O "Fausto", de Goethe, é a síntese da cultura ocidental
Uma obra que resume toda a cultura ocidental anterior e antecipa todos os paradoxos da cultura ocidental futura.
fausto, obra-prima da vida de goethe, talvez maior nome da literatura alemã, escrito ao longo de sessenta anos, é a história do homem que vende sua alma ao diabo — nesse caso, mefistófeles.
em seu afã criador e aperfeiçoador, tentando adaptar o mundo a si mesmo, fausto é a própria encarnação do capitalismo, destruindo tudo o que toca.
(a aula de hoje do curso Grande Conversa Fundadora é sobre o Fausto de Goethe. ainda dá tempo de se inscrever aqui. as aulas ficam gravadas.)
as duas histórias mais conhecidas são, com justiça, os pontos altos do poema: a “tragédia de gretchen”, na primeira parte, e a “tragédia do colonizador”, ou “colônia de fausto”, no quinto ato da segunda parte.
(filemon e baucis, na primeira cena do quinto ato da segunda parte, são os protótipos daquilo que hoje se tornou lugar-comum: o bondoso casal de velhinhos cuja única função narrativa é ser trucidado e estabelecer além de qualquer dúvida a malvadeza do vilão.)
o poema busca abraçar o mundo, a experiência humana e todo o conhecimento literário e filosófico, teológico e científico da humanidade até então.
ou seja, é tão amplo e descomunal e ambicioso e genial quanto o homem que se dedicou a escrevê-lo.
na verdade, que projeto poderia ser mais literalmente fáustico do que passar sessenta anos escrevendo o fausto?
talvez fosse o final perfeito para um poema tão metalinguístico: fausto, quando fracassa seu projeto colonizador, em vez de morrer, senta-se para começar a escrever o poema que estamos lendo.
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alguns trechos comentados:
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prisão verdade
dois versos que cabem na prisão verdade:
“O que hás herdado de teus pais,
Adquire, para que o possuas.” (682-3)
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tentação ao suicídio
desesperado com a falta de sentido da vida, fausto contempla o suicídio. falando em voz alta, tenta juntar coragem para o gesto:
“Atreve-te a romper esses portais
Dos quais cada um teme o terror sombrio;
É tempo de provar que, à altura de imortais,
Em nada o cede do homem o alto brio,
De não tremer ante a sinistra gruta
Em que a imaginação cria tormento eterno.
De arremessar-se a essa abertura abrupta,
Em cuja estreita boca arde, flamante, o inferno,
De, plácido, empreender essa jornada,
E seja a risco, até, de resvalar no Nada.” (710-9)
vale a pena lembrar que o primeiro grande sucesso literário de goethe, os sofrimentos do jovem werther (1774), teria causado uma onde suicídios pela europa, imitando o gesto final do protagonista.
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nossa cegueira constitutiva
esses outros versos poderiam ser a epígrafe do livro das prisões, que será, afinal, sobre todas as alternativas que nunca enxergamos:
“O que se ignora é o que mais falta faz,
E o que se sabe, bem algum nos traz.” (1066-7)
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homenagens aos assassinos
sobre alquimia, ontem, homeopatia, hoje:
“Soa hoje a escárnio o ruído que me aclama.
Pudesses ler-me no íntimo, ai!
Quão pouco dignos de tal fama
Foram o filho como o pai!
Obscuro homem de bem esse era,
Que a natureza e seu sagrado engenho
Sondava com inteligência austera,
Porém com fantasioso empenho;
Que, em companhia de sectários,
Trancando-se na negra cava,
Com fórmulas de electuários,
O adverso um a outro misturava. …
Era o remédio, faleciam os pacientes,
Sem que alguém indagasse: e quem sarou do mal?
Assim, com drogas infernais, mais males
Causamos nesses morros, vales,
Do que da peste as feras lidas.
Dei eu próprio a milhares o veneno,
Foram-se; devo eu ver, sereno,
Que honram os torpes homicidas.”
(1030-55)
(um artigo meu sobre homeopatia.)
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o gênio que sempre nega, a carne que sempre afirma
“O Gênio sou que sempre nega!
E com razã0; tudo o que vem a ser
É digno só de perecer;
Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais.
Por isso, tudo a que chamais
De destruição, pecado, mal,
Meu elemento é, integral.”
(1338-44)
um dos trechos mais famosos, a apresentação do demônio mefistófeles.
como diz marcus vinicius mazzari, nas notas da edição da 34, essas palavras ecoam por várias literaturas.
em “a igreja do diabo”, machado de assis o coloca se apresentando assim:
“senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.”
já james joyce define o fluxo de consciência de molly bloom, no último capítulo de ulisses, como sendo a
“carne que sempre afirma”
(o romance termina com a palavra “sim”.)
inspirado nesses mestres, compus uma nova biografia:
“alex castro é o espírito que sempre nega, a carne que sempre afirma.”
