A felicidade dos demônios
As pessoas do futuro vão nos julgar duramente. Na verdade, espero que julguem. Significa que melhoraram. Pior será se forem iguais a nós.
Nós, pessoas brasileiras brancas de classe média, moramos no inferno e temos uma vida boa e feliz.
Sabe quem mora no inferno e tem uma vida boa e feliz?
Os demônios.
* * *
Alemanha nazista, verão de 1939 ou 1940. Um casal apaixonado, nas areias de uma praia, completamente absortos um no outro, concentrados em seu amor, entregues ao seu futuro cheio de possibilidades.
* * *
O Leme é um sub-bairro de Copacabana, um canto pacífico e fora de mão onde convivem os ricos da praia, os pobres do morro e todas as outras classes sociais entre elas. Um resumo do Rio de Janeiro.
Segunda passada, 17 de setembro de 2018, eu estava na praia do Leme.
Em um banco, uma senhorinha, suas amigas e um poodlezinho.
Andando pelo calçadão, um menino e seu labrador, de focinheira.
Correndo pela areia, um moço bombado e seus dois buldogues ambos soltos.
O menino vê os buldogues vindo na direção dele e pára.
Não adianta: eles vêm direto pra cima dele.
O menino tenta gritar:
“Segura eles, segura eles.”
Não adianta: os buldogues avançam sobre seu labrador que, coitado, de focinheira, não pode nem se defender.
A senhorinha e suas amigas gritam, o poodle rosna, os buldogues atacam, o labrador chora, uma confusão geral.
O dono dos buldogues finalmente consegue alcançá-los e separar todo mundo.
Mas o homi está puto. Muito puto.
Ele grita com as pessoas que reclamaram:
“Porra, nem sangrou, tá tudo bem!”
Ele grita com o menino do labrador:
“Caralho, por que não deu meia-volta?”
Ele grita com seus próprios buldogues
“Seus merdas, desobedientes, vocês vão ver!”
E lá se vai ele, chutando e xingando seus próprios buldogues, e ficamos nós, as testemunhas, nos olhando estupefatas:
“Ele jura que está todo mundo errado, menos ele.”
* * *
Presenciei essa cena e quis escrever esse texto, sobre as inabaláveis autoestima e autoconfiança do homem hetero branco, blá blá blá.
Mas, aí, nesse mesmo Leme, nesse mesmo dia, a poucos metros mas muitos mundos de distância, um pai de família negro, vigia de restaurante no bairro, foi até o ponto de ônibus esperar sua mulher e seus dois filhos que estavam chegando de Kombi. Sabe como é, chuva fina, comunidade tensa, queria voltar com eles pra casa, protegê-los. Estava vestindo bolsa-canguru e tudo, para o filhinho de quatro meses.
Policiais confundiram seu guarda-chuva com um fuzil e abriram fogo.
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Às vezes, acho que a história julgará as pessoas cariocas brancas de classe média de hoje como julgou as pessoas civis da Alemanha durante a Segunda Guerra:
“Tinha gente sendo colocada no forno e metralhada por um guarda-chuva a um quarteirão da sua casa.
Com que direito você ousa prosseguir com sua vida normal, escrevendo sobre atenção e cuidado, lendo Goethe e ouvindo Beethoven, ao invés de largar tudo e lutar por essas vítimas?
Que tipo de pessoa é você se resolver esse problema não toma precedência sobre tudo?”
* * *
Volto a essa foto. Olho, observo, analiso, absorvo cada detalhe.
Já eu, que não sou nazista (Deus me livre!), que sou muito melhor do que essas pessoas alemãs alienadas ou cúmplices, estou aqui, vivendo minha vida e trabalhando meu trabalho, tomando vinho e consumindo séries, assinando petições online e compartilhando textos no Facebook, abraçando minha linda namorada nas areias de Ipanema e fazendo planos para o futuro…
… enquanto o Brasil queima; enquanto a juventude negra é massacrada; enquanto mulheres não conseguem andar com segurança no espaço público; enquanto homossexuais são perseguidos e pessoas trans invisibilizadas.
Eu me pergunto:
“De que maneira sou melhor que esse casal?”
Para o moço morto por portar um guarda-chuva a duas quadras da minha casa, de que maneira eu sou melhor, mais útil, mais benéfico, do que esse casal para seus vizinhos judeus enviados para Auschwitz?
Na ponta da minha língua, tenho dezenas de justificativas perfeitamente razoáveis que me absolvem até o fim dos tempos.
Mas a foto continua me acusando.
Não é uma foto: é um espelho.
* * *
As pessoas do futuro vão nos julgar muito duramente.
Na verdade, espero que julguem.
Significa que melhoraram.
Pior será se forem iguais a nós.
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A foto, uma foto oficial de propaganda do governo nazista, está em exposição no Museu Topografia do Terror, em Berlim, no prédio onde funcionou a sede da Gestapo.
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Já te ajudei a enxergar o que antes não enxergava?
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Um beijo e fiquem bem,
Alex Castro
Que porrada, mas vivemos com essas histórias nos rondando e parece que nos acostumamos com elas. Btw, abri a newsletter num metrô em Berlim. Uma pessoa aí meu lado pareceu reparar na foto do casal nazista e me olhou. Rolou um pânico aqui dela achar que eu tenho alguma simpatia pelo nazismo por se tratar de uma foto de “amor.” 👀
Não resta muito (ou nada?) a dizer sobre o texto. É isso e ponto.
Só queria dizer que acordei com vontade de escrever sobre isso também. Mas diante das suas palavras, decido pensar mais um tempo... a escrita que eu faria, talvez não fosse pra ninguém quanto pra mim mesma pra começo de conversa!