Credo do rebelde: "podem me matar, mas não podem me vencer"
A Autoridade é fundamentalmente impotente. (Reflexões sobre a Prisão Respeito.)
Ser uma pessoa adulta é finalmente aprender a impor limites e dizer “não”. Não apenas ao pai e à mãe, mas à Autoridade de modo geral. Ao Mundo.
Sempre que falo de pai não estou falando realmente de pai. Nosso pai e nossa mãe são apenas as primeiras autoridades com as quais temos que lidar. Depois, vêm professoras, chefas, coleguinhas, revistas femininas, padres, comédias românticas, etc, todas sempre tentando nos impor o mesmo roteiro preestabelecido:
Temos que ser monogâmicas, heterossexuais, religiosas, fazer universidade, trabalhar em tempo integral, namorar, casar, ter filhos, comprar casa, etc etc.
Muitas vezes, basta uma única discordância para sentirmos todo o peso da reprovação social sobre nós. (Perguntem a qualquer mulher que siga todo o acima mas que, pasmem!, não tenha filhos.)
Por isso, só nos tornamos adultas quando finalmente aprendemos a impor limites e dizer “não”: que aceitamos, por exemplo, que o mundo nos diga que temos que vestir gravata no tribunal ou usar cinto de segurança no carro, mas que não aceitamos que nosso pai nos imponha uma carreira, ainda que tenha nos sustentado no passado, ou que nosso chefe nos imponha trabalho no fim de semana, ainda que nos sustente hoje.
É estabelecer, com serenidade e sem rebeldia, que aceitamos ingerência externa somente até certo ponto.
(A próxima aula do Curso das Prisões, Prisão Respeito, acontece na quarta, 28 de junho de 2023, às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
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A desobediência civil
Em 1846, o escritor norte-americano Henry David Thoreau foi preso por não pagar impostos. O dinheiro seria usado para financiar a Guerra Mexicano-Americana — talvez o maior crime da política externa dos Estados Unidos, uma disputa acirrada.
Thoreau escreveu, em "A Desobediência Civil":
"Eu me recuso a jurar lealdade ao Estado. Custa menos pra mim suportar a punição do que obedecer. Eu valeria menos se obedecesse."
Na cadeia, Thoreau percebeu a total impotência do Estado contra ele:
"Então, é só isso que podem fazer contra mim por quebrar suas leis? Eles me trancam aqui dentro mas meu pensamento, que é o verdadeiro perigo, continua livre. Como estou fora do seu alcance, decidiram punir meu corpo, como se fossem meninos que não podendo atacar um desafeto chutam seu cachorro."
Ou como escreveu Nelson Mandela em uma carta da prisão, publicada em "Conversas que tive comigo":
"São apenas minha carne e meu sangue que estão trancados nessas paredes apertadas. Permaneço cosmopolita na esperança. Em meus pensamentos, sou tão livre quanto um falcão. A âncora dos meus sonhos é a sabedoria coletiva da humanidade."
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As empresas anunciam porque não podem nos obrigar a comprar
Os outdoors com fotos cada vez mais apetitosas de produtos cada vez mais distantes de serem comida são um bom sinal: querem dizer que as empresas de fast-“food” (sic) ainda precisam de nossa cumplicidade na ingestão do seu lixo.
Mesmo diante de todo o gigantesco poder econômico da empresa escocesa, é de fato incrivelmente fácil não-comprar dois hambúrgueres, alface, queijo e molho especial. O ônus da ação é completamente deles: tudo o que preciso fazer é nunca entrar na casa do palhaço e pedir a carne prensada no pão.
Eles só lucram se formos todas cúmplices dos nossos próprios ataques cardíacos.
Não basta que todos os meios de comunicação afirmem que "homem tem que ser macho" ou que "mulher tem que ser recatada": é preciso também que todas as pessoas vigiem infindavelmente a masculinidade de uns e a sexualidade de outras.
Para exercer sua opressão, a Autoridade precisa converter as pessoas oprimidas em pessoas opressoras, ao mesmo tempo vítimas e algozes, eternamente julgando e condenando, sendo julgadas e condenadas.
Felizmente, a Autoridade não pode obrigar ninguém a se prestar a esse papel. Ela sempre precisa que sejamos suas cúmplices.
Como na frase atribuída a Paulo Freire, tão linda que virou merecidamente um clichê, quando a educação não é libertadora, o sonho da pessoa oprimida é tornar-se uma opressora.*
Mas nós podemos dizer "não".
(*Paulo Freire, que se saiba, nunca falou isso. Não encontrei essa citação em nenhum de seus livros. A primeira vez que aparece é num livro de citações de 2009, atribuída a ele. Mas a frase se popularizou, e nunca foi corrigida, porque, apesar de apócrifa, resume perfeitamente o espírito da Pedagogia do Oprimido, certamente um dos livros mais lindos que já li na vida.)
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A impotência da Autoridade
A Autoridade pode nos obrigar a muito pouco.
O pai pode deserdar o filho que escolheu ser ator de teatro infantil, mas é completamente incapaz de fisicamente impedi-lo de subir no palco ou obrigá-lo a frequentar as aulas de Penal I.
A chefa pode demitir a funcionária recalcitrante, mas não pode fisicamente obrigá-la a assinar um relatório mentiroso ou a vender um produto defeituoso.
A mãe pode expulsar de casa a filha lésbica, mas não pode fisicamente obrigá-la a se casar com um homem ou a sentir tesão por machos.
Talvez mais importante, nenhuma autoridade é onipotente: elas também pagam um preço por usar seu poder. O pai que deserda o filho, a mãe que expulsa a filha, a chefa que demite a funcionária, vão todas sofrer pelas escolhas que escolheram tomar.
