O dinheiro só serve para comprar tempo
Viver é barato, nossas escolhas é que são caras. (Reflexões sobre a Prisão Trabalho.)
O dinheiro só serve para comprar tempo. Mas, se vendemos todo o nosso tempo em troca de dinheiro, então esse dinheiro não serve pra nada. Fundamentalmente, a vida não é cara: nossa vida, porém, pode ser cara se fizermos escolhas caras. Aliás, o que é uma escolha?
(O tema do Curso das Prisões para o mês de julho é a Prisão Trabalho. Nossa conversa livre aconteceu no domingo, 2 de julho, às 19h. No final no mês, nossa aula será na quarta, 26 de julho, sempre às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
* * *
Viver é mais barato do que parece
Cresci menino rico de condomínio da Barra da Tijuca. Depois, a família teve a sensatez de falir, uma experiência educacional que recomendo para todas as pessoas que já foram ricas.
No mundo onde me criei, água não era apenas água: era uma Perrier, garrafinha verde, de uma fonte naturalmente gasosa no sul da França; o relógio de pulso não era só um relógio de pulso, era um Hublot, lindo, discreto, minimalista, e assim por diante, da água mineral ao relógio de pulso, do carro à camiseta.
Para uma criança, bastava um pouco de extrapolação e uma aritmética básica para concluir que viver era muito, muito caro. Eu precisaria ganhar uma quantidade abissal de dinheiro só para continuar vivendo como sempre tinha vivido. Só para ficar tudo igual.
Buscando essa quimera, caí de cabeça na primeira bolha da internet. Fui a seminários de web marketing, fiz business plans, levantei seed money com venture capitalists, fundei a minha própria startup dotcom onde era o Chief Visionary Officer... e fali.
Nessa época, minha família já não estava mais em condições de me ajudar financeiramente. Vendi o carro (e o Hublot) para pagar as dívidas e fiquei a pé pela primeira vez desde os dezessete anos. Depois, meti o rabo entre as pernas e fui morar com a esposa em um quarto na casa da minha mãe, pagando aluguel.
Então, no primeiro domingo de 2002, abri os classificados e fui tentar descobrir um jeito de ganhar dinheiro. Aparentemente, minha única habilidade com demanda de mercado era falar inglês fluente, fruto da minha caríssima educação de primeiro mundo. Passei dois meses distribuindo currículos até receber a primeira resposta.
Eu nunca tinha andado de ônibus na vida. Segundo as histórias que circulavam no meu mundo, sempre contadas por pessoas que também nunca tinham andado de ônibus, você era obrigatoriamente assaltado a cada dez minutos, ou algo assim. Um horror.
E, agora, aqui estava eu pegando nove ônibus por dia, para dar duas ou três aulas em pontos diferentes da cidade.
Foi a melhor coisa que poderia ter me acontecido.
Percebi que não precisava ter medo da vida. Que não eram necessários vinte mil reais por mês para ter uma vida digna e ser feliz.
Com poucas horas de aulas em dias alternados da semana, eu já conseguia ganhar o suficiente para pagar as contas básicas. Se e quando eu precisasse de mais, bastava encher progressivamente os outros horários.
Em finais de 2002, eu e minha esposa já estávamos em nosso próprio apartamento alugado. Cozinhávamos em casa, andávamos de ônibus, baixávamos filmes da internet, tirávamos livros da biblioteca, íamos à praia, transávamos muito.
Ela fazia mestrado de manhã e trabalhava de vendedora de loja de roupas à tarde e à noite. Eu chegava no shopping algumas horas antes de ela sair, ficava na mega livraria lendo de graça aqueles novos romances brasileiros de cento e poucas páginas que se termina rapidinho, e voltávamos juntos pra casa.
Não consumíamos quase nada e, mesmo assim, apesar disso, talvez por isso, éramos felizes. Mais importante, éramos viáveis.
Algumas das pessoas mais felizes que conheci eram ex-ricas, escreveu uma vez o psicólogo Flávio Gikovate. Nossa sociedade é tão obcecada por dinheiro que pode ser libertador perdê-lo: percebe-se, de uma vez só, o quão pouca falta ele faz.
Para mim, essa certeza de que conseguia me sustentar sozinho, com esforço mínimo, foi talvez a revelação mais importante da minha vida.
