Elogio à desobediência
O único prêmio por obedecer é a satisfação de ser a mais obediente. Não vale a pena. (Reflexões da Prisão Respeito.)
Os grandes crimes da humanidade, as piores crueldades, os genocídios e os massacres, foram todos cometidos por pessoas obedientes e cheias de certezas. As pessoas rebeldes, as pessoas incertas, as pessoas do contra, as pessoas confusas, essas podem até fazer muita besteira, mas não marcham em uníssono ao som de tambores. Desde o Julgamento de Nuremberg, "estar só obedecendo ordens" já não é mais defesa para ninguém.
(A próxima aula do Curso das Prisões, Prisão Respeito, acontece na quarta, 28 de junho de 2023, às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
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Espaço público vs espaço privado
Todo nosso processo de socialização tem como objetivo nos deixar mais dóceis, mais obedientes, mais domesticadas. E funciona: quando vemos uma guarita, nós paramos, abaixamos a cabeça, nos identificamos, esperamos permissão de passar. Mas essa guarita tem direito de estar ali? Essas pessoas têm direito de nos fazer perguntas e negar passagem?
Teoricamente, um condomínio pode escolher designar suas ruas internas de públicas ou privativas: no segundo caso, abre-se mão de uma série de serviços públicos (entrega de correios, coleta de lixo, transporte coletivo, iluminação pública, etc) em troca do direito de só permitir a entrada ou passagem de quem se quer.
Caso decida que suas ruas internas são públicas, o condomínio pode desfrutar desses serviços também públicos mas, em contrapartida, não pode negar entrada ou passagem a ninguém. Afinal, a rua é pública.
Entretanto, cada vez mais condomínios tentam malandramente conseguir o melhor dos dois mundos: apesar de suas ruas internas serem públicas, ainda assim colocam uma cancela e seguranças armados na porta.
Ou seja, o condomínio não só bloqueia uma via pública como ainda obriga as pessoas a parar e se identificar para poder exercer seus direitos de cidadãs de transitar por uma via pública. Abaixo, o Condomínio Península, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.
A foto é de dezembro de 2007. Nessa época, meu pai morava no Península e eu, a cinco minutos dali mas a dois universos de distância, na Estrada do Gabinal, logo depois da entrada para a Cidade de Deus.
No dia 19 de junho de 2006, moradores revoltados da Cidade de Deus bloquearam a Estrada do Gabinal, colocando fogo em pneus, madeiras e até mesmo em um ônibus para protestar mais um inocente morto sumariamente pela polícia, em uma operação que também deixou baleada uma criança de oito anos. Foram violentamente reprimidos (felizmente, sem perda de vidas) e logo aprenderam a lição: os ricos da Barra podem bloquear uma via pública na maior cara-de-pau; eles, não.
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Instinto de Obediência
Como socorrista, nossa primeira tarefa é não deixar as pessoas bem-intencionadas terminarem de matar a vítima. Em uma ocasião, se chego dez segundos atrasado, dois bons samaritanos teriam levantado um menino do asfalto e acabado de quebrar sua coluna.
Para manter as pessoas ocupadas e se sentindo úteis, eu passo a me comportar como um general no campo de batalha, tomo o controle da tropa e começo a delegar tarefas aos subordinados: você, de vermelho, liga pra polícia, 190; você, de verde, liga pros bombeiros, 193; você, de rabo de cavalo, consola a motorista e diz que não foi culpa dela; você, com a pasta, pega o triângulo no meu porta-malas pra desviar o trânsito, etc.
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O pior lugar para se ter um ataque cardíaco fulminante é no meio de uma multidão. A responsabilidade se dilui e as pessoas nem se sentem culpadas por não lhe ajudar: pensam que as outras também poderiam ter ajudado. Aliás, se ninguém ajudou, vai ver nem era tão sério assim. Melhor continuar andando, não se meter.