Com certeza, teriam preferido (a Autoridade sempre prefere) que a vítima tivesse "ido por bem", que não tivesse sido necessária a traumática aplicação do castigo. Afinal, como não amar o capacho que lambe a bota que lhe pisa?
Nos casos extremos, os castigos são piores, mas a impotência é a mesma.
Um Estado pode proibir a homossexualidade e mandar matar pessoas homossexuais, mas não pode fisicamente obrigá-las a sentir um desejo sexual diferente do que sentem.
Essa é a impotência constitutiva da Autoridade: ela pode nos matar e nos estuprar e nos torturar, mas, apesar de tudo, não pode nos obrigar a ir contra nós mesmas, a abandonar nossos sonhos, a abdicar de nossos princípios. Ela pode até nos matar mas, se recusarmos abaixar a cabeça, é completamente incapaz de nos vencer. Sua impotência é só conseguir punir, e nada mais.
Nas minhas madrugadas mais difíceis, esse é sempre um grande consolo.
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Uma ressalva socioeconômica: privilégio & desigualdade
Ao refletirmos sobre obediência, rebeldia e respeito, é sempre importante termos em mente que nem todas as pessoas têm os mesmos direitos de interpelar as autoridades constituídas.
Quando a Autoridade não pode obrigar, ela demoniza (literalmente) quem desobedece.
Escreveu Tulio Vianna, em "Transparência pública, opacidade privada":
"Não há uma conduta que possa ser considerada crime ou mesmo imoral em qualquer cultura. Somente a desobediência à norma possui a universalidade necessária para tamanha popularização do mito. … Lúcifer não foi um homicida serial, um sádico torturador ou um maníaco sexual. Nenhuma destas condutas o teria tornado o símbolo da maldade. Lúcifer desobedeceu a uma norma; desafiou o poder hegemônico; recusou-se a obedecer àquele que tudo vê, tudo sabe, tudo pode. É isso que faz dele o símbolo da maldade. … A rebeldia se transforma em maldade. Paralelamente a esta transformação simbólica do arquétipo da resistência em símbolo da maldade, ocorre também a transformação do arquétipo do controle no símbolo da bondade. Deus é bom, por inventar as normas. A bondade é corolário do poder, do saber e do ver. O mito da queda de Lúcifer é a passagem simbólica que marca a invenção da ética nas sociedades ocidentais. O bem se confunde com o controle; o mal com a resistência. O mito de Lúcifer é também o mito da legitimação do poder."
Naturalmente, se o rebelde é demonizado, ele também é desumanizado. E quem não é humano é bicho, é coisa. Pode ser morto.
“A sociedade não quer uma polícia honesta, porque no dia em que a polícia for honesta, o filho do banqueiro e do juiz será preso da mesma maneira que o jovem favelado. A polícia é corrupta porque convém à sociedade. Deseja-se uma polícia honesta? Então, o que vale para a favela passa a valer para o Posto 9. Não pode cheirar em Ipanema. Vai ter pé na porta na Delfim Moreira. A sociedade vai conseguir segurar isso?”
Hélio Luz, então chefe de polícia civil do Rio de Janeiro, no documentário "Notícias de uma guerra particular" (1999). (A íntegra da entrevista de Luz pro filme é imperdível.)
Existe um truque simples para saber se você é uma pessoa privilegiada. Digamos que está em um bar e comece algum tipo de confusão, briga, violência. De repente, ao longe, uma sirene. A polícia está chegando!
Se você já sente alívio, pois a polícia vai chegar e tudo vai se resolver... Então é porque faz parte do grupo de pessoas consideradas "cidadãs de primeira classe", que a polícia foi criada para proteger e defender.
Se você já tira a identidade do bolso, coloca em cima da mesa, põe as duas mãos bem visíveis ao lado do documento e pensa que, se fizer silêncio e nenhum movimento brusco, pode ser que consiga voltar pra casa levando só uns safanões... Então é porque faz parte do grupo de pessoas consideradas "cidadãs de segunda classe", que a polícia foi criada para reprimir e oprimir em nome da segurança e paz de espírito do grupo acima.
No Brasil, só a elite é inocente até prova em contrário.
Eu, incorporando o espírito de Thoreau, já peitei a truculência da PM do Rio de Janeiro algumas vezes.
Mas, antes que eu queira me dar tapinhas nas costas pela minha "coragem", eu repito para mim mesmo que sou branco, hetero, pósgraduado. Uma daquelas pessoas que parece ter pai juiz ou avô senador, cuja morte violenta O Globo estamparia na primeira página.
Um jovem negro morador de favela que interpelasse a PM rigorosamente como eu fiz estaria arriscando a própria vida.
Já eu arrisco apenas alguns tabefes ou, quem sabe, passar uma noite na cadeia em nome dos meus princípios. E ainda pensaria: "Olha!, que heróico, que nem Thoreau!"
Aliás, Thoreau ficou rigorosamente uma única noite preso, até sua tia pagar os impostos que ele devia.
Enquanto isso, na mesma época, o Estado norte-americano estava matando, torturando e escravizando pessoas por terem feito muito menos do que se recusar a pagar impostos. Todas pessoas que, ao contrário de Thoreau, não eram nem brancas, nem escritoras, nem formadas em Harvard.
Por isso, nossa luta é para viver em uma sociedade mais democrática e republicana, onde todas as pessoas sejam cidadãs plenas e tenham o mesmo direito de interpelar os poderes constituídos sem medo de serem torturadas, mortas, desaparecidas.
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em junho, estamos conversando sobre a Prisão Respeito. Nossa aula expositiva acontece na quarta, 28 de junho de 2023. Antes disso, estamos debatendo sobre Patriotismo e Respeito nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp.
Sim, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?