Novo curso: A Grande Conversa Brasileira, a ideia de Brasil na literatura
Em 10 aulas, a partir de abril de 2021
O curso
10 aulas, na primeira quinta-feira do mês, às 19h, entre abril de 2021 e janeiro de 2022.
Leituras em resumo
Links levam para a descrição de cada aula.
1ºabr21: Indianistas & inconfidentes: Romanceiro da inconfidência / Guarani / Cantos
6mai21: Escravistas & escravizados: Casa-Grande & Senzala / Úrsula / Escravos
3jun21: Gaúchas & amazônicas: Asa esquerda do anjo / Galvez, imperador do Acre / Cobra Norato
1ºjul21: Burguesas & agregadas: Dom Casmurro / Minha vida de menina / Poemas dos becos de Goiás
5ago21: Civilizados & bárbaros: Sertões / Quarto de despejo / Uraguai
2set21: Loucas & grevistas: Parque Industrial / Eu e outros poemas / Cemitérios dos vivos
7out21: Bandeirantes & jagunças: Grande Sertão: Veredas / Muralha / Invenção de Orfeu
4nov21: Guerrilheiras & torturadores: Sombras de reis barbudos / Meninas / Júbilo, memória, noviciado
2dez21: Retirantes & sebastianistas: Quinze / Romance da Pedra / Morte e vida Severina
6jan22: Místicas & engajadas: Hora da estrela / Paixão segundo G.H. / A teus pés
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Veja a ementa completa ou compre agora ou continue lendo. :)
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Resumo
Um panorama da história cultural do Brasil, a partir de suas obras literárias mais canônicas e influentes, seguindo dois eixos:
Uma discussão literária sobre obras literárias canônicas, escolhidas principalmente por sua importância e qualidade estética, mas também por serem representativa dos estilos e prioridades, ideias e ansiedades de sua época;
Uma explanação histórica sobre o período, com foco nas continuidades culturais e nexos causais entre as épocas abordadas, formando assim uma grande narrativa sequencial da história cultural brasileira.
Premissas
Mesmo as pessoas mais cultas se sentem ocasionalmente intimidadas diante das grandes obras literárias canônicas e precisam de ajuda profissional para lê-las.
Além disso, apesar de muitas vezes conhecerem bem essa ou aquela época histórica, sua visão global é fragmentada e não conseguem enxergar como as épocas se seguem e se encaixam, como uma obra dialoga com outra na Grande Conversa.
Objetivos
Ajudar as pessoas alunas a:
Ler e extrair o máximo benefício estético das grandes obras literárias brasileiras e, no processo,
Formar e visualizar um panorama coerente da história cultural brasileira, da ideia que o Brasil narra de si mesmo.
Formato
Uma aula de literatura é essencialmente democrática e dialógica. A professora não é a dona-do-saber distribuindo conhecimento às discípulas inferiores, mas uma facilitadora de um compartilhamento de vivências de leitura entre pessoas iguais. Além disso, cumpre as seguintes tarefas:
Contextualizar a obra em sua época e cultura, iluminando tudo que já estaria iluminado para as leitoras contemporâneas, mas não para nós;
Ensinar um certo tipo de raciocínio literário: como abordar e interrogar a obra, como formular hipóteses e ler entrelinhas, etc;
Apresentar a fortuna crítica da obra, ou seja, outras leituras e interpretações que recebeu ao longo dos séculos, e situá-la na Grande Conversa, apontando quem a influenciou e por quem foi influenciada.
Por que estudar literatura brasileira?
“Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra que nos exprime. Senão for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõe, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou compreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimação penosa da cultura europeia, procuravam estilizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam – dos quais se formavam os nossos.” (Antonio Cândido)
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A Grande Conversa
Ao longo dos séculos e dos milênios, sempre que uma pessoa artista ou pensadora, filósofa ou cientista, cria uma nova obra intelectual, ela está ativamente dialogando com todas as suas predecessoras, seja somando ou reagindo, se opondo ou se juntando. Esse diálogo é o que chamamos de a Grande Conversa. Estudá-la não significa concordar com os valores ultrapassados que a moldaram, mas sim adquirir as ferramentas para moldarmos a Grande Conversa do futuro de acordo com nossos próprios valores, em nossos próprios termos.