E, à noite, todas aquelas santas pessoas que passaram por cima de você enquanto estrebuchava até a morte vão botar a cabeça no travesseiro e dormir o sono das justas.
(Esse mesmo processo mental nos permite conviver confortavelmente em meio a tanta miséria: afinal, eu não dei esmola ao mendigo mas qualquer um também poderia ter dado!)
Se pudéssemos escolher, seria melhor ter nosso ataque cardíaco diante de uma única pessoa. Ela vai ter sobre si todo o peso da responsabilidade. Sabe que, se não lhe ajudar, você vai fatalmente morrer. Não há mais ninguém para repartir esse fardo.
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Uma das maneiras de quebrar a chamada "difusão de responsabilidade" é delegando tarefas. Ao invés de gritar um socorro genérico, experimente dizer:
"Você aí, de bigode loiro, vem aqui me ajudar agora!"
Para o homem do bigode loiro, já não existe mais o conforto da diluição de responsabilidade. Ele foi especificamente convocado. Se não atender, aquilo pesará em sua consciência pra sempre.
Se ele não ajudar, há uma boa chance de alguém na multidão, revoltada com a covardia do homem do bigode loiro, que absurdo!, fazer algo para corrigir esse abandono.
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Uma leitora poderia refutar:
"As pessoas obedecem porque querem ajudar."
Sim e não. Nós obedecemos porque fomos treinadas desde cedo pra obedecer. Nesse exemplo, salvar uma vida é só a feliz consequência.
Todo nosso sistema escolar, toda a educação que recebemos dos pais, tudo o que todas as autoridades nos dizem, é um longo processo de quebrar nosso espírito para nos tornar mais obedientes e mais dóceis.
A mensagem "obedeça as autoridades" é infinitas vezes mais enfatizada do que "ajude as outras pessoas".
Não é de espantar, então, que para a maioria de nós, obedecer é um ato muito mais automatizado do que ajudar.
Obedecer, afinal, significa evitar o conflito, agradar, pertencer. Quer coisa melhor que isso?
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Quando controlo a cena de um acidente, meu único receio é que minha interpretação de “pessoa que sabe o que está fazendo” seja tão boa que desestimule alguém que realmente saberia o que fazer de se apresentar. Por isso, sempre pergunto se há algum médico ou enfermeiro presente.
Talvez seja esse o segredo da obediência. As pessoas, nós todas, nunca sabemos nada de nada, mas temos uma fé profunda e inabalável que alguém, em algum lugar, sabe.
A chave pra controlar qualquer multidão, seja para salvar um atropelado ou invadir a Polônia, é convencê-los de que você é esse alguém.
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Contra as soluções fáceis
Acontece sempre. Seja na sala de aula, ensinando racismo e desigualdade, seja nos textos sobre outrofobia e privilégio. Depois de uma longa exposição de um problema complexo, alguém pergunta:
“Ok. Entendi. Mas e agora? O que fazemos? Qual é a solução?”
Muitas pessoas sentem a mesma ansiedade. É compreensível.
Em um primeiro momento, parecem pessoas práticas e de bom-senso, de saco cheio de tanta punhetação intelectual acadêmica, e que querem simplesmente sair na rua e resolver o problema, oras. Vivas pra elas!
Mas, se você pára e pensa, pode concluir que o que falta a essas pessoas é justamente parar e pensar. Um comentário que parece positivo (apesar de inócuo) acaba se revelando perigoso, ao sugerir:
— Incapacidade ou indisposição para discussão, reflexão ou diálogo, ou seja, para buscar suas próprias conclusões;
— Ansiedade por respostas prontas e simples, e por ações concretas e fáceis de realizar.
Vai chegando o final da aula, e estão todas ali me olhando ansiosos, de lápis em punho, esperando pela resposta certa, querendo saber “afinal o que devem fazer!”, e a impressão que tenho é que aceitariam qualquer besteira que eu falasse, desde que coubesse em uma frase e fosse fácil de decorar.