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caos e entropia
mefistófeles:
“Quando o homem, o pequeno mundo doudo,
Se tem habitualmente por um todo;
Parte da parte eu sou, que no início tudo era,
Parte da escuridão, que à luz nascença dera,
À luz soberba, que, ora, em brava luta,
O velho espaço, o espaço à Noite-Mãe disputa;
Tem de falhar, porém, por mais que aspire à empresa,
Já que ela adere aos corpos, presa.
Dos corpos flui, beleza aos corpos dá,
Um corpo impede-lhe a jornada;
Creia, pois, que não dure nada,
E é com os corpos que perecerá.”
(1347-58)
(dois textos meus sobre entropia: a entropia e o tempo & como desmexer um ovo mexido.)
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quem nunca?
fausto amaldiçoa tudo, em um incrível, poderoso desabafo:
“Maldita seja a presunção,
Em que o critério se emaranha!
Maldito o encanto da visão
Que no íntimo sensual se entranha!
Maldito o que em vão sonho enleia,
De fama e glória o falso brilho!
Maldito o haver que lisonjeia
Como lar, servo, esposa, filho!
Mamon maldito, quando à empresa
Audaz seu ouro nos arroja,
Quando aos prazeres e à moleza,
Em seda e plumas nos aloja!
Do amor, maldita a suma aliança!
Maldita da uva a rubra essência!
Maldita fé, crença e esperança!
E mais maldita ainda, a paciência!”
(1591-1606)
mamon era o demônio da riqueza.
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sempre ridícula nostalgia
nunca vi nenhuma nostalgia que não fosse fundada em uma sólida ignorância do passado.
quatro versinhos, falados por um velho ranzinza:
“Tudo está roto, agora, é desaforo!
Só os bons tempos ainda exalto;
Pois, se houve alguma idade de ouro,
Foi quando estávamos nós no alto.”
(4080-4)
(um texto meu sobre nostalgia.)
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a tragédia de gretchen
da chamada “tragédia de gretchen”, história dentro da história que ocupa a segunda— metade da primeira parte de fausto, eu sublinhei pouco.
mas ela não deixa de ser incrível:
a felicidade de gretchen depois de transar com fausto, o modo diferente como ela agora escuta as histórias de perdição de outras mulheres, seu medo do amante ter desaparecido, seu tormento na catedral, tudo culminando na lindíssima última cena, em sua cela, onde espera a execução pelo crime de… aborto.
o que poderia ser mais contemporâneo e atual?
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a segunda parte do fausto
a segunda parte, mais longa, foi terminada poucos meses antes da morte de goethe e publicada, por vontade dele, postumamente.
walter kaufmann, um filósofo alemão radicado nos eua a quem serei sempre grato por ter me ensinado existencialismo e por ter tão bem traduzido nietszche, fez uma excelente, incrível mesmo, tradução da primeira parte do fausto, mas se recusou a traduzir a segunda, dizendo:
“deixar goethe falar inglês é uma coisa, transpor ao inglês sua tentativa de imitar poesia grega em alemão é outra.”
para mim, que não conheço alemão, lendo a tradução de jenny klabin segall, a mudança foi imperceptível mas fiquei sempre com o aviso de kaufmann na cabeça.
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uma crítica ao colonialismo
costuma-se dizer que a primeira parte de fausto é mais íntima e mais interna, as cenas quase sempre acontecendo em locais privados, enquanto a segunda é mais política e mais pública, com cenas descomunais de grandes bailes, grandes batalhas, grandes construções.
uma distinção possível, inspirada pelo comentário de kaufmann, é que a primeira parte é a única realmente alemã.
já a segunda seria mezzo grega, retornando sempre a motivos, personagens, temas clássicos, e também mezzo-americana (ou talvez até africana!), pois o quinto ato, o episódio chamado de “colônia de fausto”, remete às obras e aos crimes cometidos por colonizadores europeus em suas colônias fora da europa.
aliás, não fosse a loucura da era hitler, capaz de fazer um estrago desproporcional ao piscar de olhos histórico que durou, talvez hoje louvássemos o povo alemão como os europeus menos culpados dos crimes do colonialismo.