Decolonizando o cânone
A Grande Conversa Brasileira é um curso sobre o cânone literário, mas não somente sobre ele: ao falarmos sobre o cânone, é importante falarmos também de todas as vozes que foram silenciadas, esquecidas e deixadas pelo caminho. Quase todas, infelizmente, se perderam para nós, mas algumas ainda podem ser recuperadas, ouvidas, valorizadas. Por isso, em cada aula, discutiremos também obras que, a partir de outras perspectivas, complementam e interpelam, questionam e desconstroem, desmentem e desmascaram, a unanimidade e a complacência do cânone.
Crie sua própria experiência
Não é necessária a leitura prévia das obras, pois um dos objetivos do curso é que cada participante crie a sua própria experiência, única e individual, lendo as obras que preferir, de acordo com seus próprios interesses. Caso as participantes já tenham lido as obras principais, ou queiram mergulhar em mais leituras relacionadas, a ementa oferece sugestões de outras obras de apoio, tanto de ficção quanto de não-ficção, que dialogam com as leituras.
Leia mulheres
A cada aula, será discutida pelo menos uma obra escrita por uma autora mulher. Para quem está tentando ler mais mulheres, é possível fazer esse curso inteiro lendo somente grandes autoras brasileiras. Das 30 leituras principais do curso, 14 foram escritas por mulheres.
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Funcionamento
As aulas acontecem online, na primeira quinta-feira do mês, a partir das 19h, através do aplicativo Zoom.
A etapa expositiva dura cerca de duas a três horas. Depois disso, abrimos para perguntas e comentários, e continuamos enquanto houver participantes interessadas em conversar informalmente sobre as obras.
A gravação em vídeo das aulas ficará disponível em um grupo fechado do Facebook até, no mínimo, 31 de dezembro de 2024. (É preciso se inscrever no Facebook para ter acesso ao grupo)
Entre uma aula e outra, serão disponibilizadas instruções para o encontro seguinte, com o eixo temático da aula, as prioridades de leitura, os capítulos mais importantes para quem não conseguir ler tudo, alguns links para o que estiver disponível na internet.
Comunidade no Whatsapp
O coração do curso é o grupo no Whatsapp, onde participantes passam o mês compartilhando comentários, sugerindo temas, fazendo perguntas, resolvendo dúvidas. As participantes também recebem áudios exclusivos, quase minipodcasts, com pequenas pré-aulas sobre as leituras. Ao longo de todo o mês, entre uma aula e outra, é aqui onde realmente acontece a mágica da leitura compartilhada e coletiva, onde grandes amizades nascem e florescem. A aula expositiva acaba sendo em larga medida pautada pela conversa nesse grupo.
Como tudo na Grande Conversa Brasileira, a participação no grupo de Whatsapp é totalmente opcional, mas também sujeita ao bom comportamento da participante. As regras são simples: o grupo é exclusivamente para a troca de comentários, impressões, perguntas, etc, inclusive links e arquivos, sobre as leituras do curso ou temas de História, Literatura ou Arte de modo geral. Qualquer comportamento agressivo ou violento, comentário insultuoso ou ad hominem, assédio moral ou sexual, seja no público ou no privado, podem resultar em expulsão imediata da participante, sem devolução do valor pago.
Professor
Alex Castro é formado em História pela UFRJ com mestrado em Letras por Tulane University (Nova Orleans, EUA), onde também ensinou Literatura e Cultura Brasileira. Tem oito livros publicados, no Brasil e no exterior, entre eles entre eles A autobiografia do poeta-escravo (Hedra, 2015), Atenção. (Rocco, 2019) e Mentiras Reunidas (Oficina Raquel, 2021). Em 2020, coordenou o curso Introdução à Grande Conversa: Um passeio pela história do Ocidente através da literatura, nos mesmos moldes desse.
