O desabafo da moça do crachá
Boa vontade, sorrisos e empatia não valem nada sem mudança social. (Talvez meu melhor texto.)
Um de meus melhores textos. Pra vocês lerem, relerem, repassarem.
Esse monólogo, interpretado pela atriz Sol do Rosário (acima, em cena), foi o ponto alto da minha peça Outrofobia, que esteve em cartaz em Curitiba em 2019, com dramaturgia minha e de Tomás Barreiros, e dirigida por Surian Barone.
(Aliás, lancei um curso novo essa semana, História do Mundo Enquanto Fofoca, que estou vendendo com desconto exclusivo para pessoas leitoras da newsletter, só até amanhã, sexta, 19nov, aqui.)
* * *
Em um belo dia de sol, minha vida bonita e organizada, meu emprego seguro e minha esposinha mais segura ainda, decidi ir ao shopping center e me fazer um agrado. "Eu mereço!", falei para mim mesmo.
Confiando em um logotipo tradicional que conhecia desde a infância, entrei em uma loja, caminhei até uma das associadas, li e memorizei o conteúdo do crachá que ela trazia no peito, e, feliz comigo mesmo por ser o tipo de gente que chama as pessoas humildes pelo nome, sorri o meu sorriso mais caloroso e disse:
"Oi, Pri, tudo bem?"
Antes, porém, que eu pudesse emendar o meu pedido, Pri me interrompeu e começou:
"O senhor se acha o gostosão, né? Só por falar comigo como se eu fosse gente, só por reconhecer minha humanidade, só por invocar meu nome como se ele fosse uma simpatia para garantir o seu perfeito atendimento de acordo com os padrões internacionais da nossa veneranda empresa, cujas franquias são sempre idênticas, seja em Paris, Pequim ou Pirenópolis, uma vitória da logística padronizada do capitalismo ocidental!
"Mas, me diga, sinhôzinho: de que me adianta esse meu apelido carinhoso em seus lábios de completo estranho? O senhor acha que está me fazendo algum bem? Que existe algum mérito nisso? Que o meu nome te inocenta?
"O senhor acha que essa fórmula invocatória me ajuda a conseguir quem tome conta da minha filha enquanto estou aqui no turno da madrugada, sacrificando minha saúde e minha vida pessoal, tentando ganhar alguns trocados a mais no fim do mês? O senhor acha que esse seu sorriso, tão bonito e tão perfeito, de quem teve condições financeiras de usar aparelho ortodôntico desde os dez aninhos de idade, vai me ajudar a pagar o aluguel do meu quarto, que já está atrasado e, aliás, vai aumentar, na verdade, dobrar mês que vem, porque, sabe como é, disse a proprietária, esse é meu único imóvel, vivo disso, minha filha, negócios são negócios, tem a copa vindo aí, sabe?, e ela é tão boa e tão simpática, me oferece pedaço de bolo e tudo, mas em fevereiro minha filha e eu não temos mais onde morar e nem ninguém para nos oferecer um mísero pedaço de bolo solado. (Quando o bolo fica bom, ela não oferece.)
"Enquanto isso, o senhor aí dizendo "Pri" com um sorriso caloroso nesse rosto tão bem alimentado e satisfeito. Tão feliz.
"E o que uma pessoa tão boa como o senhor está fazendo aí de pé na minha frente? O que poderia trazer um indivíduo tão generoso a uma instituição tão canalha e predatória quanto essa nossa empresa ISO um milhão, presente em quinhentos e três países, gerando nove bilhões de empregos diretos e indiretos? Será que o senhor não sabe que o nosso respeitável e bem-sucedido conglomerado internacional destrói todos os pequenos negócios a sua volta? Que nossos funcionários, perdão, associados, ganham pouco, muito pouco, no limite ali do que a lei permite, só para evitar os incômodos benefícios trabalhistas? Que essa empresa pilar do mundo corporativo trata os seus próprios fornecedores como uma verdadeira máfia, usando seu poder econômico para comprar mais e mais barato, às vezes quase a preço de custo, sem se preocupar com quantos pequenos produtores ela leva à falência? (Afinal, sempre vai haver um fluxo infindável de empresas-lemingues querendo doar sua produção quase gratuitamente para a glória do nosso gigantesco império multinacional!)