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meritocracia é coisa do diabo
segunda parte, primeiro ato: mefistófeles faz pouco dos sábios alquimistas que buscavam a pedra filosofal e, ao mesmo tempo, defende a infernal ideia da meritocracia
(eu sempre soube que a meritocracia tinha sido inventada pelo diabo pra foder com a gente!)
“Que o mérito e a fortuna se entretecem,
Em tontos desses é ideia que não medra;
E se a pedra filosofal tivessem,
Ainda o filósofo faltava à pedra.”
(5061-5)
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o bem supremo do homem
“estremecer”, ou seja, sentir, emocionar-se, maravilhar-se, “the thrill of awe”, é o bem supremo do homem.
(fausto fala isso com inveja, pois, ao longo de todo o poeta, ele é mostrado como um homem fleumático, impassível, que nada faz “estremecer”.)
“Não viso a enrijecer! Sentir não temo,
É estremecer do homem o bem supremo;
Por alto que lhe cobre o preço o mundo,
Estremecendo, o Imensurável sente a fundo.”
(6271-4)
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ambição destrutiva
segunda parte, segundo ato: manto, profetisa e sacerdotisa de apolo, descreve fausto:
“Esse é a quem amo, quem almeja o Impossível!”
(7488)
o poema fausto pode ser visto como uma longa descrição de todo potencial destrutivo desse anseio faustiano pelo impossível: que o digam gretchen e sua família, que o digam baucis, filemon e até o pobre náufrago que tinham salvo.
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se não fossem as bruxas, quem iria querer ser diabo?
mefistófeles, fazendo pouco dos homens, trouxas burlados desde adão:
“Homens, nós, sempre essa maldição!
Trouxas burlados desde Adão!
Fica-se velho, mas sagaz?
Não foste já logrado assaz?Da grei se sabe que não vale nada,
Ventre enfaixado, cara maquilhada;
Para retribuir, não tem nada de são;
Onde se pegue é tudo podridão.
Vemo-lo, ouvimo-lo, sabê-lo cansa,
Mas se a súcia assobia, a gente, ainda assim, dança! …
Se não houvesse bruxas, diabo
Algum ser diabo ainda quisera!”
(7710-7725)
“grei”, que significa “povo”, nesse caso quer dizer, naturalmente, as mulheres, que enfaixam o ventre com corpetes e maquiam a cara.
o significado literal dos últimos versos, em nota de marcus vinicius mazzari, é:
“Se não houvesse bruxas, / Quem, diabo, ia querer ser diabo!”
e eu, que sempre tive tesão só pelas bruxas mais malvadas, dei um sorriso cúmplice: quem nunca fez loucuras por uma bruxa?
(leia meu elogio às malvadas.)
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a tragédia do colonizador
para quem não se empolgou muito com a primeira parte do fausto, recomendo ler somente o quinto ato da segunda parte, episódio conhecido como “a colônia de fausto”.
em retribuição ao seus serviços ao imperador, fausto recebe um território para colonizar. imediatamente, ele se joga em uma empreitada faraônica, aterrando o mar, irrigando as terras, transpondo os rios.
os planos de fausto ecoam não apenas algumas obras sendo realizadas na época na europa, como o porto de bremen, mas também obras faraônicas então sendo planejadas, como o canal do panamá e de suez. lembrem-se que estamos entrando no século xix, o último século onde o ser humano sinceramente acreditava no progresso e na ciência.
entretanto, para que sejam realizadas essas obras que teoricamente beneficiarão o povo, esse mesmo povo precisa ser desalojado, transferido, escravizado, recrutado, sacrificado.
ou seja, do quinto ato do fausto para as obras para os jogos olímpicos no rio de janeiro, pouca coisa mudou.
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assim é o progresso, bem vindos ao capitalismo!
para mim, esse é o discurso central do poema, que inviabiliza qualquer leitura positiva que se possa fazer do protagonista: egoísta e invejoso, fausto não admite a presença próxima de um casal de velhos camponeses, os únicos que se recusaram a vender sua propriedade, cuja casinha é visível da sacada do palácio de fausto.
eis como ele articula sua indignação para mefistófeles:
“É o que me deixa irado e aflito.
Contigo, esperto e apto, é que falo;
Ofende e fere-me em excesso;
Não me é possível aturá-lo,
E envergonhado é que confesso:
Das tílias quero a possessão,
[duas árvores que havia na propriedade dos velhos camponeses]
Ceda o par velho o privilégio!
Os poucos pés que meus não são
Estragam-me o domínio régio.
[se alguém mais compartilhar isso comigo, então pra mim perde a graça!]
