"Grandezas de candura", conto
Se você deixou para comprar "Mentiras reunidas" na última hora… a última hora é agora!
“Grandezas de candura” é um dos contos inéditos do meu novo livro Mentiras reunidas. Abaixo, na íntegra.
(A pré-venda de Mentiras reunidas se encerra essa semana. Depois, não vai ter mais como comprar. Se você deixou para a última hora… a última hora é agora.)
* * *
Era tarde da noite, estavam todos meio bêbados e alguém fez a pergunta a Tarquínio:
— Qual foi a melhor sensação da sua vida?
Depois, um deles riu. Na verdade, riram todos. Como se sabe, não é difícil fazer um bêbado rir.
Mas Tarquínio antecipara a pergunta e, enquanto os outros respondiam, lembrou-se de uma noite no Galeão, alguns anos antes. A tela do computador tinha acabado de avisar que o seu vôo se atrasaria em outra hora, além das duas que estava atrasado.
Na sala de embarque, por falta de cadeiras em número suficiente para as centenas de passageiros, as pessoas se espalhavam pelo chão ou se recostavam nas paredes.
Cachecóis, luvas e sobretudos jaziam largados por sobre as malas, enquanto camisas eram abertas até o umbigo e meias de lã retiradas. Com o calor tropical, as pessoas vestidas a caráter para o país frio para onde o vôo se destinava foram obrigadas a abdicar de sua elegância e admitir que ainda estavam no Brasil. O ar, desligado, fazia com que a sala de embarque cheirasse como uma academia de musculação.
Feliz por ter conseguido uma das últimas cadeiras, Tarquínio mantinha sua mala segura entre as pernas e ouvia rádio em seu walkman. O momento que mudou a sua vida — ele nunca poderia esquecer — foi quando entrou no ar, pela terceira vez em duas horas, a música da moda daquele verão, “O Canto da Cidade”, da Daniela Mercury
Nesse instante, — nesse exato instante! — Tarquínio, que odiava música baiana, abriu bem as narinas para soltar um longo suspiro de impaciência, e sentiu algo solto lá dentro.
Ele expirou e inspirou pelo nariz e não teve dúvidas. Havia algo em sua narina direita, uma meleca ou casca de ferida, que ia e vinha ao balanço do ar que passava. Era grande e viscosa, e apesar de estar solta o bastante para que Tarquínio a sentisse roçar nas paredes internas de seu nariz, ainda assim parecia presa em algum lugar.
Havia apenas uma solução.
Tarquínio olhou em volta, sondando as redondezas. A sala estava cheia de gente. Para qualquer direção que ele virasse o rosto, uma dúzia de pessoas o encarava. Se ele se levantasse, perderia o lugar e só deus sabe quando o avião chegaria.
Mas agora que sentira aquele roçar em seu nariz, não podia ignorá-lo. Tinha que tomar uma decisão.
Não conhecia ninguém naquela sala. Eles não sabiam o seu nome e ele não teria que conviver com eles. Era apenas uma multidão anônima, encalorada e impaciente, mais preocupada com seus problemas do que com a higiene digital de Tarquínio.
Ele tomou coragem e, com a tranquilidade de quem sabe não ter escolha, fechou os olhos e introduziu o indicador em sua narina direita.
Foi um momento mágico.
Todos os ruídos da sala de embarque cessaram e Daniela Mercury calou-se no rádio em respeito à fúria do embate. O chão e a cadeira sumiram, e era como se ele estivesse flutuando em pleno vácuo do espaço, onde nem gravidade ou oxigênio para propagação do som poderiam distraí-lo da batalha. Tarquínio não sentia mais nada além da emoção daquele combate primordial entre ele e a meleca.
De início, fez um reconhecimento do terreno, em que a ponta de seu dedo percorreu a extensão interior de sua narina. O inimigo, pelo tamanho de sua protuberância, foi fácil de localizar.