"Será que o senhor não sabe que os nossos preços à vista são de fato muito baixos mas só porque a maioria dos nossos clientes, de baixo poder aquisitivo, não compra nunca à vista e que a empresa ganha mesmo seus lucros abusivos e descarados cometendo os planos de parcelamento mais cruéis, enganadores e perversos jamais perpetrados por uma pessoa jurídica? Que nos seus relatórios de fim de ano aos gordos e prósperos acionistas, nossos eficientes executivos, todos religiosos e atuantes em suas igrejas, se orgulham de vender uma geladeira pelo preço de três justamente aos consumidores mais pobres e indefesos que nunca conseguiram aprender matemática em nossas péssimas escolas públicas? E tudo isso, pasmem!, estritamente dentro da lei, da lei democraticamente produzida pelos políticos que o senhor democraticamente elegeu, políticos que receberam valiosas doações de campanha do nosso glorioso conglomerado cósmico, uma das empresas que mais doa para manter bem-lubrificadas as engrenagens democráticas desse nossa pátria amada e idolatrada, salve salve!
"Mas, mesmo assim, quem diria, aqui está o senhor, uma pessoa tão boa e tão generosa, dizendo "Pri" com um sorriso agora amarelo nessa cara cada vez mais vermelha e ainda esperando ser atendido. Afinal, para economizar vinte reais no preço do seu microondas, vale a pena ser cúmplice de tudo isso, não? O que conta é a sua economia pessoal. Tem que levar vantagem em tudo, certo? Tem que pesquisar, tem que comparar. Oferta e demanda, as belezas do capitalismo, a mão invisível da economia de mercado, trá-lá-lá. O senhor não é responsável pelos crimes e faltas dessa empresa que suas compras financiam. por favor! O senhor é inocente, claro! O senhor pessoalmente não fez nada de mal pra ninguém, não é? Quantos fornecedores o senhor pessoalmente levou à falência? Nenhum! Quantos funcionários o senhor pessoalmente demitiu por ficarem tempo demais no banheiro? Nenhum, claro! O senhor só quer o melhor negócio, o melhor preço, não é isso? Quem poderia culpar o senhor? Não é o que todo mundo faz? Não é essa a norma, a regra? Não foi o que nos ensinaram? Por favor! Não sejamos radicais, não é?
"O senhor pode até dizer (se não achar que essa defesa está muito gasta pelo excesso de uso) que estava só cumprindo ordens: as ordens das nossas onipresentes e multimilionárias campanhas de publicidade, em muros, ônibus, cartazes, tevê e filmes; com fotos completamente impossíveis dos nossos hambúrgueres (que nunca são tão bonitos assim!); com campanhas que associam nosso xarope gaseificado a pessoas lindas e magras que jamais seriam magras assim se realmente consumissem nossa bebida hiper-açucarada; com anúncios estrelados por celebridades ricas demais para jamais consumir um produto popular e malfeito como o nosso; com slogans neurolinguisticamente elaborados para ecoar sem piedade e sem salvação dentro do seu crânio, te mandando comprar comprar comprar, curtir curtir curtir, economizar economizar economizar. Coitado do senhor! Nunca teve chance, né? Ó dó. Não é culpa sua, buana.
"Pena que é sim. Tudo culpa sua. Eu, aqui, agora, pelos poderes concedidos a mim por essa hipertrofiada corporação multicontinental, convoco toda a culpa do universo e a deposito solenemente nos seus ombros. A culpa é toda sua, do senhor mesmo, aí dizendo "Pri" com esse sorriso cada vez mais murcho.
"Tenho nojo do meu nome nos seus lábios, paxá. Tenho nojo de ser alvo de uma manipulação tão barata, tão óbvia, tão hipócrita. O senhor sabe por que estou usando um crachá com o meu nome? Porque pesquisas de mercado lá da metrópole demonstraram que saber o nome da criadagem, ops, dos associados, faz com que os amos, ops, os consumidores se sintam entrando na casa de uma pessoa que conhecem. Afinal, ninguém nunca vai na casa de alguém sem saber seu nome! O objetivo do crachá é fazer com que os clientes se sintam acolhidos e bem recebidos, e assim comprem mais, voltem numerosas vezes, tenham uma experiência melhor na loja, e gerem lucros, lucros, lucros. (Se meu gerente achasse que ganharia um centavo a mais em seu bônus anual arrancando meu coração do peito ainda batendo, já teria feito isso na primeira oportunidade, seguro de contar com o entusiástico apoio da direção e dos acionistas.)
"O objetivo do meu nome no meu crachá nunca é e nem nunca foi reconhecer minha própria humanidade e subjetividade. Rá rá, perdão, sahib, me engasguei de rir. Se o engenho de fato reconhecesse minha individualidade de pessoa humana, então meu capataz, ops, meu gerente me trataria como se eu fosse gente e se dignaria a conversar comigo quando precisasse falar com ele; eu receberia duas horas a mais de trabalho por semana só para me qualificar pra uma série de benefícios trabalhistas que me fazem muita falta; minhas horas-extras seriam pagas em dia ou mesmo, rá rá, perdão de novo, simplesmente pagas; eu não seria tratada como uma engrenagem intercambiável que pode ser a qualquer momento substituída por outra engrenagem que faria rigorosamente a mesma coisa e ninguém perceberia a diferença.