Lá quero armas, de braço em braço,
Andaimes sobre o vasto espaço,
A fim de contemplar, ao largo,
Tudo o que aqui fiz, sem embargo,
E com o olhar cobrir, de cima,
Do espírito humano a obra-prima,
Na vasta e sábia ação que os novos
Espaços doou ao bem dos povos.
[ou seja, para poder doar seu trabalho aos povos, que ele, na sua arrogância, chama de “obra-prima”, fausto precisa primeiro expulsar o povo dali.]
Na posse, assim, mais nos assalta
Mágoa e ânsia pelo que nos falta.
Das tílias o hálito e o perfume,
Bafo de cripta e igreja assume.
Do poderoso o arbítrio férro
Estaca ante um recanto térreo.
Como livrar-me desse fardo!
Toca a sineta, e em cólera ardo. …
[uma sineta que os velhinhos tocavam ocasionalmente e que fausto ouvia]
A resistência, a teimosia,
O esplendor todo me atrofia,
E é só com ira e a muito custo
Que me conservo ainda justo. …Bem, vai; põe-nos enfim de lado! —
Sabes da bela quintazinha
Que aos velhos reservado tinha.”
(11.234-77)
ao que mefistófeles responde:
“A gente os pega e os bota lá,
De novo em pé ver-se-ão num já;
Compensa o susto e a violência
À farta a nova residência.”
(11.278-81)
à essas ordens oblíquas de fausto, mefistófeles obedeceu matando os velhos e queimando sua casa, morrendo até um visitante que recebiam, velho náufrago que eles tinham salvo décadas atrás.
assim é o progresso. bem vindos ao capitalismo!
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a canção do vigia
outro trecho que ficou famoso é a assim chamada “canção de linceu”, um vigia, que resumiria a concepção religiosa munda de goethe.
os primeiros versos são lindos:
“A ver destinado,
À torra preposto,
Vigia jurado,
O mundo é meu gosto.
Contemplo distante
E próximo observo
O luar no levante,
O bosque, a ave e o cervo.
Assim vejo em tudo
Beleza sem fim,
E, como me agrada,
Agrado-me a mim.
Felizes meus olhos,
O que heis percebido,
Lá seja o que for,
Tão belo tem sido.”
(11.288-11.303)
ao ver a casa dos velhinhos em chamas, linceu lamenta:
“O que a vista deliciava
Com os séculos se foi.”
e comenta michael jaeger, citado por mazzari, em um estudo sobre a colônia de fausto:
“no mar de chamas descrito por linceu consomem-se os vigamentos que sustentam a edificação da cultura europeia”.
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o paradigma do homem ocidental mimado
fausto, cuja ascensão meteórica foi possibilitada por seu pacto com o demônio, desabafa:
“Pudesse eu rejeitar toda a feitiçaria,
Desaprender os termos de magia,
Só homem ver-me, homem só, perante a Criação,
Ser homem valeria a pena, então.”
(11.404-7)
como indicam as notas de marcus vinícius mazzari, muitas pessoas que leem fausto como uma história de “aperfeiçoamento humano contínuo”, um “movimento ascendente no sentido do humanismo”, etc, costumam citar esses versos em defesa do protagonista.
eu penso o oposto:
para mim, fausto é o paradigmático homem ocidental mimado e egoísta, cuspindo no prato onde se fartou.
o que ele quer é, ao mesmo tempo, a riqueza e o poder que obteve com a mágica e, também, o orgulho meritocrático de ter conseguido tudo sozinho, por conta própria, por esforço pessoal.
como se diz em inglês, to eat his cake and have it too.
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manifesto ateu-materialista
fausto prossegue, na mesma linha, louvando o mundo material, perceptível, humano:
“Pelo mundo hei tão só corrido;
A todo anelo me apeguei, fremente,
Largava o que era insuficiente,
Deixava ir o que me escapava.
Só desejado e consumado tenho,
E ansiado mais, e assim, com força e empenho
Transposto a vida; antes grande e potente,
Mas hoje vai já sábia, lentamente.
O círculo terreal conheço a fundo,
À nossa vista cerra-se o outro mundo;
Parvo quem para lá o olhar alteia;
Além das nuvens seus iguais ideia!
Aqui se quede, firme, a olhar à roda;
Ao homem apto, este mundo acomoda.
Por que ir vagueando pela eternidade?
O perceptível arrecade.”
(11.433-11.448)
* * *
depressão
surge uma personagem chamada Apreensão, que seria a corporificação desse estado de espírito.
ao falar de si mesma, ela descreve, em forma poética, sensações muito familiares à qualquer pessoa já diagnosticada com depressão:
“Quem possuo é meu a fundo,
Lucro algum lhe outorga o mundo;
Ronda-o treva permanente,
Não vê o sol nascente ou poente;
Com perfeita vista externa
No Eu lhe mora sombra eterna,
E com ricos bens em mão,
Não lhes frui a possessão.
