A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa
Sério candidato a "Grande romance latino-americano", excelente romance histórico, belíssima releitura de "Os sertões".
A Guerra do Fim do Mundo, publicado em 1981, além de dar ressonância universal a um episódio menor da História Brasileira, também marca um ponto de inflexão na obra de Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura de 2010: depois desse romance, ninguém nunca mais poderá acusá-lo de ser um homem de esquerda.
Um romance histórico à moda antiga, com personagens inesquecíveis e situações emocionantes, emblemático e exemplar de todas as qualidades (e limitações) do gênero.
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A próxima aula do meu curso A Grande Conversa Brasileira será sobre Os sertões, de Euclides da Cunha. Aproveitei para reler A Guerra do Fim do Mundo, do Mario Vargas Llosa, que também conta a história da Guerra de Canudos. Juntos, ambos somam quase duas mil páginas: parece que não dá para escrever livros curtos sobre Canudos.
Para quem quer entender a guerra, mas achou Euclides difícil e palavroso, Vargas Llosa pode ser a solução. (A palavrosidade de Euclides é parte integrante do conteúdo que ele está tentando comunicar em Os sertões e não deve nos assustar. Em breve, desenvolvo mais.)
Não existem muitos candidatos ao posto de Grande Romance Latino-americano, ou seja, aqueles grandes romances que articulam quem somos e para onde vamos, mas A Guerra do Fim do Mundo é um deles. Ele articula o grande conflito não resolvido do nosso continente: civilização versus barbárie. Esse tema, aliás, será o tema da próxima aula do curso A Grande Conversa Brasileira, onde também leremos O Uraguai, de Basílio da Gama, e Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.
(Outros possíveis candidatos ao título de Grande romance latino-americano: Cem anos de solidão e Os passos perdidos. Grande Sertão: Veredas transcende, em muito, as questões latino-americanas.)
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A guinada liberal de um autor esquerdista
Nas décadas de 1960 e 1970, quando Vargas Llosa estoura como escritor durante o boom latino-americano, ele se considerava de esquerda e, por exemplo, apoiava a Revolução Cubana. Ao longo da década de 1970, a década mais dura e repressora da Revolução, enquanto a violenta guerrilha esquerdista do Sendero Luminoso conquista mais e mais espaço no Peru, ele começa a se afastar dessas posições.
Na vida de Vargas Llosa, A Guerra do Fim do Mundo (escrita entre 1977 e 1980) marca justamente a culminação dessa guinada à direita que já vinha realizando ao longo dos 1970. Não por acaso, publicado em 1981, o romance abre a sua década de maior engajamento político, agora já firmemente no campo da direita, culminando na sua fracassada candidatura a presidência do Peru em 1989.
Dá pra ver essa guinada acontecendo ao longo do próprio romance. O protagonista da primeira metade, o esquerdista escocês Galileo Gall, é uma sátira do típico intelectual esquerdista revolucionário latino-americano. Quando faz pouco de Gall e do seu entusiasmo pela revolução popular em Canudos (que acaba se provando apenas mais uma revolta de fanáticos), Vargas Llosa na verdade está fazendo pouco não apenas de si mesmo e das convicções que estava abandonando, mas também de seus colegas e de seu entusiasmo ingênuo pela Revolução Cubana.
Apesar de todo seu idealismo e consciência social, Galielo Gall não hesita em estuprar Jurema e em arrancá-la de casa, iniciando a sequencia de tragédias que levaria à sua morte e várias outras. Mais tarde, quando sabe que o marido de Jurema está caçando ambos para matá-los, o esquerdomacho avant la lettre abandona a mulher para se juntar aos canudenses. Enquanto está se autoparabenizando por ser tão incrível ao ponto de se juntar à uma revolução condenada, o seu guia, sertanejo prático, lhe pergunta: "Jura mesmo que você não se importa do marido dela estar vindo matar a mulher que você estuprou e arrancou de casa?" Mas Galileo Gall, enebriado por seus belos pensamentos autocongratulatórios, pelos seus sonhos de heroísmo e revolução social, nem responde: é claro que não se importa.