Numa manobra arriscada, Tarquínio girou o dedo, tentando desalojar o adversário com a unha. Mas a tática fracassou e tudo o que ele conseguiu foi esparramar a meleca pelas paredes do nariz.
Como a estratégia convencional parecia não funcionar, era hora de se apelar para soluções arrojadas. Retirou o dedo indicador do campo de batalha e decidiu apelar para o mindinho, de mais fácil acesso às regiões profundas de suas narinas.
O êxito foi absoluto: a medida que o novo contendor conseguiu arrastar o inimigo para a borda da narina, um forte sopro nasal encarregou-se de sua eliminação completa.
A meleca, derrotada, caiu nas mãos de Tarquínio.
O prazer do momento era tamanho que ele nem abriu os olhos. Em sua virilha, para atestar a volúpia que se apossara dele, uma ereção tentava lhe furar as calças. Tarquínio ficou ali, curtindo seu êxtase, com a meleca indefesa em suas mãos. Fez uma bolinha com ela e grudou-a embaixo da assento da cadeira.
O efeito da adrenalina foi passando e Tarquínio voltou a ouvir o burburinho da sala e a sentir o chão sob seus pés. No walkman, como se para comprovar que tamanho prazer se passara em tão pouco tempo, Daniela Mercury ainda estava cantando “O Canto da Cidade”.
Um calafrio de prazer o percorreu de alto a baixo e Tarquínio olhou em volta para seus companheiros de espera. Tudo continuava como antes.
Ele vencera, mas seu amigo bêbado, sem saber disso, o sacudiu de novo:
— E então, Tarquínio? Todo mundo falou, só falta você: qual foi a melhor sensação da sua vida?
Tarquínio encarou o grupo em expectativa e disse, sem hesitar:
— Ter comido a Lucília!
Alguém virou para os outros e gritou, às gargalhadas:
— Viu?! Eu não disse? Eu não disse? Quem me dera… Aquilo ali é o melhor cuzão do Brasil! — E de volta para Tarquínio: — Ela é boa mesmo? A melhor?
Tarquínio riu:
— A melhor!
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Mentiras Reunidas, em pré-venda
Está acontecendo a pré-venda do meu novo livro Mentiras reunidas, em versão capa dura, com bookbag, dedicatórias apócrifas e marcadores, e mais cinco contos exclusivos.
Essa versão capa dura só estará disponível nessa pré-venda: mais tarde, não estará disponível nem para venda pelo site, nem para venda em livrarias. Só nessa pré-venda, só agora. Depois, nunca mais.
No final do ano, se o resultado do capa dura for bom, vamos lançar Mentiras reunidas também nas versões brochura, ebook, áudiolivro, mas aí não vai ter bookbag, não vai ter capa dura e, mais importante, não vai ter os cinco contos exclusivos.
A edição brochura (se existir) será do mundo, vai vender nas livrarias e tal (espero!), mas esse capa dura, com a bolsa de brinde, é meu presente para minhas leitoras fiéis: ele reúne toda a minha ficção publicada e mais, doze contos inéditos, desde o meu primeiro conto, de 1987, até uma história escrita especialmente para esse livro, em 2019, passando pelos livros Mulher de um homem só (2009) e Onde perdemos tudo (2011).
Trinta e dois anos da minha produção artística, os frutos de todos os meus maiores esforços, em um só livro, só para você.
Cinco dos doze contos inéditos são exclusivos da versão capa dura e não estarão incluídos nas versões brochura, ebook e áudiolivro que venham a existir.
Todas as vendas serão realizadas pelo site da própria editora. (Dessa vez, não vou vender eu mesmo. Ou seja, não vai dar pra comprar na minha mão.) A editora aceita boleto, cartão de crédito e parcela em 3x. Para quem está no exterior, basta preencher um formulário e a editora entra em contato.
A pré-venda vai até 15 de abril e os livros começam a ser enviados em 31 de maio de 2021. (Repito: o livro não estará mais à venda, em nenhum meio, de nenhuma maneira, depois de 15 de abril.)
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