzem com razoável facilidade. Ler um conto de Machado ou de Borges no original ou em tradução não são experiências fundamentalmente diferentes: tudo aquilo que faz deles grandes escritores é transmitido, perde-se quase nada da magia, da arte, do valor.
Até mesmo Clarice Lispector, que buscava descobrir os limites daquilo que não era possível ser dito, é surpreendente traduzível. Sua obra-prima, Água viva, é um dos textos mais impressionantes jamais escritos em português. Eu o considerava intraduzível... até lê-lo em tradução. Para minha surpresa, as traduções conseguem transmitir quase tudo daquilo que faz o livro ser impressionante.
Apesar de Lispector estar sempre buscando as fronteiras daquilo que pode ser dito, ela é muito mais traduzível do que Guimarães Rosa, por um motivo simples: Lispector estava dialogando com a Língua com L maiúsculo, um diálogo que poderia se dar de maneira bem semelhante em húngaro ou grego, enquanto Guimarães Rosa estava dialogando com a própria brasilidade da língua portuguesa.
Dá pra imaginar uma autora belga ou chinesa produzindo uma obra semelhante ou equivalente a de Lispector, guardadas pequenas diferenças regionais, mas um Guimarães Rosa não-brasileiro não faria nenhum sentido.
A beleza de Grande Sertão: Veredas é que ele só pode ser fruído em sua totalidade em português, um pequeno tesouro só nosso.
Abaixo, para exemplificar, algumas traduções de Água viva e de Grande Sertão: Veredas.
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Água viva (1977), de Clarice Lispector. Segundo parágrafo:
"Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do que é da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço. Quero possuir os átomos do tempo."
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Elizabeth Lowe e Earl Fitz, 1989:
"Let me tell you… I’m trying to capture the fourth dimension of the now-instant, which is so fleeting it no longer is because it has already become a new now-instant, which also is no longer. Each thing has an instant in which it is. I want to take possession of the thing’s is. Those instants that elapse in the air I breathe: in fireworks exploding silently in space. I want to possess the atoms of time."
Transmite muito bem a estranheza do original.
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Elena Losada, 2004:
"Te digo: estoy intentando captar la cuarta dimensión del instante-ya, que de tan fugitivo ya no existe porque se ha convertido en un nuevo instante-ya que ahora tampoco existe. Quiero apoderarme del es de la cosa. Esos instantes que transcurren en el aire que respiro, como fuegos artificiales estallan mudos en el espacio. Quiero poseer los átomos del tiempo."
Domestica e corrige um pouco, mas ainda assim muito bom.
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Stefan Tobler, 2012:
"Let me tell you: I’m trying to seize the fourth dimension of this instant-now so fleeting that it’s already become a new instant-now that’s already gone. Everything has an instant in which it is. I want to grab hold of the is of the thing. These instants passing through the air I breathe: in fireworks they explode silently in space. I want to possess the atoms of time."
A melhor.
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Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa. As primeiras linhas na narração do jagunço Riobaldo.
"Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão?"
Reparem como, para nós, falantes nativas de português, o texto nos soa absurdamente estranho. E não é porque em Minas se fala assim, mas porque o autor propositalmente inventou essa língua. Então, a primeira tarefa de uma tradutora será recriar essa mesma estranheza no idioma de destino.
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James L. Taylor e Harriet de Onís, 1963:
"It’s nothing. Those shots you heard were not men fighting. God be praised. It was just me there in the back yard, target-shooting down by the creek, to keep in practice. I do it every day, because I enjoy it; have ever since I was a boy. Afterwards, they came to me about a calf, a stray white one, with the queerest eyes, and a muzzle like a dog. They told me about it but I didn’t want to see it. On account of the deformity it was born with, with lips drawn back, it looked like somebody laughing. Man-face or dogface: that settled it for them; it was the devil. Foolish folk. They killed it. Don’t know who it belonged to. They came to borrow my gun and I let them have it.
