Escola, pra quê?
Alguém ainda acredita que "escola é para ensinar"? Escola é para socializar e domesticar.
Em artigo de opinião publicado esse mês no New York Times, uma menina de treze anos afirma que, nos últimos dois meses de ensino a distância, está aprendendo mais em casa do que na escola. Portanto, diz ela, existiria algo muito errado com o nosso sistema educacional.
“I have been doing distance learning since March 23 and find that I am learning more, and with greater ease, than when I attended regular classes. ... I can work at my own pace without being interrupted by disruptive students and teachers who seem unable to manage them.”
Não me espanta Veronique, de treze anos, na oitava série, achar que está aprendendo mais em casa do que na escola.
De fato, é muito mais fácil e eficiente aprender História ou Matemática, em casa do que na escola. Infinitamente mais fácil. (Especialmente quando se é uma criança de elite, claro.)
Se a escola fosse mesmo para que aprendêssemos Geografia e Física, óbvio que seria melhor todas aprendermos de casa.
Foi isso, aliás, que contaram para Veronique, treze anos, na oitava série, e ela acreditou.
Em algum momento, imagino, todas nós acreditamos.
Mas alguma adulta ainda acredita que a escola é para aprender Literatura ou Química?
Mais importante (falando como um ex-professor, chão de fábrica, por 18 anos, de 1993 a 2011), alguma professora acredita?
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Um aparte pessoal mas também sócio-político
Estudei História em uma das melhores universidades do país, mas minha frequência às aulas era de menos de 25% — todo semestre, um ou mais professores ameaçavam me reprovar por faltas.
Eu queria ler e aprender História e, de fato, conseguia fazer isso melhor em casa, lendo mais um livro, do que cruzando a cidade para frequentar uma aula onde uma outra pessoa estaria resumindo um livro que eu já tinha lido para quem ainda não lera.
Naturalmente, estou falando de mim e dos meus imensos privilégios, dentre os quais alguns dos mais importantes eram uma casa tranquila, dinheiro para comprar livros e, como diria Woolf, um quarto só para mim.
Para estudantes que vêm de lares violentos ou desfeitos, incultos ou empobrecidos, a escola, com todos seus defeitos, pode ser um paraíso. Sem a escola, ninguém jamais conseguiria superar ou transcender os preconceitos e limitações de seus pais, de sua família, de seu grupo social.
Ou seja, a escola também serve para nos proteger dos nossos pais, mesmo dos bons pais, mesmo dos melhores mais.
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A escola, fundamentalmente, tem duas funções: socializar e domesticar.
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Escola serve para socializar
Somos uma espécie gregária. Somente sobrevivemos porque soubemos viver e agir em grupo. Todas as adaptações evolutivas que nos transformaram em humanos serviram, basicamente, para nos permitir funcionar melhor em grupo. Hoje em dia, já é quase consenso que tanto a inteligência quanto a fala e a língua surgem justamente para nos ajudar a melhor navegar as imensas dificuldades de viver inseridos em um grupo de outras dezenas de macacos pelados tão cheios de vontades quanto nós.
(Para saber mais, confiram aqui minhas anotações sobre os livros The knowledge illusion & The enigma of reason.)
Filhote conviver com adultos é fundamental, mas a verdade é que filhote aprende mesmo com filhote.
Cachorros, por exemplo, precisam conviver com seus colegas de ninhada por, no mínimo, dois meses, pois é com eles que vão aprender como "ser cachorro", como morder sem machucar, como socializar, etc, e outras mil habilidades que usarão por toda a vida.
(Minha cachorra, Capitu, que nasceu em ninhada de uma só e não teve irmãozinhos, é talvez a cachorra menos cachorra que já tive. Alguns links: The First Eight Weeks: Socializing Puppy Litters in a Shelter or Foster Home & How to Socialize a Puppy from a One Pup Litter & Puppy Socialization and the Sensitive Period: When is it, and is it important?)
Estudos recentes, com humanos, indicam que, ao longo da infância, aprendemos basicamente não com nossos pais ou professores, mas com nossos coleguinhas. Se pai e mãe querem realmente influenciar a vida dos filhos, a escolha mais estratégica é decidir com quais crianças conviverão.
