De onde veio a língua portuguesa?
Nossa língua também é uma questão de classe. Resenha de Latim em pó, de Caetano W. Galindo.
No final do ano passado, a Folha de S. Paulo me perguntou quais tinham sido os 5 melhores lançamentos de livros de 2023. O único livro nacional na minha lista, e o mais recente, foi Latim em pó: Um passeio pela formação do nosso português, de Caetano W. Galindo. Abaixo, uma resenha do livro que saiu na Folha de S. Paulo em março de 2023, seguida de alguns adendos e comentários.
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O título pode enganar alguns leitores distraídos. Talvez pensem: “Latim? Não tenho interesse em latim.” Mas o subtítulo entrega o verdadeiro assunto: “Um passeio pela formação do nosso português”.
O tal “latim em pó” é a própria língua portuguesa, na formulação poética de Caetano Veloso na canção “Língua”, do álbum “Velô” (1984):
Flor do Lácio, Sambódromo Lusamérica, latim em pó.
A citação não é gratuita: o autor, Caetano W. Galindo, só é Caetano graças ao Veloso.
Naturalmente, um passeio pela língua portuguesa precisa, se não começar, pelo menos passar pelo latim. Galindo prefere dar uns passos atrás e escolhe partir da própria ideia de língua.
Um dos focos do livro é nas mudanças e continuidades da língua portuguesa. Como testemunha e exemplo, convoca até Camões: no soneto “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,”, ele lamentava que era da natureza das coisas mudar sempre, mas nem tanto, pois “não se muda já como soía”. Mas sim, Camões, tanto as coisas, e a língua portuguesa mais especificamente, continuam mudando que para o leitor de hoje entender esse “soía” fora de uso precisamos de notas de rodapé: o que Camões queria dizer é que as coisas já não mudam como costumavam.
Latim em pó é também uma história social da língua. Galindo não perde ocasião de nos lembrar que não dá para passear pela formação do nosso idioma sem passar por classe, privilégio, desigualdade.
As línguas românicas (ou seja, as derivadas do latim) derivam não do latim clássico, bem escrito pelas pessoas ricas e bem-alimentadas, mas do latim vulgar, mal falado pelas pessoas pobres e trabalhadoras. Como aponta Galindo, se o Brasil descobrisse uma ilha deserta que precisasse ser colonizada, quem estaria mais disposta a largar tudo e ir pra lá? Não seriam as doutoras e concursadas, levando na bagagem a norma culta da língua.
Por isso, muitas das nossas palavras derivam não do latim culto, correto, clássico, mas do latim vulgar, pobre, rude. “Velho”, por exemplo, vem não de “vetus”, palavra que o douto orador Cícero teria utilizado, mas do humilde diminutivo “veclus”, equivalente ao nosso “velhinho”. Como sabemos disso? Porque temos “manuais de redação” do latim clássico, que, entre outras prescrições, recomendam evitar a forma corrompida “veclus” e preferir “vetus”. Mas, como sabemos, a língua pertence mais aos feirantes que aos gramáticos.
Aliás, é por isso que falamos “açúcar” e “algodão” (e não “súcar” e “cotão”), enquanto ingleses falam “sugar” e “cotton” e os franceses, “sucre” e “coton”. Nas línguas da Península Ibérica, durante os 700 anos de ocupação muçulmana, as palavras vindas do árabe foram absorvidas de ouvido, pelas camadas populares, nas feiras livres, barganhando preços, e o artigo acabou vindo junto, confundido com parte da palavra. Já no inglês e no francês, as palavras árabes entraram através das camadas mais cultas, por escrito, “em estado de dicionário”, na expressão de Carlos Drummond de Andrade.
Os exemplos, sempre interessantes, poderiam continuar sendo citados até reproduzir o livro quase inteiro. Outros capítulos traçam as influências indígenas e africanas na língua portuguesa, e também as origens e características dos diferentes sotaques brasileiros.