You are smiling, amused-like. Listen, when it is a real gunfight, all the dogs start barking, immediately — then when it’s over you go to see if anybody got killed. You will have to excuse it, sir, but this is the sertão. Some say it’s not — that the real sertão is way out yonder, on the high plains, beyond the Urucúia River. Nonsense. For those of Corinto and Curvelo, then, isn’t right here the sertão?"
Aqui, dá pra ver que as tradutoras simplesmente entregaram os pontos. Não fizeram nenhuma tentativa de verter o estilo de Rosa e se mantiveram ao enredo. A prosa em inglês, com um ou dois estranhismos, é correta. Além disso, inventaram uma quebra de parágrafo que não existia.
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Felipe W. Martinez, 2013:
“Nonothing. Shots that the Sir heard were man brawling not, God be. Bleach white sights on the tree in the backyard, down in the river. By my right. I do this every day, I like; from the bad of boyhood. Thereof they came to call on me. Case of a calf: a white calf, errorful, eyes of to not be—saw selves—; and with a mask of a dog! They told me; I didn’t want to catch a sight. Same that, by the defects of birth, upturned lips, looked to be a laughing man. Folkface, dogface: they determined—it was the devil. Bananas. Killed it. Do not know who owned it. They came to borrow my guns. I caved. I’ve no power to impose. Oh, sir, you laugh certain laughs…Look: when it’s a true shot, first the dogs begin to bark, instantly—after, then, you see who’s handed death. Sir, endure, this is the Sertão. Some want that it is not: that situated Sertão is in and out of those general fields, they say, end of the road, highlands, the other Urucuia. Toleima. For those of Cortino and of Curvelo, then, isn’t here said Sertão?”
Martinez pelo menos tenta. Mas consegue? O "thereof" me parece completamente deslocado. As frases sem sujeito em inglês soam mais estranhas e mais erradas ao ouvido anglófono do que qualquer coisa que Riobaldo fala em português. Pessoalmente, achei desconjuntado demais, mas reconheço o esforço.
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Alison Entrekin, 2016:
"Nonought. Shots you heard weren’t a shootout, God be. I was training sights on trees in the backyard, at the bottom of the creek. Keeps my aim good. Do it every day, I enjoy it; have since the tenderest age. Anyhow, folks came calling. Bout a calf: white one, strayling, eyes like no thing ever seen and a dog’s mask. They told me; I didn’t want to see. Seems it was defective from birth, lips curled back, and looked to be laughing, personlike. Human face, hound face: they decided — it was the devil. Oafenine bunch. They killed it. Nought a clue bout the owner. They came to beg my guns, I let em. I’m not superstitious. You got a way of laughing, sir… Look: when shots are for real, first the dogs set up barking, that instant — then you go see if anyone’s dead. Don’t mind, sir, this is the sertão. Some reckon it in’t: the backlands are further off, they say, the campos-gerais inside and out, back-o-beyond, high plains, far side of the Urucúia. Lottarot. To folks in Corinto and Curvelo, in’t this here the sertão?"
Minha preferida. Mantém toda a estranheza, neologismos e jogos de palavras de Rosa, com um tantinho mais de fluência narrativa. Gosto de como ela diz "backlands" depois de "sertão", meio explicando, meio mostrando, meio definindo dentro do próprio texto o que é "sertão", essa palavra que sua pessoa leitora provavelmente não conhece.
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Angél Crespo, 1967:
"Nonada. Los tiros que usted ha oído han sido no de peleas de hombres, Dios nos asista. Apunté a un árbol, en el corral, en el fondo del barranco. Para estar en forma. Todos los días lo hago, me gusta; desde apenas en mi mocedad. Entonces, fueron a llamarme. Por mor de un becerro: un becerro blanco, defectuoso, los ojos de no ser —habráse visto— y con careta de perro. Me lo dijeron; yo no quise verlo. Incluso que, por desperfecto de nación, remangado de hocidos, parecía reírse como persona. Cara de gente, cara de can: decidieron que era el demonio. Gente parva. Lo mataron. Dueño suyo, no sé quién fuese. Vinieron a que les prestase mis armas, se las cedí. No tengo supersticiones. El señor ríe ciertas risotadas… mire: cuando es tiro de verdad, primero la jauría empieza a ladrar, instantáneamente; después, se va entonces a ver si hubo muertos. El señor apechuque, esto es el sertón. Algunos quieren que no lo sea: que situado está el sertón por los campos generales de fuera a dentro, dicen ellos, al final de los rumbos, en las tierras altas, más allá del Urucuia. Tontunas. Entonces, para los de Corinto y del Curvelo ¿esto de aquí no es llamado sertón?"
