Há dez anos, voltei para o Brasil
Um texto com fofocas nunca antes contadas sobre a minha vida.
(Sempre quero saber sua opinião sobre esses textos: se recebeu por email, basta responder; se está lendo no site, basta comentar.)
Faz exatamente 10 anos que eu larguei um doutorado, e uma carreira acadêmica encaminhada, nos EUA, para voltar para o Rio de Janeiro do Cristo decolando.
Toda volta assim tão radical, que desmancha totalmente um caminho e te deixa numa mata sem picada, tendo que abrir outra do zero, acontece por diversas razões.
A mais importante foi a seguinte:
Adoro literatura, ler e pensar, ensinar e conversar literatura... mas adoro, mais que tudo, criar literatura.
Mesmo se eu chegasse no topo da carreira para onde estava me encaminhando, mesmo se virasse professor nível máximo, com estabilidade no emprego, em uma prestigiosa universidade internacional... ainda assim eu sentiria minha vida como um projeto fracassado, sem sentido. Não era esse o meu caminho.
Por outro lado, se fosse escritor, se passasse meus dias escrevendo, criando, produzindo literatura, se esse fosse o meu cotidiano diário, então a minha vida já teria significado e propósito independentemente de onde chegasse. Eu queria viver a vida de escritor, não necessariamente alcançar nada. Esse era o meu caminho.
Existem caminhos que só fazem sentido se chegarmos a algum lugar. Admiro quem tem a abnegação de seguir esses caminhos, com suas recompensas eternamente deferidas. Mas a morte nos espreita a cada passo. Para mim, esses caminhos são armadilhas. Os únicos caminhos que fazem sentido são os caminhos onde o simples estar neles já é a sua própria recompensa.
Então, em julho de 2011, voltei.
Morava num quitinete em Copacabana, traduzia literatura estrangeira para a editora Record (nunca publicaram nem um único dos seis ou sete livros que traduzi!) e escrevia para o site PapodeHomem (meus textos no PdH). Em outubro de 2011, lancei meu livro de contos Onde Perdemos Tudo, pela editora Oficina Raquel, e a vida parecia que estava entrando numa nova fase.
(Onde Perdemos Tudo faz parte de Mentiras Reunidas, meu livro que está saindo esse ano, em versão capa dura exclusiva. O livro atrasou um pouco, então ainda dá tempo de comprar.)
Infelizmente, logo depois disso, os meus primeiros meses foram tão catastróficos que não posso nem contá-los em detalhes. Em novembro de 2011, uma pessoa querida sofreu um surto psicótico: enquanto eu tentava contê-la, para não se machucar, ela destruiu meu laptop e meu celular e quebrou a mão de tanto bater na minha cara — imaginem como ficou meu rosto. Na virada de 2011 pra 2012, as coisas pioraram bastante, eu não conseguia sair de um relacionamento violento onde me encontrava e achei melhor pelo menos colocar meu corpo fora do alcance de quem o estava agredindo, sem dizer para onde iria. Passei os primeiros dois meses de 2012 isolado em uma casa na cidade de Rio Grande, quase no extremo sul do Brasil. Aproveitei para viajar pelo país e conhecer pessoalmente muita gente com quem me correspondia há anos. Em março de 2012, voltei para o Rio e, já em junho, me apaixonei de novo.
Infelizmente de novo, foi outra relação abusiva: a pessoa era uma mitômana convicta, mentiu, enganou, manipulou. No fim das contas, quando comecei a ser ameaçado de morte por alguém que se dizia seu namorado, e ela jurava ser solteira, achei melhor não pagar pra ver: a verdade é que, depois da vigésima versão sobre os mesmos fatos, não faz mais diferença qual delas é a verdade. A verdade era que eu tinha que cortar o contato e me afastar, e foi o que eu fiz. Em agosto de 2012, pela segunda vez em oito meses, saí da cidade para proteger minha integridade física.
(Alguns dias antes, só para aumentar as desgraças, eu tinha perdido laptop e celular, kindle e máquina fotográfica, dinheiro e cartões, basicamente tudo o que eu tinha, em um furto de pousada em Paraty.)
Pois bem, saí em outra viagem pelo Brasil, ficando na casa de pessoas queridas que me recebiam, e sempre escrevendo e traduzindo muito. Por incrível que pareça, eu estava tão absurdamente feliz de estar de volta ao Rio de Janeiro e ao Brasil, de estar vivendo minha vida de escritor, de passar o dia escrevendo, que todas as minhas memórias desse período são felizes e positivas — apesar de racionalmente eu saber bem que foi uma desgraça depois da outra.
No começo de outubro de 2012, 15 meses depois da minha volta, publiquei um de meus textos mais famosos e queridos, Feminismo para homens: um curso rápido, que ainda é lido e citado até hoje. Só no primeiro mês ele foi lido mais de um milhão de vezes. (Ele foi depois republicado no meu livro Outrofobia, lançado em 2015.)
