Divina comédia de Dante: qual tradução escolher?
Existem muitas traduções da Divina Comédia em catálogo. Como escolher a melhor pra você? (Guia de leitura da Grande Conversa Medieval)
A próxima leitura do curso Grande Conversa Medieval será a Divina Comédia de Dante. E muita gente me pergunta qual tradução recomendo.
Mas essa é uma pergunta de resposta difícil e muito, muito pessoal: tudo depende de quais são nossas prioridades, do que estamos buscando na obra. Ou seja, depende, basicamente, de você.
Resposta rápida: minha tradução preferida ao português é a de Cristiano Martins, em catálogo pela Garnier, acima.
Com raras e (des)honrosas exceções, editoras boas e consolidadas não publicam traduções “ruins”.
Por exemplo, a princípio recomendo evitar tudo da editora Martin Claret, mas gostei muito da edição deles de Fausto. A tradução de Agostinho D’Ornellas é excelente, apesar de antiga, e a edição está bem cuidada. Mas a da 34, de Jenny Klabin, é tão superior que nem recomendei.
Hoje, existem várias edições da Divina Comédia em catálogo no Brasil, a maioria delas na tradução de José Pedro Xavier Pinheiro. Essa tradução não é tão popular por ser a melhor, mas por estar em domínio público: foi publicada pela primeira vez em 1888. Sinceramente, para ler obra em domínio público, vocês não precisam pagar nada pra ninguém: está aqui.
Não é uma tradução ruim, de modo algum, mas é antiquada, está escrito em um registro oitocentista do português que pode ser difícil de entender hoje. Pode fazer da leitura um trabalho mais sofrido, mais arrastado. Não recomendo.
Duas das nossas melhores editoras, Companhia das Letras e 34, tem excelentes traduções contemporâneas da Divina Comédia, ambas bilíngues e com boas notas explicativas. Qual escolher?
Qual você preferir. Qual te soar melhor. Qual fizer da sua leitura mais fluida, mais gostosa.
Então, por exemplo, se aquilo que mais te interessa é o enredo, o conteúdo, saber o que acontece na historinha, essa versão em prosa da L&PM resolve plenamente sua questão.
Mas, aí, claro, você perde toda a poesia, a sonoridade, a musicalidade.
Eu amo a tradução para o inglês de Allen Mandelbaum, ela é belíssima e poética, e bastante fácil de entender. Talvez seja a que leio com mais prazer. Foi nessa tradução que li a Divina Comédia pela primeira vez.
Só que, claro, inglês é tão, mas tão diferente de italiano que ela é poética sim, mas é a poesia de Mandelbaum: a dicção própria de Dante, sua sonoridade e musicalidade, isso tudo se perde.
Em português, tanto a da 34 quanto da Cia das Letras são muito boas.
Mas, antes de começar, um aviso e uma confissão.
O aviso: a edição da Companhia das Letras contém só o Inferno, que é só o primeiro terço; a da 34 é a obra integral.
A confissão: gosto das duas, mas não o bastante para ficar com elas. Ambas passaram aqui por casa e vendi pro sebo.
A da Cia das Letras é mais fiel ao texto original, o que significa que não suaviza as escatologias, o que é bom, mas também significa que, pra acompanhar Dante mais de perto, usa palavras difíceis e fora de uso quando poderia usar outras mais fácil.
Por exemplo, considerem a palavra “pélago”:
“substantivo masculino
[Marinha] profundo, longe das costas.
Abismo.
[Figurado] Imensidade; profundidade.”
No canto I, 22-27, Dante escreve:
“E come quei che con lena affannata
uscito fuor del pelago a la riva
si volge a l’acqua perigliosa e guata,così l’animo mio, ch’ancor fuggiva,
si volse a retro a rimirar lo passo
che non lasciò già mai persona viva.”
Eugenio Mauro, da 34, traduz:
“E como aquele que ofegando vara
o mar bravio e, da praia atingida,
volta-se à onda perigosa, e a encara,minha mente, nem bem de lá fugida,
voltou-se a remirar o horrendo passo
que pessoa alguma já deixou com vida.”