Eu não precisava me escravizar dez horas por dia em um escritório sem janelas, realizando os projetos de outras pessoas, trocando a energia vital da minha juventude por água Perrier e por relógios Hublot.
Percebi que vender minha alma ao mercado de trabalho não era o único modo de viver.
Que se eu abdicasse da água Perrier e dos relógios Hublot, ou mesmo de água Petrópolis e de relógios Swatch, eu poderia trabalhar menos e ter mais tempo livre: criar mais, viver mais, dormir mais, transar mais, ir mais à praia.
E também ser um melhor filho, um melhor marido, um melhor amigo. Ouvir mais, ajudar mais, me doar mais.
Hoje, bebo água de um filtro de cerâmica São João e, depois de vender o Hublot, nunca mais usei relógio.
* * *
Viver é barato, nossas escolhas é que são caras
Minha cidade conta com uma rede extensiva de transporte público, com passagens razoavelmente baratas. Se mesmo assim eu escolho ter carro, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.
O Estado brasileiro me oferece (não de graça, mas em troca dos meus impostos) saúde e educação, do nascimento à morte. Se mesmo eu escolho pagar de novo por educação ou saúde particular, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.
Existem diversas bibliotecas públicas na minha cidade, uma na minha própria rua, cheias de livros que ainda não li e provavelmente até gostaria. Se mesmo assim eu escolho pagar por um livro, pelos preços absurdos que nosso mercado editorial cobra, só pra matar minha vontade de ler esse livro agora, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.
Se escolho pagar quase oitenta reais pra ver no cinema um filme que poderia ver na TV aberta ou baixar de graça no computador, porque estou sentindo desejo de ver esse filme agora, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.
Os exemplos poderiam se multiplicar infinitamente, mas só porque o capitalismo inventou maneiras infinitas de encarecer minha vida, de me fazer querer pagar por algo que poderia ter de graça, só porque alguém enfiou na minha cabeça (dica: publicidade) que preciso ter aquilo, agora, daquele jeito!
* * *
Dinheiro só serve para comprar tempo
A única coisa que tem realmente valor, a única coisa que estamos sempre comprando, é tempo. Achamos que vale a pena pagar oitenta reais por um filme que vai passar mais tarde na TV aberta de graça porque queremos ver agora, porque não queremos esperar, porque nao temos tempo.
E só estamos dispostas a comprar tempo com dinheiro…. porque não temos tempo, mas temos dinheiro. E não temos tempo, somente dinheiro, porque escolhemos vender a maior parte do nosso tempo ao mercado de trabalho em troca de dinheiro.
O dinheiro, fundamentalmente, só serve para comprar tempo: mais tempo de vida, mais tempo de qualidade de vida, mais tempo com nossa família, mais tempo fazendo as coisas que queremos fazer.
Poucas mentiras são maiores que “tempo é dinheiro”. Porque o dinheiro perdido você pode até recuperar; o tempo perdido nunca mais volta.
Por isso, embora seja inevitável vendermos parte do nosso tempo por dinheiro, será sempre o pior negócio do mundo vendermos todo o nosso tempo, não importa por quanto dinheiro.
Porque, se não temos tempo, então, todo o dinheiro do mundo não serve pra nada.
Os bilionários do submarino, quando perceberam que tinham um minuto de vida, eram as pessoas mais pobres do mundo.
* * *
O que é uma escolha
Uma leitora me escreveu, indignada:
"Você não entende, Alex! Eu escolhi sim pagar um plano de saúde particular mas é só porque o SUS está um caos!"
Mas escolher pagar um plano de saúde particular porque "o SUS está um caos" é a definição de escolha.
No nosso mundo imperfeito, não existe escolha entre opções perfeitas. Nem faria sentido, aliás. Em toda e qualquer escolha, em maior ou menor grau, existem prós e contras em todas as opções e escolhemos uma por considerar as outras piores.
Não estou afirmando que o SUS é “bom” ou que “funciona como deveria” e nem que é “ruim” ou que “não funciona como deveria”. Essa é uma opinião subjetiva que depende dos critérios e expectativas e experiências de vida de cada pessoa.
Estou afirmando que escolher um plano de saúde pago por considerar que "o SUS está um caos" não faz dessa escolha menos uma escolha. Considerar que "o SUS está um caos" é somente a razão dessa escolha.