(Alguns links: Children learn most from peers not parents & Do Parents Matter? & The Economics and Genetics of Parenting.)
Pois, ao contrário do que pensa Veronique, estar cercada de "pessoas disruptivas" não é um defeito de sua escola, ou do sistema educacional, mas é a condição mesma de nossa existência enquanto primatas gregários. Se ela não consegue aprender cercada de pessoas disruptivas, então é porque ela não consegue aprender ponto. Estarmos cercadas de pessoas disruptivas é um dado.
A coisa mais importante que a escola nos ensina, sua principal justificativa social, é lidar e negociar, fugir e enfrentar, colaborar com e trabalhar ao lado de pessoas disruptivas e desonestas, incômodas e desagradáveis.
Em templos zen, lugares de intensa convivência interpessoal, sempre existe algum monge chato e disruptivo, que dá trabalho e precisa ser tolerado e gerenciado por todos. Nos raros casos em que essa figura não se apresenta voluntariamente, é comum o mestre zen chamar um dos monges e encarregá-lo (quase sempre contra a sua vontade) de ser essa pessoa.
Pois, de fato, sem isso, ninguém aprende. É muito fácil "ser zen", praticar acolhimento e tolerância, quando tudo está bem e todo mundo é razoável. Os monges apenas crescerão e aprenderão, apenas avançarão em seus caminhos espirituais, se lidarem com um mínimo de dificuldade e conflito.
Eu, que trabalho e pratico em um templo zen há muitos anos, posso dizer que foi lá que conheci uma das piores pessoas que já encontrei na vida, e que aprender a lidar com ela, e com os sentimentos que me suscitava, foi um dos maiores aprendizados da minha vida, pelo que lhe serei sempre eternamento grato.
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Outro aparte pessoal: eu era um aluno horrível
Eu, por exemplo, moleque vaidoso e individualista, odiava trabalho em grupo: sempre procurava os piores alunos da sala e oferecia que fizessem parte do meu grupo, garantindo nota nove (no mínimo!) sob a condição de não darem nenhum pitaco, nenhuma contribuição no trabalho que eu faria sozinho.
Eu era o tipo de aluno que travava o seguinte diálogo com a professora de matemática:
"Alex, vi que você não entregou seu dever de casa. Você pode entregar até amanhã, tá?"
"Professora, se eu não fiz pra hoje, é porque não vou fazer nunca."
"Mas, Alex, é 20% da sua nota final!"
"Eu sei. Mas tirei 10 em todas as provas, então, considero que já provei que sei o material e que não preciso fazer o dever. Prefiro passar com nota 8 e fazer outras coisas do meu tempo."
Sim, eu falava isso em voz alta, no meio da sala, para uma senhorinha fofa, que, se estiver viva e eu encontrar na rua, receberá minhas mais sinceras desculpas. (Perdão, Mrs Sharp!)
Desde sempre rebelde e reativo, consegui atravessar todo o sistema educacional nunca tendo obedecido, nunca tendo me domesticado, o que foi bom, mas cobrou o preço alto de eu também nunca ter efetivamente me socializado.
Nunca aprendi a meu contento a coisa mais importante que, hoje, em retrospecto, vejo que a escola tentou me ensinar: essa socialização que só comecei a aprender muito mais velho e na qual nunca serei efetivamente fluente.
Sou relativamente bom professor e palestrante, ou seja, quando estou em situações de poder, e também sei obedecer ordens quando me convém, mas sou péssimo para funcionar em um grupo de iguais.
Como resultado, hoje, sou um escritor solitário e não, digamos, um roteirista numa sala de roteiro.
Por isso, também, frequento o templo zen: para aprender a ser apenas mais um monge em um grupo de monges.
E como é difícil: no fundo da alma, tenho um medo recorrente de que, em meu templo, o monge disruptivo sou eu.
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Escola serve para domesticar
Nada pode ser mais anti-natural, para um filhote de primata no auge da sua energia, em pleno maravilhamento por estar vivo em um mundo onde tudo é novo, do que sentar, calado e quietinho, por oito horas, só ouvindo e só recebendo, sem interagir e sem agir, sem falar e sem se mover.