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Conteúdo do curso
Ao comprar o curso A Grande Conversa Brasileira, você tem direito a:
Assistir ao vivo uma aula mensal via Zoom (entre 1º de abril de 2021 e 6 de janeiro de 2022);
Ter acesso ao grupo fechado no Facebook, onde estão arquivadas as aulas gravadas (até 31 de dezembro de 2024);
Participar diariamente do grupo de conversas no Whatsapp (até 31 de janeiro de 2022).
Compre
Duas opções de pagamento para o curso completo, em 10 aulas:
10 pagamentos mensais de R$150, via PagSeguro. (Você pode cancelar a qualquer momento, mas não há devolução de valores já pagos.)
Pagamento único, à vista, de R$999, no pix eu@alexcastro.com.br. (Devolução em até 30 dias após a compra, menos taxa administrativa de R$50. Envie o comprovante para o email acima.)
Não são vendidas aulas individuais.
Desconto
As primeiras 50 compradoras pagam R$899, somente à vista, somente via pix: eu@alexcastro.com.br (Não há devolução desse valor promocional. Envie o comprovante para o email acima. Enquanto esse aviso estiver aqui, é porque está valendo esse valor. Já foram 39, faltam 11.)
Exterior
Quem não tem conta bancária ou cartão de crédito brasileiro, pode fazer um pagamento único, na cotação do dia, via Amazon gift card (email: lll.alexcastro@gmail.com; só Amazon EUA ou Espanha: não tenho conta nas outras Amazon) ou Paypal.
Bolsas
Um número limitado de bolsas parciais está disponível para pessoas negras, pessoas com deficiência, povos originários, recipientes do Bolsa-Família, pessoas alunas ou professoras do ensino público fundamental ou médio, mediante preenchimento de uma ficha. Bolsistas precisam estabelecer o compromisso de 1) ler pelo menos uma das obras por aula; 2) participar ativamente do grupo no Whatsapp compartilhando impressões e comentários sobre as obras; 3) estar presentes nas aulas ao vivo no Zoom. Fale comigo pelo email eu@alexcastro.com.br, assunto “Pedido de bolsa”.
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Abaixo, os resumos de três aulas. Para saber mais, visite a página do curso.
1. Indianistas & inconfidentes
(Quinta, 1º de abril de 2021)
Na primeira aula, começamos do começo: com os povos originários que habitavam essa terra que viria a se chamar Brasil e com os primeiros portugueses que projetaram sobre o Novo Mundo sua visão edênica de um paraíso terrestre.
O Guarani (1857), de José de Alencar, é um thriller de capa-e-espada muito mais empolgante do que nos venderam na escola. Além disso, é um livro que está no centro do nosso processo de formação nacional: esse romance de uma branca pura e idealizada com um índio embranquecido e cavalheiresco, onde o negro não tem lugar, é a cristalização da narrativa que a elite do Segundo Reinado fazia da nação que estava inventando.
Em poesia, leremos os Cantos indianistas de Gonçalves Dias (publicados entre 1846 e 1851), certamente nosso maior poeta do XIX. Por mais que o indianismo hoje nos pareça conservador e idealizado, em sua época ele foi revolucionário: além de ajudar a criar nossa identidade nacional literária, ele mudou o foco da nossa literatura nascente, da Europa para os povos originários. E essa proeza, realizada com verve e talento, foi em grande parte mérito da poesia musical de Gonçalves Dias.
Tanto quanto Alencar e Gonçalves Dias idealizam o indígena, Cecília Meirelles também idealiza os inconfidentes. Com admirável poder de aglutinação e belíssima sonoridade, o Romanceiro da Inconfidência (1953), quase um resumo da Grande Conversa Brasileira, amarra diversos temas de diversas épocas de nossa história: partindo dos sons e dos ritmos dos romanceiros medievais, que são nossa mais profunda herança literária portuguesa, Meireles recria a epopéia de nossos inconfidentes, homens iluministas do século XVIII, a partir das preocupações políticas e prioridades estéticas dos séculos XIX e XX, ou seja, o projeto republicano de construir novos heróis nacionais não-vinculados à monarquia.
Mas, afinal, o que é um herói nacional? O que é um símbolo nacional? Por fim, o que é o Brasil?