Por outro lado, muitas pessoas que usam o SUS não escolheram usar o SUS: elas usam o SUS porque, de fato, concretamente, não têm dinheiro mesmo para pagar saúde particular.
Para comprovar que as pessoas que escolheram pagar plano de saúde particular fizeram, de fato, de verdade, uma escolha… basta compará-las com as pessoas para quem essa escolha nunca esteve aberta. (Esse foi o tema principal da Prisão Classe: no Brasil, as duas principais classes sociais são as pessoas-que-têm-escolhas e as pessoas-que-não-têm.)
Não estou criticando as pessoas que escolheram ter carro, contratar plano de saúde, ou comprar livros, ou estudar em escola particular. (Nem faria sentido essa crítica. Já fiz tudo isso.) Estou somente dizendo que essas escolhas são escolhas.
Portanto, se eu escolher encarecer minha vida, não faz sentido então reclamar que "a vida" está cara: é a minha vida que está cara, por causa das escolhas caras que eu fiz.
Mas tudo que foi escolhido também pode ser desescolhido.
Se não, nem valia a pena escrever esse livro.
* * *
O privilégio de ter escolhas
Vivemos em um país injusto e desigual.
Então, quando falamos em escolhas, não podemos nunca esquecer do seguinte: talvez a grande divisão da nossa sociedade seja entre as pessoas que têm todas as escolhas e as pessoas que têm escolhas bastante limitadas.
"Meritocracia" e "liberdade de escolha" são dois dos grandes mitos que nossa direita gosta de propagar para justificar e proteger seus privilégios.
Para as pessoas privilegiadas, ignorando sempre que nem todas as pessoas tiveram as mesmas possibilidades de escolha que elas, é muito fácil e muito tentador apontar para as pessoas oprimidas e exploradas... e afirmar que elas são oprimidas e exploradas porque escolheram ser assim! Porque não trabalharam duro!
Então, esse aqui é um texto escrito por uma pessoa privilegiada, que teve todas as escolhas e possibilidades, para outras pessoas privilegiadas que também tiveram todas as escolhas e possibilidades.
Mas, enquanto estamos aqui falando entre nós dentro de nossa bolha de privilégio, é importante não esquecer que estamos cercados de pessoas que não tiveram as mesmas vantagens que nós. Mais importante, não tiveram e não têm as mesmas escolhas.
Se existe alguma luta política digna desse nome, é para que todas as pessoas tenham as mesmas possibilidades de escolha, ou seja, de liberdade, de potência, de autonomia.
Desenvolvo esses temas na Prisão Classe.
* * *
Esse texto foi importante pra você?
Se meus textos tiveram impacto em você, se minhas palavras te ajudaram em momentos difíceis, se usa meus argumentos para ganhar discussões, se minhas ideias adicionaram valor à sua vida, por favor, considere fazer uma contribuição do tamanho desse valor. Assim, você estará me dando a possibilidade de criar novos textos, produzir novos argumentos, inventar novas ideias.
Sou artista independente. Não tenho emprego, salário, renda, pai rico. Vivo exclusivamente de escrever esses textos que abriram seus olhos e mudaram sua vida. Dependo da sua generosidade. Se não você que me lê, então quem?
pix: eu@alexcastro.com.br
* * *
Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
Respeito (em breve)
* * *
O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em julho, estamos conversando sobre a Prisão Trabalho. Nossa aula acontece na quarta, 26 de julho de 2023, às 19h. Antes disso, estamos conversando sobre esses temas em nosso grupo de Whatsapp. E, sim!, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?
Alex, fiquei impressionada na similaridade de seu raciocínio com as frequentes conversas que tenho com amigos sobre privilégio, consumismo e tantas outras coisas que o sistema vai colocando como "natural" em nossa vida. Tive esta percepção que trouxe no texto quando sai do mercado corporativo para cuidar da minha filha, mudei radicalmente meu estilo de vida (vulgo, custo) e não imaginava o quão libertador poderia ser, embora até hoje veja que muitas pessoas próximas associam baixar o custo de vida como "coitada dela" e pensam isso enquanto reclamam de rotinas exaustivas em trabalhos que não lhes trazem nenhum propósito, apenas dinheiro, para comprar tempo.
Bateu fundo .. como sempre seus textos são práticos - claros - lúcidos .. abraços