As maiores tragédias da história foram perpetradas por pessoas angustiadas para resolver um problema (real ou imaginário) marchando atrás de quem ofereceu uma solução simples e direta.
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Quando respondo que não existe solução, que não sei a resposta certa e que não vou lhes dizer o que fazer, outro alguém sempre retruca:
"Então, de que adiantou? Pra que ficamos duas horas aqui perdendo nosso tempo? Isso [querendo dizer essa aula, minha matéria, a disciplina, a própria universidade, a vida, sei lá] não serve pra nada!"
E respondo:
Mas se eu lhes dissesse o que fazer, então serviria pra alguma coisa? Pior do que não servir pra nada, não seria extremamente perigoso? É pra isso que vocês vêm à universidade? Para que uma pessoa qualquer, só porque tem um doutorado e passou num concurso, lhes diga o que fazer? Não querem chegar às suas próprias conclusões?
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Parece piada, mas depois desse longo discurso sempre tem alguém de cara sonolenta (vocês vão achar que estou zoando) que levanta o braço lá detrás e pergunta, de verdade, na lata:
"Tá, professor, mas afinal, o que é que é pra colocar no teste?"
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O prêmio por obedecer é ser a mais obediente
Pior, mesmo se fizermos tudo direitinho e se nunca desobedecermos nenhuma ordem, ainda assim nosso prêmio será apenas a satisfação de sermos "a melhor escrava".
Em 2010, Erica Goldson, a primeira aluna de sua turma no ensino médio, fez o seguinte discurso de formatura:
Estou agora cumprindo esse objetivo [de me formar]. Deveria ver isso como uma experiência positiva, especialmente tendo sido a melhor da turma. No entanto, em retrospecto, não posso dizer que sou mais inteligente que os meus companheiros. Posso atestar que sou apenas a melhor a fazer aquilo que me dizem e a trabalhar dentro dos limites do sistema. Mesmo assim, aqui estou, e deveria estar orgulhosa por ter completado este período de doutrinação. Vou agora para a próxima fase que é esperada de mim, de modo a receber um documento que me certifica como apta para trabalhar. Eu contesto, entretanto, que sou um ser humano, uma pensadora, uma aventureira – não uma trabalhadora. Um trabalhador é alguém que está preso numa repetição – um escravo do sistema que foi posto perante ele. Mas a verdade é que demonstrei com sucesso que eu fui a melhor escrava. Fiz o que me disseram até o extremo. Enquanto outros desenhavam durante as aulas, para mais tarde se tornarem grandes artistas, eu anotava tudo, para me tornar a melhor "fazedora de provas". Enquanto outros vinham para as aulas sem os trabalhos de casa feitos porque tinham passado a noite lendo algo do seu interesse, eu nunca deixei de entregar um trabalho. Enquanto outros estavam criando músicas e compondo letras, eu estava trabalhando em tarefas escolares adicionais para aumentar ainda mais minha nota, mesmo nunca precisando disso. Daí, eu me pergunto: por que quis tanto ser a melhor aluna? Sim, eu mereci essa posição. Mas e daí? Quando eu sair do sistema institucional educativo, serei uma pessoa de sucesso ou perdida para sempre?
Não tenho ideia do que quero fazer com a minha vida. Não tenho interesses porque sempre vi todo objeto de estudo como um trabalho a ser cumprido. Fui a melhor em todas as matérias só pelo propósito de ser a melhor, não para aprender. E agora, sinceramente, estou assustada.
Veja Erica dando esse discurso (vídeo em inglês), leia o texto completo (em inglês ou português) ou confira uma adaptação para os quadrinhos do Zen Pencils (em inglês).
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em junho, estamos conversando sobre a Prisão Respeito. Nossa aula expositiva acontece na quarta, 28 de junho de 2023. Antes disso, estamos debatendo sobre Patriotismo e Respeito nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp.
Sim, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?