Nossa sociedade é tão louca, é tão totalmente do avesso, que consideramos que crianças "hiperativas e com deficit de atenção" são aquelas que não param quietas em sala de aula, para quem é impossível prestar atenção em um macaco velho, lá na frente, falando coisas sem nenhuma aplicação prática, especialmente quando poderiam estar socializando com os outros macaquinhos da sua idade, vendo quem gosta de quem, quem fez carinho em quem, quem brigou com quem.
Ser hiperativo é a condição normal de um filhote de primata descobrindo o mundo. "Deficit de atenção", em todas vezes que ouvi esse "transtorno" sendo descrito, nunca descreve nada parecido com um verdadeiro "déficit de atenção", mas sim um "deficit de prioridades adultas".
Crianças com deficit de atenção são apenas aquelas que não prestam atenção àquelas coisas que nós, pessoas adultas, gostariam que estivessem prestando atenção, mas são, quase sempre, crianças super atentas a tudo que lhes interessa: basicamente, nessa idade e sempre, a coisa que mais nos interessa, que mais mobiliza nossa atenção, são nossas relações sociais com nossas colegas macaquinhos.
Assim como Freud já antecipava, como parte necessária do processo terapêutico, primeiro resistência e, depois, transferência, a escola também deveria antecipar a resistência como parte necessária e integrante do processo pedagógico.
Hoje, consideramos "anormais", portadoras de "distúrbios cognitivos" e de "transtornos de aprendizagem", aquelas crianças que resistem ao processo de domesticação de corpos, que gritam e xingam, que se debatem e esperneiam, que se recusam a sentar e obedecer, que não querem ficar quietinhas nem prestar atenção a uma coisa só.
(O que pode ser mais natural, mais comprensível, do que essa reação violenta à violência que a escola comete contra nós?)
Mas talvez sejam as crianças bem-comportadas, aquelas que se adaptam de forma rápida e tranquila, sem resistência, à violência antinatural que é passar horas e horas sentadas e quietinhas, talvez sejam elas, coitadinhas, que tenham algum tipo de transtorno ou desordem que precisa ser tratado e cuidado:
"Juquinha, estou vendo aqui na sua ficha que você nunca se rebelou contra a escola, nunca desobedeceu seus professores, nunca deixou de fazer seu dever de casa, nunca foi expulso de sala. Estamos preocupados com você, Juquinha. Está tudo bem em casa? Quer conversar com nosso terapeuta? Isso não é normal!"
(Naturalmente, nada que estou falando é novidade, ou foi inventado por mim. Recomendo Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão, de Michel Foucault, ou clique nos links a seguir: Escola e disciplina: uma abordagem foucaultiana & Foucault e educação: as práticas de poder e a escola atual & Michel Foucault, um crítico da instituição escolar.)
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O prêmio por obedecer é ser a mais obediente
Tudo o que a escola tenta nos ensinar pode ser resumido a um único verbo: obedecer.
Pior, mesmo se aprendermos tudo direitinho e se nunca desobedecermos nenhuma ordem, ainda assim nosso prêmio será apenas a satisfação de sermos "a melhor escrava".
Em 2010, Erica Goldson, a primeira aluna de sua turma no ensino médio, fez o seguinte discurso de formatura, maravilhoso, perceptivo, duríssimo:
"Estou agora cumprindo esse objetivo [de me formar]. Deveria ver isso como uma experiência positiva, especialmente tendo sido a melhor da turma. No entanto, em retrospecto, não posso dizer que sou mais inteligente que os meus companheiros. Posso atestar que sou apenas a melhor a fazer aquilo que me dizem e a trabalhar dentro dos limites do sistema.
Mesmo assim, aqui estou, e deveria estar orgulhosa por ter completado este período de doutrinação. Vou agora para a próxima fase que é esperada de mim, de modo a receber um documento que me certifica como apta para trabalhar.
Eu contesto, entretanto, que sou um ser humano, uma pensadora, uma aventureira – não uma trabalhadora. Um trabalhador é alguém que está preso numa repetição – um escravo do sistema que foi posto perante ele.
Mas a verdade é que demonstrei com sucesso que eu fui a melhor escrava.
