Don Juan não só seduzia: ele esculachava
Um dos arquétipos mais importantes e duradouros da cultura ocidental é espanhol: Don Juan, sedutor, esculachador.
Don Juan, um dos maiores arquétipos míticos da nossa cultura, tem origem em uma peça espanhola do Século de ouro.
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A Espanha legou vários arquétipos importantes à cultura mundial, do cavaleiro real El Cid (falei dela na aula 1 do curso Grande Conversa Espanhola) ao cavaleiro ideal Amadis (aula 3), do cavaleiro louco Quixote (aulas 13 e 14) ao malandro pícaro Lazarilho (aula 7), mas um dos mais esquecidos e mal lembrados é o Don Juan, que será o tema da nossa nona aula “Esculacho”, que acontece na quarta, 1º de fevereiro. (E, sim, ainda dá tempo de você participar, assistir as aulas passadas gravadas e as próximas ao vivo, pagando somente R$95.)
Don Juan é “esquecido” porque raramente lembramos que é uma criação espanhola, e é “mal lembrado” porque as versões posteriores acabaram ofuscando o Don Juan original. Temos o sedutor canalha de Moliére, o jovem ingênuo de Byron, o velho cansado de Handke, o iludido psicótico no filme Don Juan de Marco, para citar somente alguns, mas todos têm pouco a ver com o original.
Don Juan surge pela primeira vez na peça O burlador de Sevilha, do começo do século XVII, atribuída a Tirso de Molina – há dúvidas sobre a autoria. O título da peça é importante, pois Don Juan não é “sedutor” strito senso, mas um “burlador”, ou seja, um “esculachador”. (Fica a dúvida: por que todas as encarnações posteriores do Don Juan escolheram esquecer ou minimizar seu lado “esculachador” e ressaltar o “sedutor”?)
A sedução sexual é sua ferramenta para esculachar mulheres, mas ele esculacha igualmente todos os homens que pode, pelos mais diversos métodos, da simples humilhação ao assassinato. Ao fazer isso, ele esculacha não só suas vítimas, mas a sociedade como um todo, corrupta e desigual, exposta em sua incapacidade de punir um nobre rico e bem-relacionado, por mais criminoso e blasfemo que seja seu comportamento. No final, Don Juan encontra seu merecido castigo por meios sobrenaturais.
O personagem representa um novo tipo de narcisismo tóxico só possível nessa modernidade que vai surgindo: se o humanismo renascentista colocou o homem no centro do universo, Don Juan é o homem que alegremente aceita e abusa dessa posição. Não um mito sexual, mas um mito de poder, uma paródia grotesca e uma denúncia política das novas possibilidades de potência humana abertas pelo Renascimento: “É raro um poder tão forte, tão grande, tão demoníaco”, disse Renato Janine Ribeiro em “A política de Don Juan”.
Para quem quiser ler em espanhol, de graça, na internet, tem essa edição do Instituto Cervantes. Para quem quiser ler em português, essa excelente edição da Perspectiva traz essa e outras três peças que vamos ler, em excelentes traduções anotadas. Eu também ouvi esse audiolivro.
O burlador de Sevilha será nossa leitura da próxima aula do curso Grande Conversa Espanhola, que acontece na quarta, 1º de fevereiro de 2023, às 19h. O curso custa só R$95 e as incrições estão abertas.
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Leituras
O burlador de Sevilha, de Tirso de la Molina [110pp]
Como ler
A edição da Penguin tem boas notas. Em português, a Perspectiva tem uma excelente tradução.
Espanhol
—> El Burlador de Sevilla [Penguin, ed. Francisco Florit Durán.]
El Burlador de Sevilla y convidado de piedra [Instituto Cervantes, ed. F. Florit Durán.] (pdf)
Português
—> Teatro espanhol do século de ouro [Contém Burlador,Vida, Fuente. Perspectiva, trad. Newton Cunha, poesia.]
Inglês
Life Is a Dream and Other Spanish Classics [Contém Burlador, Vida, Fuente. Trad: Eric Bentley.]
The Trickster of Seville and the Stone Guest [Aris and Phillips Hispanic Classics, trad. Gwynne Edwards.]
Site
Portal para “Tirso de Molina” no Instituto Cervantes (site)
Áudio
El burlador de Sevilla [GooglePlay, narr. Lidia Ariza, Luis Del Valle, 2h05.]
Vídeo
El burlador de Sevilla. [TVE, Estudio 1, 1976] (YouTube.)
Teatro
El burlador de Sevilla. [montagem desconhecida mas bem interessante] (YouTube.)