Latim em pó: Um passeio pela formação do nosso português é, antes de tudo, um passeio. Galindo, além de ser o tradutor premiado de Ulysses, de James Joyce, também atua como professor do departamento de Literatura e lingüística da Universidade Federal do Paraná. Por isso, ao mesmo tempo em que Latim em pó incorpora as últimas pesquisas da área e cita desde Marcos Bagno a Yara Pessoa de Castro, de Carlos Alberto Faraco a Gabriel de Ávila Othero, ele também se mantém firme no propósito de ser um passeio, informativo e cativante, não apenas para o especialista, mas para qualquer pessoa que use e ame a língua portuguesa.
Trecho:
“Falamos a mesma língua porque falamos versões diferentes de uma mesma língua sem um centro nítido, sem determinação única. ... [N]ossa irmandade há de incluir também ... [t]odas aquelas pessoas que um dia ergueram as vozes que nos deram “céu” (indo-europeu) “azul” (persa), que nos desejaram “axé” (fon), que nos moldaram o “barro” (ibérico) ou um “carro” (celta) de “boi” (latim), aquelas que por “azar” (árabe) atravessaram “guerras” (germânico), as mães que nos fizeram “pipoca” (tupi) e zelaram por nossos “cochilos” (banto).”
Serviço:
Título: Latim em pó: Um passeio pela formação do nosso português
Preço: R$59,90 (ebook R$29,90)
Autor: Caetano W. Galindo
Editora: Companhia das Letras
Classificação: Cinco estrelas
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Essa matéria, em versão condensada, saiu originalmente na Folha de S.Paulo, em março do ano passado:
Novo livro de Caetano Galindo traz português derivado do latim vulgar.
(Clique aqui para ler todas minhas resenhas para a Folha.)
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Adendo I
Um dos autores mais citados por Galindo é Carlos Alberto Faraco. Ele é autor da minha história preferida da língua portuguesa, História Sociopolítica da Língua Portuguesa, justamente porque se concentra no lado “sociopolítico” e menos naqueles detalhes linguísticos que só os linguistas entendem. Recomendo fortemente.
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Adendo II
Acabou de sair no Brasil Assim nasceu uma língua: Sobre as origens do português, do português Fernando Venâncio.
Enquanto Latim em pó é uma obra de divulgação que expõe a tese mais conservadora que o português veio do latim, Venâncio defende que o português na verdade veio do galego.
Teve gente dizendo que Assim nasceu uma língua é uma resposta à Latim em pó . Sim e não. Assim nasceu uma língua é de 2019, e Latim em pó , de 2023. Mas, sim, ambas as obras estão em diálogo.
Já estou com meu Assim nasceu uma língua aqui em casa. Daqui a pouco leio e conversamos mais.
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Adendo III
Para quem gosta de história da língua portuguesa, recomendo seguir o blog do escritor português Marcos Neves, aqui no Substack mesmo: Certas palavras. Nesse post recente, por exemplo, ele fala da distância entre o português e o galego.
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Tristão e Isolda
O romance de Tristão e Isolda já se tornou uma das minhas obras preferidas da vida. No vídeo abaixo, eu explico porque e conto uma das cenas mais engraçadas do poema. Assistam e me contem. :)
O romance de Tristão e Isolda é uma das leituras da nossa aula dessa quarta feira, 29 de maio, às 19h, na Grande Conversa Medieval.
Se você ama me ouvir falando de literatura, vem fazer o curso com a gente?
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados no último ano:
Felicidade (em breve)
Empatia (em breve)
Terminando Latim em Pó por agora e é mesmo ótimo. Só não entendi pq alguém sugeriria que o Galindo defende alguma tese de que o português viria diretamente do latim quando, na verdade, ele escreve literalmente "o português, então, não "vem do latim" diretamente. Vem do galego, que - este, sim - veio do latim" (p. 98).
Ótimo ,obrigado