Fiz o que me disseram até o extremo. Enquanto outros desenhavam durante as aulas, para mais tarde se tornarem grandes artistas, eu anotava tudo, para me tornar a melhor "fazedora de provas". Enquanto outros vinham para as aulas sem os trabalhos de casa feitos porque tinham passado a noite lendo algo do seu interesse, eu nunca deixei de entregar um trabalho. Enquanto outros estavam criando músicas e compondo letras, eu estava trabalhando em tarefas escolares adicionais para aumentar ainda mais minha nota, mesmo nunca precisando disso.
Daí, eu me pergunto: por que quis tanto ser a melhor aluna?
Sim, eu mereci essa posição. Mas e daí? Quando eu sair do sistema institucional educativo, serei uma pessoa de sucesso ou perdida para sempre?
Não tenho ideia do que quero fazer com a minha vida. Não tenho interesses porque sempre vi todo objeto de estudo como um trabalho a ser cumprido. Fui a melhor em todas as matérias só pelo propósito de ser a melhor, não para aprender.
E agora, sinceramente, estou assustada."
Veronique hoje escreve artigos de opinião para o New York Times e está a quatro anos (na melhor hipótese) de sua formatura no ensino médio. O que dirá ao receber seu diploma?
Todos esses temas estão desenvolvidos em um de meus melhores textos, a Prisão Obediência, que eu lhes convido a ler.
Veja Erica dando esse discurso (vídeo em inglês, acima), leia o texto completo (em inglês ou português) ou confira uma adaptação para os quadrinhos do Zen Pencils (em inglês, abaixo).
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A primeira violência de uma vida de violências
A escola, na verdade, nos impõe uma violência que, em retrospecto, é até suave (afinal, tínhamos quatro meses de férias por ano!), porque está nos preparando, nos suavizando, nos amaciando, para a próxima violência, que será muito pior, muito mais longa, muito mais exaustiva:
Trabalhar um mínimo de oito horas por dia, um mínimo de cinco dias por semana, um mínimo de onze meses por ano (e quando é que é só o mínimo?) pelo resto de nossas vidas, com somente uma cenoura amassada e enrugada, lá na frente, caso consigamos sobreviver até nos aposentarmos (e quem conseguirá?).
Esse é o tema de outros de meus melhores textos, que também lhes convido a ler: Prisão Dinheiro e Prisão Trabalho.
E, se esses textos lhe ajudaram, se adicionaram valor à sua vida, se lhe fizeram ver o que antes você não via, posso ter a insolência de sugerir uma contribuição em dinheiro? Pode ser de qualquer valor. Pode ser única ou regular. Qualquer valor ajuda.
Pois foi assim que tentei construir uma vida não-violenta e livre de imposições: escrevendo textos, oferecendo-os de graça, e contando com a generosidade de quem gosta deles.
E muito, muito obrigado mesmo.
Página de mecenato do Alex Castro.
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Última nota pessoal: com a palavra, a Esposa
Comentário da Esposa:
"Concordo com o texto em tudo, especialmente com a parte em que você diz que nunca foi adequadamente socializado!"
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Esse é o segundo email que estou mandando por um novo serviço de gerenciamento de newsletters, o Substack. Por favor, me avisem se veio tudo certinho, se apareceu escondido em alguma pasta estranha, qualquer coisa, por favor.
Os textos ficam arquivados em minha página de autor no Substack.
Se tiver algo a me dizer (sempre quero saber a opinião de vocês), basta responder.
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E muito, muito obrigado.
Como você disse, para privilegiados (pessoas com recursos materiais e, sobretudo, tempo!) oferecer outros mecanismos de socialização pode ser bom, ainda que, em geral, pessoas que escolhem o "homeschooling" acabam educando seus filhos numa bolha com sua própria visão de mundo. No contexto do Brasil, a Escola, para a maior parte da população, com todos os problemas que você aponta, ainda é uma boa opção de ascender e avançar para além dos níveis culturais dos pais.
Como a escola pode ajudar em uma boa socialização, se ela rankeia as crianças, coloca umas contra as outras para competir por nota, afeto e atenção? Faz de algumas arrogantes e outras com a autoestima destroçada? "Desescolarizei" minhas crianças. De amigos, elas tem as crianças da vizinhança. As vezes acho que não ir para a escola ajuda a ter um senso de comunidade, de noção de vizinhança (ou eu estou forçando a barra para validar minhas escolhas familiares).