5. Civilizados & bárbaros
(Quinta, 5 de agosto de 2021)
Poucos anos depois da Proclamação da República, o Exército Brasileiro mobilizou quase todas as suas forças para enfrentar e destruir uma pequena aldeia rebelada no sertão da Bahia, Canudos. Entre os correspondentes de guerra, estava Euclides da Cunha, de O Estado de São Paulo, para contar aos seus leitores paulistas sobre as hordas bárbaras que ameaçavam a sagrada República. Se tivesse conseguido contar o que pretendeu, hoje não seria nem nota de pé de página na História da Literatura. É preciso ler Os sertões sem tentar classificá-lo, pois é nas classificações fáceis que ele escorre por nossos dedos: nas entrelinhas do projeto classificador de Euclides da Cunha, pelas frestas de seu determinismo racial, Os sertões é um livro que vibra de idealismo e compaixão.
O estilo barroco-científico febril de Euclides da Cunha é marcado por uma eterna dicotomia entre opostos irreconciliáveis: ler Os sertões é acompanhar, ao vivo, uma verdadeira batalha entre esses titãs. De um lado, um militar positivista e patriótico, narrando a épica batalha através da qual o glorioso (e civilizado!) exército nacional derrotou uma horda de fanáticos primitivos e degenerados que ameaçava a própria essência do país. Do outro lado, um escritor, um cronista e um jornalista, mestre contador de histórias, arguto observador, dotado de enorme empatia, desmentindo todas as teorias do positivista ao mostrar homens e mulheres de fibra e de coragem, de força física e de inteligência, vivendo momentos dramáticos de intensa humanidade enquanto defendiam seu líder, sua religião, suas casas, seus entes queridos… sua civilização, enfim.
Mas quem são os bárbaros e quem são os civilizados? Quem é o “nós” e quem é o “eles”? Os sertões é um clássico porque sua contradição interna ainda é a mesma que a nossa, sua fratura exposta é a mesma que ainda nos incomoda. Como todo clássico, Os sertões vive e pulsa e respira porque ainda fala diretamente a nós.
O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, é um poema épico que, assim como Os sertões, foi escrito no calor do momento: narra um conflito que acabara de acontecer. Em 1756, Portugal e Espanha, inimigos sempre irreconciliáveis, se unem militarmente pela primeira vez em sua história para expulsar o povo guarani e os missionários jesuítas que os defendiam do território das Missões — hoje, na Argentina. Por seus esforços em construir o indígena como personagem-chave da literatura nacional, Basílio da Gama antecipa o indianismo fundacional de Alencar e de Gonçalves Dias. Por sua ambivalência em relação aos civilizados e aos bárbaros, antecipa as dualidades irreconciliáveis de Euclides da Cunha: os espanhóis, aliados de momento, não são amigos; os guaranis, adversários, se comportam como nobres e lutam por seus lares. Quem está certo? Quem está errado? O Uraguai, escrito na atmosfera humanista do iluminismo pombalino de meados do XVIII, em versos livres e em linguagem clara, é de certo modo mais aberto e mais tolerante, mais fluente e mais legível, do que Os sertões, quase esmagado pelo peso do determinismo científico do começo do século XX.
A escritora Carolina Maria de Jesus, mulher negra e autora de um diário sobre sua vida na favela (1960), entre muitas outras obras, foi durante décadas a pessoa autora brasileira, de qualquer sexo, mais vendida e mais conhecida em todo o mundo. Respondona e altiva, Carolina Maria de Jesus se recusou a interpretar o papel de “favelada bem-comportada” que quiseram lhe impingir e foi rapidamente colocada no papel de “Outra”, “selvagem”, “não-civilizada”: duvidavam até que tivesse escrito seus próprios livros — best-sellers no mundo inteiro, vamos lembrar. (Até poucos anos atrás, continuava mais conhecida no exterior: quando ensinei Quarto de despejo em uma universidade norte-americana, na década de 2000, a enorme maioria das pessoas leitoras do meu blog, no Brasil. nunca tinha ouvido falar dela.) Se, em Os sertões, Euclides da Cunha narra como o Exército exterminou um terrível Outro, no diário de Carolina Maria de Jesus temos a chance de ouvir esse Outro — na verdade, uma pessoa como nós, mas subalternizada na posição de Eterno Outro — falando em sua própria voz, sobre sua própria vida, sua própria subjetividade. O que não teriam nos contado os diários das mulheres sertanejas canudenses?