É a deixa para Vargas Llosa, o romance e a própria pessoa leitora também pararem de se importar com Gall: apesar de abrir o romance e se apresentar como a sua figura mais bem desenvolvida, ele é morto e esquecido sem nenhuma cerimônia na metade do livro, logo após essa cena. É como se o autor dissesse: vamos esquecer esse idealista ingênuo e canalha, o caminho não é por aí. (A segunda metade do romance é bem mais fraca, entre outras coisas, por não ter nenhum outro personagem tão interessante ou bem desenvolvido quanto Gall: o escritor míope, Jurema, o anão, o barão, etc, nunca passam de caricatura.)
O romance apresenta claramente Galileo Gall, de um lado, e os canudenses, de outro, como faces da mesma moeda: radicais e idealistas, a única diferença é que Gall é um radical idealista na política e os canudenses, na religião. Claramente, nenhum desses caminhos é adequado.
No fim das contas, Vargas Llosa acaba sagrando o velho barão, reacionário e manipulador, aristocrático e cansado, como a voz da razão. Se pessoas como Galileo Gall e os canudenses, por seu próprio radicalismo, jamais conseguirão construir nada, o velho barão, pelo menos, salva vidas e mantém as estruturas de pé. Em um mundo em colapso, não é pouca coisa.
Poucos anos depois de publicar esse romance, Vargas Llosa se oferecerá para ser ele mesmo o "velho barão" de seu país, então arrasado pela guerrilha esquerdista do Sendero Luminoso. Os peruanos não topam: preferem eleger um nipoperuano totalmente desconhecido ao invés do talvez peruano mais famoso de todos os tempos.
Derrotado, Vargas Llosa vai lamber suas feridas em Londres e se joga na literatura: a América Latina perde o que seria apenas mais um presidente neoliberal, mas recupera um de seus maiores escritores.
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Vargas Llosa e eu
Vargas Llosa foi imensamente influente em minha vida.
Aos 14 anos, eu estava de rolo com uma moça de 28, vendedora de livraria, culta e descolada, que foi a primeira pessoa que falou comigo como se eu fosse adulto, que realmente me ouvia e me levava a sério, com quem eu tinha conversas sobre literatura, arte, cinema — coisas pelas quais ninguém na minha família tinha o menor interesse. Óbvio que um menino precoce e cheio de si, que nessa época já tinha decidido que seria escritor, se apaixonaria.
Um dia, ela me deu de presente Tia Júlia e o Escrevinhador, de Vargas Llosa: a história de Mário, um adolescente de 18 anos (apenas quatro a mais que eu) que já era escritor (como eu já me achava), e vivia um caso de amor com uma mulher de 32 (quatorze anos mais velha, ou seja, a nossa mesma diferença de idade).
Enfim, foi um livro importante. Confirmou minha decisão de ser escritor e também otras cositas más.
Aos 18 anos, quatro anos depois, li A Guerra do Fim do Mundo e confirmou minha decisão de cursar História e não (como todo mundo achava que eu deveria fazer) Jornalismo.
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Civilizados & bárbaros
A próxima aula do meu curso A Grande Conversa Brasileira: a ideia do Brasil na literatura acontece na quinta, 5 de agosto, e vamos conversar sobre Os sertões, de Euclides da Cunha, O Uraguai, de Basílio da Gama e Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.
E sim, ainda dá tempo de participar. (Eu não estaria divulgando se não desse, né?)
Poucos anos depois da Proclamação da República, o Exército Brasileiro mobilizou quase todas as suas forças para enfrentar e destruir uma pequena aldeia rebelada no sertão da Bahia, Canudos. Entre os correspondentes de guerra, estava Euclides da Cunha, de O Estado de São Paulo, para contar aos seus leitores paulistas sobre as hordas bárbaras que ameaçavam a sagrada República. Se tivesse conseguido contar o que pretendeu, hoje não seria nem nota de pé de página na História da Literatura. É preciso ler Os sertões sem tentar classificá-lo, pois é nas classificações fáceis que ele escorre por nossos dedos: nas entrelinhas do projeto classificador de Euclides da Cunha, pelas frestas de seu determinismo racial, Os sertões é um livro que vibra de idealismo e compaixão.
