“De portas abertas” é um dos contos do meu novo livro Mentiras reunidas, originalmente publicado em meu livro Onde perdemos tudo (2011). Abaixo, na íntegra.
(A pré-venda de Mentiras reunidas se encerra essa semana.)
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Amanda e eu nos conhecemos na boate. Não dentro: na porta.
Eu pastoreava uma matilha de amigos, todos pavlovianamente vestidinhos no melhor estilo da estação, e só eu de roupas coloridas. Amanda nos relanceou um olhar e sentenciou: todos entram, menos o aloha. Camisa florida aqui, nunca.
Eles escorraçaram-se para dentro e eu não ranqueei um segundo olhar de Amanda. Resignado, carreguei minhas frustrações para casa.
Correram algumas semanas e a tribo decidiu, num supetão, voltar à boate. Como sempre, eu estava fantasiado de eu-mesmo e carimbei: aquela ruiva vai me deixar na porta de novo. Eles me tranqüilizaram: imagina!, se eu fosse barrado, iríamos todos para outro lugar, e muito melhor!
Amanda me farejou de longe e não tirou as narinas de mim. O pessoal pressentiu: a ruiva da porta está toda aberta pra você. Assentamos mais de hora na fila e Amanda sempre me desviando olhares sonegados. Quando chegou nossa vez, chicoteou: os amiguinhos com estilo, entram, o camisa-florida, fica. E não me olhou mais.
Os amiguinhos, aqueles putos, nem tossiram: tinham esbarrado com a Alicinha na fila, combinaram de se esbarrar mais lá dentro, e você viu a bunda da Alicinha hoje?, não podiam deixar a bunda da Alicinha na mão!, e entraram. Eu, mais uma vez, me deportei de volta pra casa.
No mês seguinte, meus mui-amigos planejaram com antecedência uma nova ida à boate. Eu não queria participar, mas houve pressão. Aparentemente, a bunda da Alicinha estaria lá. Por sorte, tia Eulália morrera no ano anterior e eu tinha algumas roupas escuras no armário.
Depois da hora ritual de fila, os suplicantes chegaram diante do oráculo. Os olhos de Amanda sussurraram, discretíssimos, que me reconheciam, mas o resto de seu corpo preferiu não se comprometer. Fez um gesto soberbo e ganhamos entrada, sem burocracias.
Tirando o bundão da Alicinha - realmente fenomenal, mas melhor apreciado diariamente, de nove às onze, no posto seis - a boate era a estampa de qualquer outra: escura, ensurdecedora, emaranhada, esfumaçada.
E, por entre a fumaça, logo vi o cabelo malagueta de Amanda marchando com diligência, olhando para o escuro, estalando os saltos. Pensei: está à minha espreita! Mas não: ventou por minha mesa duas vezes e não fez nada. Por fim, fez. Ocupou a cadeira à minha frente e desferiu: eu não devia ter te deixado entrar. Você nessas roupas é a profanação de um lugar sagrado. E a culpa é minha. Daqui a duas horas, o movimento some e eu estou liberada. Me espere aqui e vamos entrar em um lugar muito melhor. E entramos.
Nossos dois anos de casamento foram delirantemente felizes, até o dia em que eu estava tomando banho e ouvi, por entre a água, o som da chave na fechadura. Só Amanda tinha a chave. Fechei a água e chamei: Amanda? Ela uivou: sou eu, sou eu, abre a porta, por favor, me deixa entrar. Tudo bem?, eu quis saber, ainda no chuveiro. A essa hora, ela deveria estar no trabalho. E por que sua chave não funcionava? A resposta veio num estalo: abre essa porta agora, rápido.