O tradutor era poeta e essa tradução é conhecida por respeitar o lado experimental do texto. Mas, se é verdade, não dá pra ver isso nesse trecho. Pelo contrário, como na primeira tradução anglófona, o texto me parece ter sido domado e simplificado. Cadê a estranheza, os neologismos, as quebras bruscas?
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Florencia Garramuño e Gonzalo Aguilar, 2011:
“–Nonada. Los tiros que usted oyó no fueron de pelea de hombre, no, Dios me libre. Le apunté a un blanco en el árbol, en el corral, en la bajada del arroyo. Para practicar. Lo hago todos los días, me gusta; desde que era bien joven. Por eso me vinieron a buscar. Por causa de un ternero: blanco, defectuoso, con ojos de no ser; y con semblante de perro. Me dijeron; yo no quise mirarlo. Tanto que, por defecto como nació, con el hocico arremangado, cuando se reía parecía persona. Cara de gente, cara de perro; decidieron: era el diablo. Pueblo ignorante. Lo mataron. Ni sé quién era su dueño. Vinieron a pedirme mis armas; se las di. Yo supersticioso no soy. Usted se ríe de una manera… Mire: cuando es tiro de verdad, primero la jauría empieza a ladrar, instantáneamente. Después, ahí se va a ver si hubo muertos. Hay que aguantarse; así es el Sertón. Algunos quieren que no lo sea: que el Sertón está cercado de mesetas de afuera hacia adentro, dicen, al final del rumbo, en tierras altas, más allá del Urucuia. Bobadas. Para los de Corinto y de Curvelo, entonces, ¿lo de acá no es Sertón?”
Um pouco melhor que a outra, mas, ainda assim, muito domesticada, normalizada. A leitora hispânica não tem acesso a um décimo da estranheza do original.
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No geral, as duas traduções hispânicas e a primeira anglófona me parecem domesticar excessivamente o texto rosiano, enquanto a segunda anglófona (Martinez) complica demais. Entrekin chega mais perto de um delicado e instável equilíbrio. Ela é uma australiana, que mora em Santos, e ainda não publicou sua tradução, somente liberou alguns trechos na internet. E me disse, pelo Facebook, que a tradução deve sair nos EUA pela Knopf e no Reino Unido pela Cape e que ela continua firme e forte trabalhando.
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Obrigado a Luis Fernando Veríssimo que, em 1996, em comemoração aos 40 anos de publicação de Grande Sertão: Veredas, escreveu uma crônica sobre o livro: “Feitiço”. (Hoje, essa crônica pode ser encontrada no livro A eterna privação do zagueiro absoluto.) Impulsionado por essa generosa crônica, onde Veríssimo pede que ninguém abandone o livro antes da décima página, para dar tempo de sua mágica funcionar, eu li o livro e me apaixonei. A mágica funcionou.
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Grande Sertão: Veredas
Nossa leitura desse mês do curso A Grande Conversa Brasileira é a obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.
Até o dia da aula, vamos conversando sobre Grande Sertão: Veredas em nosso grupo do zap e os papos têm sido bem interessantes. Se você quiser se juntar a nós, ainda dá tempo e seria meu enorme prazer. Baixei os preços e tudo. ;)
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A próxima aula, Bandeirantes & Jagunças, acontece dia 7 de outubro e será sobre Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa. Vem com a gente?
Beijos rosianos,
do Alex Castro