É uma imagem poderosa, real, concreta.
Já o time de tradutores da Cia das Letras traduz assim:
“E como alguém sem ar vindo ofegante
logo ao sair do pélago à deriva
se volta à água, ao risco já distante,assim a minha força, fugitiva,
se voltou para trás para ver o passo
que não deixou jamais pessoa viva.”
Eu não conhecia a palavra “pélago”. Por isso, pra mim, a tradução da Cia das Letras não comunicou nada. O que era pra ter sido uma imagem poderosa se transformou numa ida ao dicionário. A força da cena se perdeu.
É uma má tradução? De modo algum.
Dante usou a palavra “pelago” e eles, tendo à disposição a palavra “pélago” em português, usaram também.
Mas o peso cumulativo de sucessivas escolhas por palavras mais difíceis que a média faz a tradução da Cia das Letras soar cansativa pra mim.
Mais e mais, tenho preferido a de Eugenio Mauro, da 34.
Ou seja, qual é a melhor tradução?
Não sei.
Se você quer uma leitura mais fluida, talvez Mauro, da 34.
Se você quer uma leitura mais fiel, talvez o time da Cia das Letras.
Ou outra que você preferir.
Atualmente, minha tradução brasileira preferida é a de Cristiano Martins, publicada originalmente em 1976, e atualmente em catálogo pela Garnier — não uma editora conhecida por suas boas traduções! Eis como Martins resolve esse trecho, também usando a palavra “pélago”:
trad. Cristiano Martins. [1976]
E como aquele a quem já o sopro para,
saindo da água à praia apetecida,
volta-se, fita o pélago, e repara― assim, a alma em torpor, naquela lida,
voltei-me a remirar, atrás, o passo
de que jamais saiu alguém com vida.
Mandelbaum, 1982, certamente a tradução pela qual tenho mais afeto, resolveu assim:
And just as he who, with exhausted breath,
having escaped from sea to shore, turns back
to watch the dangerous waters he has quit,so did my spirit, still a fugitive,
turn back to look intently at the pass
that never has let any man survive.
Tenho uma forte convicção de que toda e qualquer poesia fica melhor em espanhol, então, também estou lendo em três traduções nessa língua. Eis como resolveram essa questão:
trad. José María Micó [2018], mais fluente, menos poética, a mais fácil de ler:
Y como aquel que sale jadeante
del mar y al verse libre del naufragio
se vuelve y mira el agua procelosa,de igual modo mi ánimo, aún huyendo,
se volvió atrás para mirar el paso
que no cruzó jamás ningún ser vivo.
Adoro o Micó. Ele me explicou a complexidade de um de meus poetas favoritos e assinou a melhor tradução de um dos meus livros preferidos. Sua tradução de Dante é ótima. Estou acompanhando a leitura com o áudiolivro.
trad. Luis Martínez de Merlo. [1982]: no meio do caminho
Y como quien con aliento anhelante,
ya salido del piélago a la orilla,
se vuelve y mira al agua peligrosa,tal mi ánimo, huyendo todavía,
se volvió por mirar de nuevo el sitio
que a los que viven traspasar no deja.
trad. Bartolomeu Mitre. [1889]: mais livre, rimada.
Y como quien, con hálito afanado
sale fuera del piélago a la riba,
y vuelve atrás la) vista, aun azorado;así mi alma también, aun fugitiva,
volvió a mirar el temeroso paso
del que nunca salió persona viva.
Essa tradução é antiquada, também está em domínio público, e é muito criticada por uma série de boas razões, mas acho bela e sonora. Ser rimada faz a diferença. Curiosidade: o tradutor foi primeiro presidente da Argentina e primeiro comandante-em-chefe das forças da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Estou ouvindo o áudiolivro dessa tradução e adorando.
Só por curiosidade, uma amostra de como outros tradutores resolveram esse mesmo dilema na nossa língua. (Quando a tradução estiver em catálogo, vai o link.)