Pinguei pelo banheiro, correndo, mal encostando a toalha no corpo, tocou o telefone e nem atendi, mas a secretária atendeu:
Alô? Tem alguém em casa?, implorou a voz. Era Norma, colega de trabalho de Amanda. Atende, por favor, suplicou e, então, desabou: meu deus, não sei o que fazer, a Amanda, ela, nós estávamos tentando entrar no ônibus, o motorista não parou, ela foi correr atrás, tentou pular pela porta aberta e o motorista fechou a porta na hora, ela ficou com o braço preso, foi sendo arrastada, meu deus, meu deus!, e eu, já enxuto, me aproximei do telefone, mas não atendi, olhei a porta, mas não abri, coloquei a mão sobre a secretária e senti sua vibração: eu corri atrás do ônibus, não acredito que estou contando isso para uma secretária, você não está aí?, não sei o que fazer, eu corri atrás do ônibus, vi a Amanda sendo arrastada pela rua, ela gritou o tempo todo, eu também, os passageiros gritaram, mas o motorista não parava, não parava, até que parou, parou e fugiu, estou aqui do lado do corpo, preciso de voc-clique.
No silêncio, ouvi a respiração canina de Amanda do outro lado e caminhei até lá. O som do meu celular tocando chamou sua atenção e ela se achegou à porta, me deixa entrar, por favor, eu preciso entrar, eu preciso te ver, e passou os dedos sensualmente em volta do olho mágico, como se alisando meu rosto, aqueles dedos de unhas longas e negras que sempre me excitaram.
Acariciei a maçaneta, que soluçou mecanicamente ao meu toque. Amanda eriçou as orelhas e ganiu: por favor, eu não quero ir embora, você prometeu que iríamos ficar juntos pra sempre, que me protegeria e me acompanharia, não pode me largar aqui fora, eu te peço.
Me espalmei contra a porta como uma lagartixa e fiquei apreciando Amanda, registrando cada poro, cada pestana, sentindo ainda o aroma cítrico do seu sabonete de limão, embalado pelo som impotente da chave na fechadura, chorando lágrimas secas.
Algum tempo depois, sumiu. Só fui vê-la de novo quando reconheci o corpo.
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Mentiras Reunidas, em pré-venda
Está acontecendo a pré-venda do meu novo livro Mentiras reunidas, em versão capa dura, com bookbag, dedicatórias apócrifas e marcadores, e mais cinco contos exclusivos.
Essa versão capa dura só estará disponível nessa pré-venda: mais tarde, não estará disponível nem para venda pelo site, nem para venda em livrarias. Só nessa pré-venda, só agora. Depois, nunca mais.
No final do ano, se o resultado do capa dura for bom, vamos lançar Mentiras reunidas também nas versões brochura, ebook, áudiolivro, mas aí não vai ter bookbag, não vai ter capa dura e, mais importante, não vai ter os cinco contos exclusivos.
A edição brochura (se existir) será do mundo, vai vender nas livrarias e tal (espero!), mas esse capa dura, com a bolsa de brinde, é meu presente para minhas leitoras fiéis: ele reúne toda a minha ficção publicada e mais, doze contos inéditos, desde o meu primeiro conto, de 1987, até uma história escrita especialmente para esse livro, em 2019, passando pelos livros Mulher de um homem só (2009) e Onde perdemos tudo (2011).
Trinta e dois anos da minha produção artística, os frutos de todos os meus maiores esforços, em um só livro, só para você.
Cinco dos doze contos inéditos são exclusivos da versão capa dura e não estarão incluídos nas versões brochura, ebook e áudiolivro que venham a existir.
Todas as vendas serão realizadas pelo site da própria editora. (Dessa vez, não vou vender eu mesmo. Ou seja, não vai dar pra comprar na minha mão.) A editora aceita boleto, cartão de crédito e parcela em 3x. Para quem está no exterior, basta preencher um formulário e a editora entra em contato.
A pré-venda vai até 15 de abril e os livros começam a ser enviados em 31 de maio de 2021. (Repito: o livro não estará mais à venda, em nenhum meio, de nenhuma maneira, depois de 15 de abril.)
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