"Mas o meu nomezinho no meu crachazinho não é só para melhorar a experiência dos donos, ops, dos consumidores. Aliás, adoro essa palavra: experiência. Sempre penso que, nessa experiência, o único lugar que me cabe é o de beagle torturada e dissecada, sem ninguém para invadir o laboratório e me libertar. (Não devo ser fofa o suficiente para valer o esforço!) Mas estou divergindo, sinhôzinho, perdão.
"As mesmas pesquisas de mercado também indicam que os sultões sentem falta de saber o nome dos serviçais para poder melhor reclamar deles. Afinal, ainda mais em democracias raciais como a nossa, os escravos, ops, os associados, se parecem todos uns com os outros, ou seja, tendem a ser de uma raça, de uma cor, de uma classe social diferente dos senhores de engenho, ops, dos clientes, então, convenhamos, fica até difícil diferenciá-los, né? Do ponto de vista dos amos, quem não tem boa aparência é tudo igual.
"Então, quando o senhor for reclamar de mim ao capitão-do-mato, não vai precisar expor seu racismo dizendo que a cativa que ficou emperrando a fila pra lhe dizer umas verdades era aquela "moreninha" do "cabelo ruim", e sim que foi a "Pri". Aliás, cabelo ruim é o cacete. Ruim é a sua cegueira. Ruim é a sua falta de consciência. Ruim é você que está lendo esse texto demagógico e balançando a cabeça em concordância, mas não vai fazer nada a respeito. Ruim é você que está escrevendo essa besteira inútil como se fosse mudar alguma coisa. Danem-se todos vocês.
"Mas fica pior, kemosabe. Sempre tem como piorar. Sabe por que o meu crachá diz somente "Pri" e não meu nome completo "Priscila dos Santos Silva"? Não, não é porque já somos amigos íntimos eu e o senhor — repara que nem ouso chamá-lo de "você". Não, não é porque eu, mesmo sem querer saber o seu nome de patrício bem-nascido, ainda assim estou lhe dando explicitamente o direito de me chamar por um apelido tão carinhoso. Não, mestre.
"É porque as mesmas pesquisas de mercado indicaram que nomes completos teriam que ser escritos em fonte muito pequena, seriam difíceis de ler pelos marajás mais idosos ou mais míopes (ou faria com que tivessem que chegar perto demais da criadaria para poder ler seus nomes, talvez até perto o suficiente para sentir nossa inhaca de trabalhadores, deus nos livre!), e, mais ainda, seriam difíceis de decorar e lembrar. Então, a ordem da casa-grande foi pra dar um jeito de resumir nossos nomes em até quatro letras. Quatro. E eu consegui em três! Nosso lema é eficiência, buana.
"Tem mais. Quando os capatazes julgam que um dos escravos tem um nome difícil de pronunciar, ou pior ainda, nome de pobre, lhes rebatizam sem hesitação. Um colega de senzala nigeriano chamado Ilunga usa um crachá que diz "Alan". Meu amigo Uóston virou "Fred". Eu ainda tive sorte de ser a "Pri". Sou uma privilegiada. (Mas o senhor nem saberia como é isso de ser privilegiado, né, patrão? Depois o senhor me conta dos impostos escorchantes que pagou no seu novo iPad.)
"E ai de mim se tivesse me recusado a conceder a intimidade de me chamar de "Pri" aos clientes sem consciência da nossa magnânima e sobranceira empresa, que é uma das maiores empregadoras da nação, parte integrante do projeto nacional-desenvolvimentista do nosso internacionalmente celebrado governo de esquerda. Imagina! Eu teria gerado um novo posto de trabalho ali mesmo.
"Afinal, convenhamos, que diferença faz que eu seja a Priscila dos Santos Silva, aquariana, flamenguista e viciada em novela, filha de Felipe Gois da Silva e de Maria José de Sá dos Santos, que são gente, viveram, se conheceram, se amaram, me tiveram? Priscila dos Santos Silva, filha de Felipe Gois da Silva e de Maria José de Sá dos Santos, só tem uma. Mas "Pri", ora, meu patrãozinho, tem uma "Pri" em cada esquina. Quando eu for terminada, expulsa, demitida, esmagada, deglutida, cuspida fora, não vão nem precisar de um novo crachá. Haverá sempre um fluxo infindável de novas e novas Pris para alimentar o moedor de carne dessa meritória e fecunda instituição, pilar divino da indústria nacional, abençoada seja, ela está no meio de nós.