Infelizmente, e esse é o terceiro e último infelizmente, o texto gerou um backlash fortíssimo e violentíssimo, tanto de misóginos refratários a qualquer menção à feminismo, quanto de algumas feministas que achavam que um homem não deveria estar falando de feminismo nem para outros homens. Enfim, antes mesmo de existir essa expressão, fui cancelado avant-la-lettre: a terrível impressão é que, de repente, todo mundo está falando de você, todas as pessoas te odeiam, é um horror.
(A verdade nunca é essa: os canceladores gritam alto mas são sempre poucos. O maior erro é se engajar com eles, alimentar essa fogueira. Se ficarmos quietos, eles cansam, somem, esquecem.)
E foi o que fiz. Em outubro de 2012, fiquei offline por um mês. (Ficar offline por um mês era algo que eu fazia regularmente desde julho de 1996, sempre que achava que a internet estava sugando muito da minha vida. Hoje em dia, em 2021, a vida já está tão conectada que o próprio conceito de ficar offline perdeu o sentido.)
Felizmente, nesse mesmo começo de outubro, quando já estava quase desesperando de relacionamentos, eu que sempre tive orgulho das pessoas incríveis que amei e que me amaram, conheci uma nova pessoa e me apaixonei. Por coincidência, ela também era famosinha na Internet, também estava sofrendo um backlash, também tinha decidido passar um mês offline. E ficamos juntos, nos conhecendo e nos amando, enquanto a internet pegava fogo: ela não me deixava fazer egosearch do meu nome e vice-versa.
Na história da minha vida, esse relacionamento marca o final do meu catastrófico período de chegada: entre julho de 2011 e outubro de 2012, tudo foi confusão, violência, assentamento. Agora, eu estava novamente nos braços de alguém em quem podia confiar, com quem podia construir algo. E, durante três anos, construímos. Foi tudo o que eu relacionamento saudável tem que ser: eu me senti amado, acolhido, acompanhado; ouvi, aprendi, mudei; saí do relacionamento uma pessoa melhor do que tinha entrado; sofri como um cão sem dono quando terminou. Enfim, um relacionamento.
Escrevi para o PapodeHomem entre 2011 e 2017. Publiquei Onde Perdemos Tudo (contos), em 2011, a Autobiografia do Poeta-Escravo (história) e Outrofobia (ensaios) em 2015, a versão cubana da Autobiografia em 2016, e Atenção., pela editora Rocco, em 2019. 5 livros em dez anos, um deles no estrangeiro. Nada mau para quem queria viver a vida de escritor.
Mas o que descarrilhou foi a carreira de ficcionista. Quando saí dos EUA, em julho de 2011, eu estava escrevendo um romance chamado Cria de casa, ou Quem não está, sobre escravidão e trabalho doméstico, passado no Rio, em Havana, em Nova Orleans. Hoje, em julho de 2021, ainda estou escrevendo esse maldito livro — em grande parte porque mal olhei para ele em dez anos.
A verdade é que o trabalho diário no PapodeHomem me empurrou para escrever textos mais políticos, ensaísticos, não-ficcionais. Ou seja, textos que trazem satisfação instantânea, engajamento imediato. Não me arrependo: o PapodeHomem não só me sustentou por muito tempo e me permitiu viver a vida que eu queria viver (sempre serei grato), mas três dos meus livros, Outrofobia, Atenção. e o Livro das Prisões, que ainda estou finalizando, são coletâneas de material publicado primeiro no PapodeHomem.
Não só isso: o PapodeHomem também ajudou a me empurrar em direção ao budismo. (Praticamente todo mundo na redação era não só budista, mas extremamente engajado no budismo.) Eu, que já começara a freqüentar um templo zen em Nova Orleans, me senti em casa. Comecei a freqüentar um templo zen no Rio, me ordenei, fiz curso para ser instrutor de meditação e professor de budismo e, quando começou a pandemia, uma de minhas tarefas era dar o acolhimento semanal às pessoas iniciantes que nos procuravam.
(Os ensaios de Atenção. são todos fundamentalmente sobre zen-budismo. Dois textos sobre minha trajetória religiosa, como foco no retiro zen que fiz em Auschwitz, em 2016: Um escritor no campo de concentração, escrito antes, e Notas de um retiro em um campo de concentração, escrito depois.)
Esses dois movimentos, tanto o maior engajamento político quanto o maior engajamento religioso, foram pessoalmente muito importantes. Ao longo desses dez anos, eu me tornei uma pessoa demonstravelmente menos escrota, menos insensível, menos machista, menos elitista. Mas, por vários motivos, me afastou da ficção.
Agora, na pandemia, para ganhar dinheiro, inventei de dar cursos de literatura. Afinal, foi algo que fui muito bem treinado para fazer. (Em 2020, sobre o cânone ocidental: Introdução à Grande Conversa e, agora, em 2021, ainda em andamento, sobre o cânone brasileiro: A Grande Conversa Brasileira, ambos à venda.) Os cursos foram e estão sendo uma delícia: não só, de fato, me sustentei durante a pandemia, mas também reencontrei a alegria de ensinar literatura.
Talvez um pouco demais. De repente, me peguei querendo dar outros cinco cursos. De repente, me peguei querendo voltar ao mundo acadêmico, agora no Brasil. De repente, voltaram todas as questões pessoais, artísticas, profissionais, existenciais, que me fizeram sair dos EUA há exatos dez anos.