10. Místicas & engajadas
(Quinta, 6 de janeiro de 2022)
Não consigo pensar em nenhuma outra pessoa autora que tenha escrito três romances no nível de Paixão segundo G.H (1964), Água viva (1973) e A hora da estrela (1977). Guimarães Rosa escreveu um. Machado de Assis, dois. Victor Hugo, dois. Clarice Lispector é um milagre inexplicável.
Poucos anos depois de O romance da pedra implodir o “romance de trinta”, Clarice Lispector indicou um novo caminho para a literatura brasileira. Nas mãos de outra escritora, A hora da estrela poderia facilmente ter se transformado em um “romance de trinta” tardio: escrito por uma pessoa da elite, olhando o Outro de cima para baixo, destacando sua situação precária e submissa, patética e subalterna, e enfatizando sua necessidade de contar com uma intelectual que lhe represente e fale em seu nome. Lispector, entretanto, insere um narrador intermediário entre ela e sua personagem subalterna: A hora da estrela é a história de um olhar: não sobre as dificuldades de uma nordestina pobre no Rio de Janeiro (uma mulher que Lispector não teria como não ver com condescendência), mas sim sobre as dificuldades de um escritor carioca privilegiado em contar a história de uma nordestina pobre no Rio de Janeiro. Em enxergá-la como gente. Em reconhecer sua humanidade. O esforço de Rodrigo S.M., narrador de A hora da estrela, é o próprio esforço da cultura dominante (dele, de Lispector, e o nosso) em entender e explorar, domar e deglutir, colonizar e controlar a “cultura” (que mal reconhecemos como cultura) do Outro (que mal reconhecemos como gente). Finalmente, o esforço fracassa: o subalterno não se presta ao papel de figurante que lhe reservaram. Macabéa implode os limites impostos por Rodrigo (e por Lispector) e acaba tendo que ser destruída — como quem abandona uma tese inconclusa, como quem sacrifica um cavalo manco. A hora da estrela problematiza, desconstrói e, enfim, coloca em xeque a própria possibilidade de uma intelectual privilegiada realmente contar a história de uma pessoa em posição de subalternidade. Como escrever “romances sociais” depois disso?
Não satisfeita em implodir o “romance social”, Lispector também implode o “romance psicológico”: em Paixão segundo G.H. e Água viva, ela esgarça até o limite os recursos existenciais do monólogo interior e consegue criar experiências literárias verdadeiramente místicas. Nada efetivamente acontece em nenhum dos dois romances: nas trezentas páginas de Paixão segundo G.H. uma patroa, entrando no quarto da empregada que acabara de abandonar o emprego, encontra uma barata morta… e a come; em Água viva, não acontece nem isso. Mas Lispector, escrevendo sempre no limite das palavras e tentando articular um conhecimento que não pode concebivelmente ser articulado, possibilita às leitoras um encontro com verdades profundas, iluminadas, transcendentais, incomunicáveis.
Um texto místico, quase uma contradição em termos, é sempre uma tentativa de explicar algo que, por definição, não pode ser explicado. Em poesia, leremos o único livro publicado de Ana Cristina César, talvez a mais famosa representante da poesia marginal dos anos 1970 e 1980 e fã assumida de Lispector: A teus pés (1982). Assim como Clarice na prosa, César também buscava criar uma poesia no limite do que poderia ser comunicado, uma busca mística por um significado além das próprias palavras.
Por fim, retomamos a dicotomia “civilização versus barbárie”, tema central da literatura brasileira e de todo o nosso curso. Quem representa a barbárie? Macabéa ou Rodrigo S.M.? A empregada ou a patroa? Será o bandido de quem temos medo ou será que somos nós, aqui, lendo literatura e fazendo cursos sobre a Grande Conversa? Esse é o espelho implacável que a obra de Lispector nos oferece. Sem ter para onde fugir, só nos resta comer a barata.
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Muito, muito obrigado por ter lido até aqui. :)