Luiz Vicente De Simoni. [1843]
E como quem com alento anciado
Do pélago sahindo para a riva,
Volve-se, e olha a onda em que hap’rigado:Assim minha coragem fugitiva
Virou-se para traz, a ver o passo,
Que jámais não deixou pessoa viva.
Antonio José Viale. [1883]
E como quem, sem fôlego, da amara
Agoa das ondas salvo, a praia alcança,
Os olhos volve ao mar, de que escapara;Tal meu animo afflicto a vista lança
Para o bosque tão negro e temeroso,
Que tolhe ao coração toda a esperança.
trad. Domingos Ennes. [1887]
Como quem ofegante e sem alento,
Sendo tirado da onda que deriva,
Olha da riba o pégo turbulento.Na mente, naquela hora ainda esquiva,
Entrei a contemplar de novo o espaço
Que não deixou jamais pessoa viva.
trad. Barão da Villa Barra. [1888]
O náufrago depois que a praia ganha,
Arquejando, ofegante volve os olhos,
Os transpostos abismos contemplando.Assim o meu espírito inda esquivo
Pôs-se a mirar de novo aquele passo
Com vida por ninguém jamais vadeado.
trad. Xavier Pinheiro. [1888]
E como quem o anélito esgotava
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
Olha o mar perigoso em que lutava,O meu ânimo assim, que treme ansioso,
Volveu-se a remirar vencido o espaço
Que homem vivo jamais passou ditoso.
[Essa é a versão em domínio público mais fácil de encontrar.]
trad. João Trentino Ziller. [1953]
Qual náufrago, depois de luta fera,
tendo alcançado a suspirada meta,
o mar revolto incerto considera,assim minh’alma, pensativa, inquieta,
a contemplar virou-se o rude passo
que não deixou jamais pessoa ereta.
trad. José V. de Pina Martins. [1972]
E como quem sem fôlego e com afã
fosse salvo das ondas junto à margem
e olha para o mar que o afrontara,o meu ânimo assim, que inda fugia,
voltou-se a remirar atrás o espaço
que jamais homem vivo atravessou.
trad. Augusto de Campos. [1986]
e como o náufrago, depois que aspira
o ar, abraçado à areia, redivivo,
vira-se ao mar e longamente mira,o meu ânimo, ainda fugitivo,
voltou a contemplar aquele espaço
que nunca ultrapassou um homem vivo.
trad. Vasco Graça Moura. [1995]
E como quem a respirar arfava,
escapando do pélago à deriva,
e as águas perigosas remirava,assim minh’alma, ainda fugitiva,
volveu a olhar atrás aquele passo
em que pessoa alguma ficou viva.
trad. Jorge Wanderley. [2004]
E como o que sem fôlego escapasse
do mar à praia e em hora pungitiva
à onda perigosa ainda encarasse,assim minh’alma, que ia fugitiva,
voltou-se pra trás, olhando o espaço
de onde jamais voltou pessoa viva.
[Não conhecia essa tradução, mas gosto do Wanderley e gostei bastante desse trecho. Infelizmente, ele só traduziu o Inferno antes de falecer.]
trad. Luis Dolhnikoff. [2012]
Como quem, a respiração ansiosa,
Depois que na praia do mar se livra,
Volta-se e olha a água perigosa,Minha coragem, ainda fugitiva,
Virou-se para olhar aquele passo
Que não deixou jamais pessoa viva.
trad. Eugênio Vinci de Moraes. [2016]
E como aquele que, como um náufrago, ofegante, chega à praia e se volta para encarar as águas traiçoeiras, assim minha alma, que ainda se afastava, voltou-se para olhar o lugar do qual homem algum jamais saiu vivo.
trad. Matheus Mavericco. [2016]
E como quem, cansado e indisposto,
salvo do pélago ao chegar na areia,
ao mar bravio então revolve o rosto,a isto meu ser que foge se baseia,
no que retorno a remirar o rumo
no qual, vivo, ninguém jamais passeia.
[Retirei esses trechos do blog do próprio Matheus.]
