A ética das relações não-monogâmicas
O que define um relacionamento não-monogâmico é um pacto prévio consensual articulado explícito.
A possibilidade de se viver abertamente relacionamentos não-monogâmicos é uma das grandes conquistas político-sociais das últimas décadas (especialmente para as mulheres). Entretanto, é importante ficarmos atentas para as pessoas (especialmente homens) que tentarão se utilizar desse discurso para justificar comportamentos desonestos e abusivos.
(O tema do Curso das Prisões para o mês de setembro é a Prisão Monogamia. Nossa aula acontece na quinta, 28 de setembro, sempre às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Compre aqui.)
O principal fator que separa um relacionamento potencialmente abusivo, desonesto, infiel, etc, de um relacionamento não-monogâmico é um pacto prévio consensual articulado explícito. O que define que você está em um relacionamento não-monogâmico é justamente esse pacto prévio consensual articulado explícito. Se uma das pessoas acha ou jura ou afirma que está em um relacionamento não-monogâmico mas a outra não, se essa questão nunca foi explicitamente articulada e decidida, então, não, não estão.
Se você tem um relacionamento, transa com outras, a pessoa com quem você está descobre e continua no relacionamento, e você continua transando com outras, mas vocês nunca tiveram uma conversa explícita sobre limites, segurança, pactos, etc, então, não, o que vocês têm não é um relacionamento não-monogâmico. (Por mais que você ache que a outra pessoa aprove — senão, teria ido embora! — você é só uma pessoa que trai a pessoa com quem tem um relacionamento.) Se existe qualquer possibilidade de mal-entendido sobre se ambas as pessoas estão em um relacionamento não-monogâmico, então não é.
A razão disso é simples: os relacionamentos monogâmicos são a norma na nossa sociedade. Por isso, eles não precisam necessariamente ser articulados explicitamente. (Embora é bom que sejam.) Se duas pessoas se encontram, ficam, transam, transam de novo, transam de novo, começam a sair socialmente e encontrar as pessoas amigas umas das outras, e assim sucessivamente, pode bem ser que nunca articulem de forma explícita “sim, estamos namorando”, pois já terão entrado “naturalmente” nesse estado aos olhos delas mesmas e da sociedade que lhes rodeia.
Pelo mesmo motivo, se uma delas faz tudo isso com a outra (e continua transando com terceiras sem essa primeira pessoa saber) então, sim, é infidelidade. Mentir não é só uma ação, mas também uma omissão. Eu me comportar de maneira a gerar uma impressão que sei ser errônea em outra pessoa também é mentira. Em nossa sociedade, tudo no comportamento acima presume que as duas pessoas estão em uma relação monogâmica. Então, é desonesto eu criar na outra pessoa essa “impressão de monogamia”, continuar transando com outras e depois ainda me autojustificar dizendo:
— Ué, nós nunca combinamos que estávamos num relacionamento monogâmico!
A monogamia, como é o relacionamento default da nossa sociedade, não precisa ser explicitamente articulada. A não-monogamia precisa. Por isso, duas (ou mais) pessoas só estarão vivendo um relacionamento não-monogâmico se ambas souberem e afirmarem que estão vivendo esse tipo de relacionamento, se tiverem um pacto prévio consensual articulado explícito regulando os limites de cada uma e se houver uma constante disposição para conversá-lo, negociá-lo, redefini-lo.
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Há mentiras em qualquer tipo de relacionamento, mas a não-monogamia retira grande parte dos incentivos para enganar, trair, se esgueirar. Outro dia, um homem me contou que estava acabando de sair de um casamento aberto de dez anos. Tinha tido várias relações fora do matrimônio e imaginava que a mulher também, mas ele não falava sobre os dele e ela não falava sobre os dela, e tinha sempre ficado por isso mesmo. Já no primeiro encontro com a futura esposa, aos dezesseis anos de idade, ele afirmou que nunca toleraria um relacionamento que fosse monogâmico. Segundo ele, a moça pareceu não gostar muito e desconversou (era o primeiro encontro!), eles nunca mais falaram nisso, continuaram saindo, depois namoraram, casaram, ficaram juntos dez anos. (Tenho sempre alguma prevenção contra esse discurso do “eu sou assim, o mundo que se adapte!” O que poderia ser mais egocêntrico?) Perguntei, para confirmar:
— Que você saiba ela nunca teve outros relacionamentos?
— Não.
— Vocês nunca mais falaram sobre relacionamentos não-monogâmicos depois daquela primeira menção em um primeiro encontro quando ambos tinham dezesseis anos?