Torna em cisma azar, ventura,
Morre à míngua na fartura;
Seja dor, seja alegria,
Passa-as para outro dia,
Do futuro, só, consciente,
Indeciso eternamente.”
(11.453-11.466)
* * *
um resumo da pior ideologia capitalista
a Apreensão cega a fausto (eu não saberia explicar o porquê!) e ele reage à cegueira com mais um discurso titânico de ação, completamente auto-iludido e fora de si:
“A noite cai mais fundamente fundo,
Mas no íntimo me fulge ardente luz;
Corro a pôr termo ao meu labor fecundo;
Só a voz do amo efeito real produz.
De pé, obreiros, vós! o povo todo!
Torne-se um feito que ideei com denodo.
Pegai da ferramenta, enxadas, pás!
Completai logo o traçamento audaz.
Esforço ativo, ordem austera,
O mais formoso prêmio gera.
A fim de aviar-se a obra mais vasta,
Um gênio para mil mãos basta.”
(11.449-11.510)
praticamente um resumo da pior ideologia capitalista.
* * *
último discurso ao pé da cova
fausto, o homem que fez um pacto com o demônio e acha que domou a natureza, faz seu último discurso capitalista-desenvolvimentista literalmente à beira da própria cova:
“Com rogo e mando,
Contrata obreiros às centenas,
Promete regalias plenas,
Paga, estimula, vai forçando!
De dia em dia deixa-me informado
De como se prolonga a obra do cavado.”
e mefistófeles, que está literalmente cavando sua cova, responde, irônico:
“Trata-se, disso tive nova,
Não de cavado, mas de cova.”
(11.553-11.558)
* * *
mais niilismo
finalmente, morre fausto.
e diz o demônio, em mais um discurso niilista:
“Ao último, oco, insípido momento,
Tenta apegar-se ainda o coitado.
Quem se me opôs com força tão tenaz,
Venceu o tempo, o ancião na areia jaz. …
De que serve a perpétua obra criada,
Se logo algo a arremessa para o nada?
Pronto, passou! Onde há nisso um sentido?
Ora! é tal qual nunca houvesse existido,
E como se existisse, embora, ronda em giro.
Pudera! o Vácuo-Eterno àquilo então prefiro.”
(11.589-11.603)
* * *
pobre diabo ludibriado
o final do livro é de uma injustiça enorme.
apesar de fausto ter sim feito um pacto satânico, apesar de mefistófeles ter sim cumprido sua parte, apesar de fausto ter sim se mostrado um belo canalha…
no fim, coitado, o diabo perde a alma que deveria ter recebido:
“O corpo jaz e à fuga o espírito se apronta;
O título, ei-lo aqui: firmado em sangue, e idôneo;
O mal é que hoje em dia, há métodos sem conta,
Para se subtrair almas ao demônio.
Por modo antigo a gente ofende,
Não há, por novo, quem nos recomende;
A sós teria o feito dantes,
Hoje preciso de ajudantes.”
(11.612-11.619)
um pobre diabo não pode mais confiar em ninguém.
lamenta-se mefistófeles, após perder a alma de fausto, em suas últimas palavras no poema:
“Foi-se o tesouro! Ao alto a súcia carregou-mo!
Eis por que andaram este túmulo rodeando!
Foi-me abstraída a posse única e rara,
A alma sem par, que se me penhorara:
Raptaram-na, com sutil contrabando.
E pra dar queixa agora, aonde, a quem me dirijo?
De quem meu bom direito exijo?
Logrado em tua idade vês-te!
Passas mal, e além disso o mereceste!
Pudera! fiz asneira grossa,
Tanto aparato, e em vão, tudo esbanjado!
Vulgar luxúria, absurdo amor se apossa
Do Satanás empezinhado.
E se essa farsa infantil, tola e oca,
O esperto e prático embrulhou assim,
De fato a parvoíce não é pouca
Que dele se apossou no fim.”
(11.827-11.843)
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e assim acaba o fausto.
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edições utilizadas
fausto I, de johann wolfgang goethe, 1806, alemão. (trad: jenny klabin seagall, 1949.)
fausto II, de johann wolfgang goethe, 1832, alemão. (trad: jenny klabin seagall, 1967.)
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todas as ilustrações são do artista irlandês harry clarke (1889-1931), para uma edição norte-americana do fausto, publicada pela hartsdale house em 1925. confira todas as ilustrações aqui. (vale muito a pena.)
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