Termino repetindo a solução de Eugenio Mauro, da 34, que, depois de ler todas essas, gosto cada vez mais:
E como aquele que ofegando vara
o mar bravio e, da praia atingida,
volta-se à onda perigosa, e a encara,minha mente, nem bem de lá fugida,
voltou-se a remirar o horrendo passo
que pessoa alguma já deixou com vida.
Por fim, considerando tudo, minha recomendação é essa:
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a aula sobre Dante, do meu curso Grande Conversa Medieval: Quando as línguas eram jovens e tudo ainda estava em aberto. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Para comprar o curso, clique aqui.
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Grande conversa romance: um ano para ler seis romances perfeitos
O curso Grande conversa romance: um ano para ler seis romances perfeitos vai começar em agosto de 2025. Um mergulho profundo em alguns dos maiores e mais perfeitos romances da literatura mundial.
Dois meses para cada livro (três para Guerra e paz): um encontro livre para conversar sobre a leitura no primeiro domingo de cada mês e uma aula expositiva ao final dos dois meses, ambos no Zoom, e muito bate-papo literário todo dia no Whatsapp.
Ninguém precisa de ajuda para ler os livros fáceis e curtos. A ideia do curso é ajudar vocês a lerem aqueles livrões que, talvez, estavam adiando ler a vida inteira e, quem sabe, ajudá-los também a encontrar novos livrões legais.
Leremos só grandes livros, um romance em cada uma das principais línguas literárias ocidentais. Abaixo, a lista completa, em ordem cronológica. Os links já levam à edição recomendada.
1 Moby Dick, inglês, 1851 (agosto & setembro 2025)
2 Os miseráveis, francês, 1862 (outubro & novembro 2025)
3 Guerra e paz, russo, 1867 (dezembro 2025, janeiro & fevereiro 2026)
4 Grande sertão: veredas, português, 1956 (março & abril 2026)
5 Cem anos de solidão, espanhol, 1967 (maio & junho 2026)
6 Tetralogia napolitana, italiano, 2015 (julho & agosto 2026)
O precursor polonês Manuscrito encontrado em Saragoça (1815) só não abriu o curso por não ter tradução em catálogo no Brasil, mas eu recomendo enfaticamente, seja no original em francês, em inglês, em espanhol, ou em português de Portugal. Para quem quiser, teremos uma aula zero sobre esse livro em julho.
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Grande Conversa: Romance, Calendário
Dom, 6jul25, 16h: Conversa livre, Manuscrito encontrado em Saragoça, Abertura do curso
Qua, 23jul25, 19h: aula zero, Manuscrito encontrado em Saragoça
Dom, 10ago25, 16h: Conversa livre, Moby Dick
Dom, 14set25, 16h: Conversa livre, Moby Dick
Qua, 24set25, 19h: aula 1, Moby Dick
Dom, 5out25, 16h: Conversa livre, Os miseráveis
Dom, 9nov25, 16h: Conversa livre, Os miseráveis
Qua, 26nov25, 19h: aula 2, Os miseráveis
Dom, 7dez25, 16h: Conversa livre, Guerra e paz
Dom, 1fev26, 16h: Conversa livre, Guerra e paz
Qua, 25fev26, 19h: aula 3, Guerra e paz
Dom, 1mar26, 16h: Conversa livre, Grande sertão: veredas
Dom, 12abr26, 16h: Conversa livre, Grande sertão: veredas
Qua, 29abr26, 19h: aula 4, Grande sertão: veredas
Dom, 10mai26, 16h: Conversa livre, Cem anos de solidão
Dom, 14jun26, 16h: Conversa livre, Cem anos de solidão
Qua, 24jun26, 19h: aula 5, Cem anos de solidão
Dom, 5jul26, 16h: Conversa livre, Tetralogia napolitana
Dom, 2ago26, 16h: Conversa livre, Tetralogia napolitana
Qua, 26ago26, 19h: aula 6, Tetralogia napolitana
Ei, meu bem. A minha é a 34. Na verdade, era do Alexandre, eu herdei. Excepcional. Tem rabiscos dele e meus :) beijo