Quem sou eu? O que quero da minha vida? Qual caminho quero seguir?
E as respostas, apesar dos recentes impulsos desencontrados, continuam as mesmas desde os meus 12 anos: sou artista, quero criar arte, esse é o meu caminho.
Então, nesse momento de maior tentação, de maior vontade de ensinar novos cursos online, de maior vontade de voltar ao mundo acadêmico, decidi dar um passo atrás e investir todas minhas energias na minha ficção.
Porque, senão, meu caminho não faz sentido.
Nos últimos dez anos, não é nem que não escrevi ficção: eu apenas não consegui terminar nenhum projeto ficcional.
Compartilho com vocês o que tenho começado:
Cria da casa/Quem não está:
É um projeto enorme e complexo, de múltiplas histórias interconectadas, juntando Rio, Havana, Nova Orleans, escravidão e trabalho doméstico, começado em 2007 e com centenas e centenas de páginas já escritas. (A Autobiografia do Manzano foi traduzida para fazer parte desse projeto e só saiu em livro separado por causa do sucesso do filme 12 anos de escravidão.) Ainda faltam escrever três noveletas: uma menor, comparando manuais de como lidar com domésticas, do século XXI, com manuais de como lidar com escravos, do século XIX; a mais central para o livro, “Cria da casa”, uma história passada no Rio de Janeiro dos séculos XIX e XXI; e a mais longa, “Navio Negreiro”, durante o furacão Katrina, em Nova Orleans. (Meu depoimento sobre o Katrina.)
Romance pré-histórico:
Começado em 2016. Ainda estou infinitamente reescrevendo o primeiro capítulo, buscando um tom que me agrade. Uma investigação sobre quem realmente somos, ou melhor, quem éramos, antes de inventar monogamia, propriedade privada, nacionalismo. É a história de um povo nômade, que não pratica agricultura, nem produz objetos: tudo o que fazem é brincar com seus próprios corpos (se masturbam, se lambem, se tocam, se abraçam) e falar falar falar (discursar, fofocar, contar piadas, trocar histórias). O corpo e a fala: o mais perto que temos de uma essência.
Adeus, Rio:
Começado em 2018. Uma carta de amor ao Rio de Janeiro. Em 2064, um ano antes do quinto centenário, a cidade é destruída por um terremoto seguido de tsunami. O livro conta a história de um viajante do tempo nível júnior cujo trabalho faz com que precise passar na cidade o ano anterior à tragédia, dando suporte a outros viajantes do tempo mais seniôres. Ele é carioca, mas do futuro, em uma época onde a cidade foi reconstruída de maneira bem diferente. Então, ele se sente em casa, em sua própria cidade, mas também não, pois tudo aquilo que o cerca é o que será destruído, e tudo aquilo que ele conhece ainda não existe. De que maneira uma cidade é uma cidade? O que faz de uma cidade, uma cidade? Onde está sua alma, sua essência? Existe isso? Já tenho umas cinqüenta páginas.
Náufragos do tempo:
Começado em 2018. Mais viagens do tempo. Essa é minha tentativa de criar uma premissa ampla e flexível que permita a criação de várias histórias, contos, noveletas, episódios, etc, dentro do mesmo universo ficcional. Já escrevi uma Bíblia da série, diversas sinopses e boa parte de um episódio. A premissa eu conto depois.
Agora, estou me dedicando ao primeiro projeto, especialmente “Navio-negreiro”.
O modelo de negócios aqui do Substack é dar um espaço gratuito para criadores de conteúdo como eu terem newsletters e, então, nos convencer a criar newsletters exclusivas para assinantes pagos.
Não é uma má ideia.
Estou considerando seriamente escrever o romance “Navio-Negreiro” aqui, ao vivo, para assinantes pagos, que queiram tanto me apoiar quanto acompanhar a escritura do romance ao vivo. O valor seria baixinho, tipo R$5 mensais. Mas tenho que pensar melhor se será possível e sustentável. A maior utilidade seria em garantir que eu efetivamente terminasse o romance: faria o compromisso de devolver 100% do valor a todo mundo se não chegasse ao fim. (Você pagaria?)
De qualquer modo, mostrando ou não, tenho passado as últimas semanas e, espero, os próximos anos escrevendo ficção.
Para quem quiser me apoiar, e preciso e agradeço, pode tanto divulgar essa newsletter e repassar meus textos, quanto visitar minha página de mecenato.
E muito, muito obrigado.
Alex Castro
As newsletters do Substack parecem uma boa ideia. Eu assinaria a sua. A coluna de literatura da Folha de sábado passado falou dessa plataforma. E justamente eu estava pensando que os perfis do Facebook com bons conteúdos podiam fazer newsletters, para sairmos dessa rede que virou um mercado persa de tantos anúncios.
Quero assinar seu trabalho por aqui, Alex. Até porque você tem me ensinado muita coisa nos últimos anos. Aliás, acabei de falar sobre isso aqui: https://mauroamaral.substack.com/p/o-que-eu-aprendi-com-alex-castro