— Não, ué. Precisava? Eu já tinha dito que pra mim a monogamia era intolerável.
E fui obrigado a dizer:
— Olha, o que você viveu não tem nada a ver com um relacionamento não-monogâmico. Você simplesmente passou dez anos traindo e mentindo para sua esposa. Aliás, como tantos homens.
Toda relação homem-mulher é assimétrica, monogâmica ou não
Os homens sempre tiveram o direito de pular a cerca à vontade e, quando são descobertos, a sociedade ainda cai de pau… nas mulheres!, dizendo que têm que perdoar, pelo “bem da família”, porque “homem é assim mesmo”, etc. Já as mulheres, quando transam fora do relacionamento, viram sinônimo de perversidade e, até pouco tempo atrás, podiam inclusive ser legalmente mortas, e isso tinha até nome, “legítima defesa da honra”, como se a honra do homem residisse no órgão sexual da mulher.
Por isso, um dos objetivos da instituição “relacionamento não-monogâmico”, como foi concebida e estabelecida no século XX e praticada até hoje, é justamente virar esse jogo. As mulheres ganham o direito de também fazer aquilo que os homens sempre fizeram. Os homens continuam fazendo o que sempre fizeram, mas agora dentro do contexto de um pacto prévio consensual articulado explícito que reconhece a mulher como parceira igualitária e com poder de veto.
Para viver relacionamentos não-monogâmicos, é preciso muita empatia e muita alteridade, sempre se colocar no lugar do Outro, sempre articular nossas fraquezas e nossos limites, sempre acolher as fraquezas e os limites das pessoas-que-estão-conosco. Ou seja, é preciso pensar e agir de forma ética do começo ao fim.
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Uma situação tristemente comum: duas pessoas estão na paquera e uma delas revela:
— Olha, preciso te dizer que sou casada.
E a outra diz:
— Não tem problema, não sou ciumento, hehe.
— Ok, ótimo. Deixa então eu ligar pro meu companheiro e avisar que estou indo pro motel com você.
— Opa, como assim? Ele sabe? Ih, tô fora, ficou estranho!
É impressionante quantas pessoas estão dispostas a cornear “otários” ao mesmo tempo em que querem distância de relacionamentos não-monogâmicos consensuais e às claras.
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Para os homens, é muito fácil articular o discurso “relacionamentos não-monogâmicos” só para “sair pegando geral”.
Uma moça solteira me contou ter terminado recentemente um relacionamento frustrante com um artista plástico inteligente, pretensamente pró-feminista, descolado, sensível, de esquerda, etc etc… e casado. Na hora de seduzi-la à distância, o assunto “monogamia” surgiu bastante. Que ele vivia um casamento aberto avançadinho, que ela era careta, que precisava se abrir, como podia uma mulher tão interessante ter ideias tão antiquadas, esse papinho. As barreiras da minha amiga foram caindo e ela se dispôs a ir visitá-lo em sua cidade. Naturalmente, estava esperando um pouco de atenção, que ele mostrasse a cidade, que passeasse com ela, essas coisas. Mas o moço ó-tão-importante, do alto de sua movimentada agenda, podia conceder a ela somente uma audiência de cinco horas no motel. O resto do tempo, infelizmente, estava tomado por trabalho ou pela família. (Quando ela perguntou se iriam poder passear juntos no domingo, ele quase riu. Quando ela pediu para falar com a mulher dele, ele negou.)
Depois de gastar mais de três mil reais pelo que foi, de fato, uma ida de cinco horas a um motel e um fim-de-semana de solidão em uma cidade estranha, minha amiga voltou pra casa frustrada mas ainda apaixonadinha. Demorou algumas semanas para se dar conta de que tinha caído em um golpe tristemente comum. Quando enfim terminou com o “grande artista”, ele ficou enraivecido e disse que ela era uma mulher coxinha e moralista que não tinha cacife para estar com um homem livre e arrojado como ele.
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Homem casado dizendo que seu relacionamento é aberto só para “pegar geral” já se tornou uma coisa tão comum que eu recomendo cautela para todas as pessoas querendo começar relacionamentos com homens que dizem isso. Naturalmente, todos os homens que de fato estão em relacionamentos não-monogâmicos também falam isso e não é o caso de jogar todo mundo no mesmo saco. Entretanto, como essa mentira em particular já está disseminada, é caso de acreditar-desacreditando e discretamente levantar a ficha do casal. Já escreveram ou se manifestaram publicamente falando de não-monogamia? Fazem parte de grupos ou associações de não-monogamia? Etc. No Brasil de hoje, onde a canalhice é muito mais comum que a não-monogamia, se um homem que diz que está em relacionamento não-monogâmico não puder, de alguma maneira, comprovar que está de fato em um relacionamento não-monogâmico, eu diria que o mais provável é que esteja mentindo.