O estilo barroco-científico febril de Euclides da Cunha é marcado por uma eterna dicotomia entre opostos irreconciliáveis: ler Os sertões é acompanhar, ao vivo, uma verdadeira batalha entre esses titãs. De um lado, um militar positivista e patriótico, narrando a épica batalha através da qual o glorioso (e civilizado!) exército nacional derrotou uma horda de fanáticos primitivos e degenerados que ameaçava a própria essência do país. Do outro lado, um escritor, um cronista e um jornalista, mestre contador de histórias, arguto observador, dotado de enorme empatia, desmentindo todas as teorias do positivista ao mostrar homens e mulheres de fibra e de coragem, de força física e de inteligência, vivendo momentos dramáticos de intensa humanidade enquanto defendiam seu líder, sua religião, suas casas, seus entes queridos… sua civilização, enfim.
Mas quem são os bárbaros e quem são os civilizados? Quem é o “nós” e quem é o “eles”? Os sertões é um clássico porque sua contradição interna ainda é a mesma que a nossa, sua fratura exposta é a mesma que ainda nos incomoda. Como todo clássico, Os sertões vive e pulsa e respira porque ainda fala diretamente a nós.
O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, é um poema épico que, assim como Os sertões, foi escrito no calor do momento: narra um conflito que acabara de acontecer. Em 1756, Portugal e Espanha, inimigos sempre irreconciliáveis, se unem militarmente pela primeira vez em sua história para expulsar o povo guarani e os missionários jesuítas que os defendiam do território das Missões — hoje, na Argentina. Por seus esforços em construir o indígena como personagem-chave da literatura nacional, Basílio da Gama antecipa o indianismo fundacional de Alencar e de Gonçalves Dias. Por sua ambivalência em relação aos civilizados e aos bárbaros, antecipa as dualidades irreconciliáveis de Euclides da Cunha: os espanhóis, aliados de momento, não são amigos; os guaranis, adversários, se comportam como nobres e lutam por seus lares. Quem está certo? Quem está errado? O Uraguai, escrito na atmosfera humanista do iluminismo pombalino de meados do XVIII, em versos livres e em linguagem clara, é de certo modo mais aberto e mais tolerante, mais fluente e mais legível, do que Os sertões, quase esmagado pelo peso do determinismo científico do começo do século XX.
A escritora Carolina Maria de Jesus, mulher negra e autora de um diário sobre sua vida na favela (1960), entre muitas outras obras, foi durante décadas a pessoa autora brasileira, de qualquer sexo, mais vendida e mais conhecida em todo o mundo. Respondona e altiva, Carolina Maria de Jesus se recusou a interpretar o papel de “favelada bem-comportada” que quiseram lhe impingir e foi rapidamente colocada no papel de “Outra”, “selvagem”, “não-civilizada”: duvidavam até que tivesse escrito seus próprios livros — best-sellers no mundo inteiro, vamos lembrar. (Até poucos anos atrás, continuava mais conhecida no exterior: quando ensinei Quarto de despejo em uma universidade norte-americana, na década de 2000, a enorme maioria das pessoas leitoras do meu blog, no Brasil. nunca tinha ouvido falar dela.) Se, em Os sertões, Euclides da Cunha narra como o Exército exterminou um terrível Outro, no diário de Carolina Maria de Jesus temos a chance de ouvir esse Outro — na verdade, uma pessoa como nós, mas subalternizada na posição de Eterno Outro — falando em sua própria voz, sobre sua própria vida, sua própria subjetividade. O que não teriam nos contado os diários das mulheres sertanejas canudenses?
(Entrando agora, você assiste as primeiras quatro aulas na gravação, as seis seguintes ao vivo e ainda participa do nosso grupo no Whatsapp.)
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Um beijo do
Alex Castro
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