"Ah, sahib, então o senhor se preocupa mesmo com a sua serva aqui? Esse seu sorriso frouxo ao invocar meu nome não era apenas um ritual vazio antes de me passar suas ordens? Era carinho verdadeiro? Era porque o senhor realmente se importa? Eu acredito, claro. Como duvidar de um homem de bem como o senhor? (Eu não ousaria!) Então, deixa eu lhe contar o segredo da senzala.
"Não me adianta nada esse seu carinho.
"Não adianta falar meu nome com um sorriso e me tratar como pessoa humana, ao mesmo tempo em que prestigia com as suas compras o mesmo engenho que diariamente me desumaniza. Não adianta se vestir de branco e fazer passeata de mãos dadas contra a violência e contra a corrupção, bichos-papões convenientemente vagos e abstratos (alguém é pró-corrupção ou pró-violência, buana?), ao mesmo tempo em que elege e reelege os mesmos políticos com as mesmas plataformas pró-mercado & pró-indústria, anti-trabalhador & anti-assistência.
"Não adianta nada entrar no ônibus (mas o senhor nem deve andar de ônibus, né?) e saudar a cobradora pelo nome, e então reclamar quando a greve da categoria lhe causa o mínimo desconforto. Nem tudo gira em torno do seu umbigo privilegiado, vossa coxinhência. Qualquer greve tem como objetivo não atrapalhar a sua bem-organizada vidinha mas conseguir melhores salários e condições para trabalhadores que sobrevivem mensalmente com uma fração da sua renda. Os ônibus estão de greve? Então, apoie o movimento e vá a pé. Ou pegue um táxi: com certeza, o senhor pode pagar.
"Eu não quero nem o seu bom-dia, nem o seu sorriso. Não quero seu falso carinho, sua falsa intimidade, sua falsa preocupação. Eu não quero ouvir sua voz pronunciando meu santo nome em vão. Eu quero justiça social, direitos iguais, assistência do estado. Eu quero que as autoridades públicas, que a polícia, que os meus empregadores, que os clientes que eu atendo, que os homens que me assediam na rua, reconheçam em mim a mesma humanidade, a mesma individualidade, a mesma subjetividade que veem em si mesmos. É pedir muito?
"Eu quero que minha filha tenha acesso à saúde pública de qualidade para estar viva e saudável no momento em que a escola pública de qualidade lhe ensinar que não vale a pena comprar por 24 parcelas de cem reais uma tevê que custa 999 à vista. E isso só pra começar.
"Agora, meu senhor, em que posso servi-lo? Quer levar fritas grandes e uma garantia adicional de um ano por apenas mais dez reais?"
* * *
Meu desabafo, depois de ver a interpretação da Sol:
“Ontem, estreou minha peça Outrofobia, aqui em Curitiba.
Ver minhas palavras corporificadas no palco, diante de uma platéia cheia e atenta, foi talvez a maior emoção da minha vida.
Muito obrigado a toda equipe, em especial ao dramaturgo Tomás, que deu forma teatral aos textos, e ao diretor Surian, que realizou essa visão no palco.
Para mim, a parte mais emocionante e impactante foi testemunhar a atriz negra Sol do Rosário interpretando o meu Desabafo da Moça do Crachá.
Esse é o primeiro texto que escrevi para o teatro, em dezembro de 2014. Ele tem uma raiva, um vigor e um poder que me surpreendem a cada releitura.
Porque, com certeza, essa raiva, esse vigor, esse poder não são meus. Não sei de onde vieram.
Esse texto foi minha humilde tentativa de canalizar, através das minhas palavras, a raiva quase divina de muitas mulheres negras que tive o prazer e o privilégio de ouvir.
O texto não é meu, o texto agora é da Sol do Rosário. A Sol pegou o meu texto, minhas palavras, e as tomou para si. Fez delas sua própria carne e seu próprio suor.
Ontem, em um palco de Curitiba, eu testemunhei a Sol dando esse esporro de longos, quase intermináveis, vinte minutos em uma platéia toda branquinha.
Finalmente, eu entendi aquele elogio que nunca gostei: “foi um tapa na cara”.
Não foi, não. Quem me dera tivesse sido só um tapa.
Foi uma verdadeira surra.
E, enquanto acontecia, eu estava lá, não mais como autor, mas como platéia, como saco de pancadas.
O texto é da Sol.”
* * *
Um beijo do Alex,