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Houve época em que eu me envolvia com pessoas em relacionamentos monogâmicos, e ainda racionalizava:
— Minha relação é com ela, não sou responsável pelo seu compromisso com uma terceira.
Namorei uma pessoa casada, linda e inteligente, que mentia e inventava, se virava do avesso e fazia muitos sacrifícios… para poder transar comigo. Como não me sentir lisonjeado? Afinal, ela deveria gostar muito de mim, não? Meu ó-tão carente ego só faltava ronronar de prazer quando ela entrava pela porta, estalando seus saltos altos.
Mas a verdade é que ela dormia todas as noites com outra pessoa. Mentia para a pessoa-que-estava-com-ela de forma perversa e descarada, mas, ainda assim, era com ela que sonhava sonhos, subia serra, assistia séries. E o meu ó-tão carente ego passava as noites uivando para a lua, triste e apaixonado, querendo falar com ela mas proibido de telefonar fora do horário comercial.
Por fim, depois de muitos e muitos anos, apesar de ainda amá-la demais, apesar de ainda amá-la hoje, fiz o que tantos amantes na história fizeram: terminei eu mesmo o relacionamento. Porque percebi que nunca poderíamos construir nada. Eu jamais conseguiria confiar em alguém capaz de passar vários anos mentindo para a pessoa mais próxima a ela. Que aliás, tristemente, não era nem nunca fui eu.
Decidi que queria viver sem mentiras – e sem pessoas mentirosas. Hoje, as pessoas que caminham ao meu lado são donas dos seus desejos, capazes de assumi-los e articulá-los, livres para se colocarem publicamente no mundo como minhas companheiras.
Paradoxalmente, depois dessa decisão, fui ameaçado de morte, acionei polícia e advogados, e tive até sair da cidade por uns tempos porque me relacionei com uma pessoa que disse que era solteira, mas na verdade tinha um relacionamento monogâmico com uma outra pessoa. Escaldado por esse caso, eu confio em todo mundo a priori, mas, para pular na cama com alguém, mesmo eu sendo homem, preciso antes dar uma excelente levantada na ficha da pessoa.
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Um homem em um namoro aberto estava se relacionando com uma mulher em um casamento aberto. Saindo do cinema, ele quis andar de mãos dadas, mas ela se recusou: mesmo estando em um cinema quase vazio, num dia de semana, do outro lado da cidade, tinha medo de ser vista, de ser falada. O homem me contou essa história indignado, achando que eu validaria sua indignação:
— Por que essas mulheres são tão reprimidas, Alex? De que adianta sermos os dois seres humanos livres, em um relacionamento não-monogâmico consensual, ambos em relacionamentos com outras pessoas que sabiam de tudo, se não podemos nem dar as mãos?! Não é um pedido justo a se fazer? Dar as mãos?
E respondi:
— Se você é um homem que nunca se colocou na pele de uma mulher nem por um minuto e está somente vendo o seu próprio lado, sim, é um pedido justíssimo. Infelizmente, se calha de alguém ver vocês de mãos dadas no cinema, duas pessoas que estão em outros relacionamentos públicos, você vai receber high-fives na copa da empresa, por estar “pegando uma gatinha num cinema de subúrbio”. Já ela, provavelmente, vai ficar marcada para sempre como a “puta da contabilidade”. Daí o fato de ela estar um pouquinho mais preocupada com isso do que você…
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Vivemos em uma sociedade profundamente machista, onde os direitos e os deveres de homens e mulheres são profundamente assimétricos. Um homem que queira se relacionar de forma ética e igualitária com mulheres precisa ter isso sempre em mente para não virar (nem que por descuido) um babaca.
A assimetria está em tudo, inclusive na própria língua que todas falamos. Quase todos os xingamentos para homens são questionamentos de que não transam o suficiente com mulheres — provavelmente por serem homossexuais; por outro lado, quase todos os xingamentos para mulheres são questionamentos de que transam demais.
O “aventureiro” é o homem audaz que vive aventuras. A “aventureira” é a puta. “Pistoleiro” é um homem que atira com pistolas. “Pistoleira” é puta. “Vagabundo” ou “vadio” é um homem que não trabalha. A “vagabunda” ou “vadia” é uma puta. “Cachorro”, “galo”, “touro” são alguns dos animais mais importantes na história da humanidade. “Cachorra”, “galinha”, “vaca”? Puta, puta, puta. Por fim, “puto” é um homem indignado, irritado. Já “puta” é puta.
Todas as pessoas que querem se envolver em relacionamentos não-monogâmicos precisam ter sempre esses exemplos em mente. Porque, na nossa sociedade machista, quando se revela que um homem está em um relacionamento não-monogâmico, dependendo do grupo, ele pode ficar com fama de garanhão ou, em alguns casos, de corno. A mulher sempre fica com a mesma fama. De puta.
Então, por um lado, é importante revelarmos nossos relacionamentos não-monogâmicos e sermos ativistas por uma maior desprivatização das relações humanas. Afinal, a questão não é só pessoal, é política. Mas, por outro lado, é fundamental lembrarmos que, em termos de danos à reputação social e possíveis sanções profissionais e familiares, o preço mais alto será sempre pago pela mulher. Por isso, em minha opinião, a decisão de sair em público como estando em um relacionamento não-monogâmico deve sempre ser da mulher.
“Quem aguenta tanta falação?”
Às vezes, quando falo sobre essa importância do diálogo, alguém comenta:
— Meu Deus, quem aguenta tanta falação? Assim fica inviável ter um relacionamento!
E eu respondo:
— Ninguém disse que era fácil ter uma vida sexual e agir de forma ética ao mesmo tempo. Ainda mais quando se está querendo ir contra o padrão da sociedade. Se você quer só sair “pegando geral”, é mais fácil e mais eficiente ser solteiro. Mas, se está em um relacionamento (e um relacionamento não-monogâmico é, antes de tudo, um relacionamento) é preciso sempre pensar, agir, falar de forma ética em relação às necessidades, fraquezas, limites, desejos das pessoas que estão com você. Aliás, mesmo sendo solteiro, é bom agir do mesmo jeito com as pessoas com quem você transa, né?
Mesa-Redonda do Sexo
Cléo e eu nos conhecemos pela internet. Conversa vai, conversa vem, bateu aquele clima e marcamos de sair. O primeiro encontro não foi dos mais promissores. Estávamos ambos nervosos. Apesar do papo interessante, nada rolou. Mais tarde, cada um em sua casa, já no nosso ambiente familiar, bate-papo rolando, começamos a analisar o encontro como se fôssemos comentaristas de futebol dissecando uma partida:
— Eu queria muito ter te beijado.
— Ué, e por que não beijou?
— Não senti abertura pra sair entrando com um beijo.
— Na garagem teria sido perfeito. Fiquei com a chave na mão dois minutos te esperando.
— Aquela garagem era perigosa. A gente não devia ter ficado lá dando bobeira nem dois minutos. A hora perfeita teria sido antes, naquele pátio interno, etc.
Graças a essa conversa, nosso segundo encontro correu afinado como uma sinfonia e acabou na cama. Ainda assim, meia hora depois de chegarmos em nossas casas, já estávamos no chat de novo, comentando os melhores lances e vibrando com os replays dos gols:
— Pôxa, estava tão bom aquilo que você fez com o joelho, mas parou tão rápido...
— Achei que você não estava gostando.
— Eu? Eu estava amando!
— Mas é que você fez um barulho.
— Aquilo é o som de “estou gostando, continua”.
— Bom saber. E aquilo com a minha língua, hein?
— Por favor, nunca mais enfia a língua ali. Aquela área me dá uma agonia terrível. Não viu como me retorci?
— Não era de gozo?!
— Cruzes, nunca! Mas, olha, eu adorei quando você guiou meu dedo até exatamente ali onde te dá tesão.
— Quase não fiz, tem gente que não gosta...
— Comigo pode sempre. Adoro saber.
E assim em diante. Graças à essa “mesa-redonda do sexo”, nossa segunda transa já foi íntima como se fôssemos amantes de longa data. Na terceira, já parecíamos um casal plenamente sintonizado. A palavra tem poder.
Desejos, limites, possibilidades
Existem vários tipos de conversas que são importantes em um relacionamento, tanto antes de começar como durante. Por exemplo, se duas pessoas estão se conhecendo e considerando se relacionar sexualmente, um excelente ponto de partida é listarem seus desejos e limites, sexuais ou não.
Na lista de desejos, ambas incluem aquelas práticas que lhes são muito importantes, desde as imprescindíveis até as muito desejáveis: “para ser meu companheiro, precisa se dar bem com meu pai e minha mãe” ou “pra mim, é fundamental conhecer as pessoas com quem minha parceira se relaciona”.
A lista de limites, por outro lado, é o oposto, pois aqui as pessoas incluem aquelas práticas que absolutamente se recusam a compartilhar: “me recuso a aturar família de marido” ou “faço questão de não conhecer as pessoas com quem minha parceira se relaciona”.
Muitas vezes, o possível relacionamento já morre aí: “sinto muito, mas esse seu imprescindível eu não topo de jeito nenhum”. Se sobreviver, porém, ambas já entram no quarto sabendo tanto aquilo que a outra mais deseja e espera que aconteça, quanto aquilo que ela odeia e não tolera. Em comparação às pessoas que transam completamente no escuro e na total ignorância uma da outra, o conhecimento prévio e mútuo dos desejos e dos limites permite um sexo mais seguro e mais consensual, mais íntimo e mais gostoso.
Na verdade, como a maioria de nós não consegue nem mesmo articular verbalmente quais são nossos desejos, nossos limites, nossas possibilidades, é preciso, antes de mais nada, dar um passo atrás e aprender todo um novo vocabulário. Essa prática, por si só, é um aprendizado valiosíssimo, seja só para termos em mente quais os nossos desejos, limites, possibilidades, seja para compartilharmos com nossas parceiras.
Além das listas de desejos e de limites, entretanto, existe a imensa, quase infinita lista intermediária de possibilidades. Porque tudo que não foi proibido está tacitamente permitido. Já fiz e já fizeram no meu corpo muitas coisas deliciosas que eu jamais teria concebido pensar, fazer, pedir. Mas era um desejo da outra pessoa e não era um limite pra mim, então, por que não? Afinal, o nome do jogo não é agradar minha parceira?
Mantendo sempre em mente os desejos e respeitando todos os limites, daí em diante todas as possibilidades estão abertas.
Des-estigmatizar a DR
Quando me perguntam qual é o “segredo” para relações não-monogâmicas “darem certo”, dou sempre a mesma resposta: des-estigmatizar a DR. (DR=Discutir a Relação)
O pacto monogâmico é pret-a-porter. É um software fechado da Apple. Já vem prontinho, apoiado por milênios de bíblias, tias chatas, padres metidos e manuais sobre como “blindar seu casamento”. Não pode abrir, não pode olhar lá dentro, não pode mudar a programação. Por isso, é natural que a DR seja encarada com terror. Se o pacto está dado como fechado e indiscutível, qualquer tentativa de discuti-lo já indica, por definição, necessariamente, uma crise.
Os relacionamentos não-monogâmicos, entretanto, com sua infinidade de pactos e arranjos possíveis, são um software livre por definição. Eles precisam e esperam a nossa interferência. Eles só funcionam se forem criados e recriados por cada pessoa todos os dias, sempre em parceria com as outras pessoas com quem estão se relacionando.
Uma vez, uma pessoa me disse que tinha virado adepta de relacionamentos não-monogâmicos porque achava que assim tinha menos chances de perder a pessoa-que-estava-com-ela. Respondi que respeitava essa razão, mas que achava meio difícil de comparar esses riscos.
Não existe nenhuma segurança nesse mundo. A qualquer instante, podemos morrer, a esposa nos deixar, a chefa nos demitir, um meteoro bater na terra. Meu problema com a monogamia é que ela nos vende uma falsa segurança (de que se formos fiéis, se mantivermos o sexo apimentado, se fizermos tudo direitinho, nunca vamos perder a pessoa com quem estamos) enquanto os relacionamentos não-monogâmicos nos forçam a encarar de frente, abraçar, acolher, vivenciar essa falta de segurança primordial que define a condição humana.
Por causa disso, mais ainda, é necessário muita DR. É preciso que tudo esteja muito bem acordado e comunicado. É preciso que não existam mal-entendidos. É preciso que ninguém saia da cama se sentindo uma vítima. É preciso estarmos abertas para conversar sobre o relacionamento sempre. É preciso conseguirmos articular nossas fraquezas e limitações. É preciso, muito mais difícil, conseguirmos acolher as fraquezas e limitações das pessoas-com-quem-estamos.
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em setembro, estamos conversando sobre a Prisão Monogamia. Nossa aula acontece na quinta, 28 de setembro, sempre às 19h. Enquanto isso, estamos conversando sobre esses temas em nosso grupo de Whatsapp. E, sim!, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?
Alex, tudo bom? Adorei seu texto. Fiquei curiosa quanto a uma possível análise sua da não-monogamia sob o viés racial. Abraço.