O curso Grande Conversa Fundadora é uma história da literatura ocidental, da Idade Média ao romantismo, através dos grandes clássicos fundadores das línguas modernas: Dante, Rabelais, Camões, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Púchkin.
Quarta agora, 19 de outubro, às 19h, vamos falar sobre a Espanha e o Dom Quixote.
Abaixo, dois vídeos inéditos para vocês entrarem no clima da aula.
(Sempre lembrando que as apoiadoras do meu plano Mecenas CURSOS têm acesso a todos os meus cursos, passados, presentes e futuros, enquanto durar o apoio. Saiba mais aqui.)
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Como ler o Quixote
Como ler o Quixote, uma aula aberta
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Quem era Cervantes
Quem era Cervantes, uma aula aberta
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A importância de Cervantes
“O Quixote é um mundo poético completo: ele encerra episodicamente, dentro de si, subordinado ao grupo imortal que lhe serve de centro, todos os tipos de literatura em prosa produzidos anteriormente, de tal modo que se poderia adivinhar e recriar toda a ficção anterior, de tal modo que Cervantes a incorporou com perfeição à sua obra”.
Menéndez Pelayo, “Cultura literaria de Miguel de Cervantes y elaboración del Quijote”
“Contemporâneo de Shakespeare (morreram no mesmo dia), tinha em comum com ele a universalidade do seu gênio, e é o único par possível de Dante e de Shakespeare no Cânone Ocidental. Somente Cervantes e Shakespeare ocupam a mais alta eminência num determinado pormenor: nunca podemos passar à frente deles, pois eles já estão sempre à nossa frente. Provavelmente só Hamlet provoca tantas interpretações diferentes quantas as de Dom Quixote. Cervantes inventou inúmeras maneiras de desfazer a sua própria narrativa, de modo a obrigar o leitor a contar a história no lugar do prudente autor e de nos transformar em leitores invulgarmente ativos. Os dois heróis de Cervantes são simplesmente as personagens literárias mais amplas de todo o Cânone Ocidental. A fusão que eles operam do ridículo, da sabedoria e da indiferença quanto à ideologia só consegue ser igualada pelos mais memoráveis homens e mulheres de Shakespeare. Cervantes naturalizou-nos, tal como Shakespeare o fez, de tal maneira que já não conseguimos descortinar o que é que torna Dom Quixote tão permanentemente original, uma obra tão penetrantemente estranha.”
Harold Bloom, O cânone ocidental.
“O que é esse “algo” que ordena tudo e lhe confere uma certa luz “cervantesca”? Não é filosofia, não é tendência e nem preocupação com a insegurança da existência humana ou com a violência do destino, como no caso de Shakespeare. É uma atitude – uma atitude diante do mundo e, portanto, também diante dos objetos de sua arte – da qual participam, em ampla escala, a valentia e a indiferença. Ao lado da alegria com o jogo múltiplo e sensível, há nele algo meridionalmente áspero e orgulhoso que o impede de levar o jogo muito a sério. Ele o vê, ele o constrói e se diverte às suas custas; também deve divertir o leitor, de uma forma cultivada, mas não toma partido (salvo contra os livros mal escritos); fica neutro. Não é suficiente dizer que não emite juízos e não tira conclusões; o processo nem é iniciado, as perguntas nem são feitas. Ninguém e nada (exceto os maus livros e as más peças) é condenado nesse livro. O tema do fidalgo doido, que quer fazer renascer a cavalaria andante, deu a Cervantes a possibilidade de mostrar o mundo como um jogo, e isso com uma neutralidade multifacetada, repleta de perspectivas, que não julga nem indaga, e que é uma forma corajosa de sabedoria. Quando o tema – a saída do fidalgo doido que quer tornar realidade o ideal do caballero andante – começou a inflamar a força imaginativa de Cervantes, ele também teve uma visão de como a realidade contemporânea, confrontada com tal loucura, deveria ser representada: e ele gostou desse quadro, tanto pela sua multiplicidade quanto pela hilaridade neutra que a loucura espalha sobre tudo o que encontra. O fato de se tratar de uma loucura heroica e idealista que deixa espaço para a sabedoria e a humanidade certamente não lhe agradou menos. Uma alegria tão universal e diversificada e, ao mesmo tempo, tão livre de crítica e de problemas na representação da realidade cotidiana constitui uma empresa que nunca voltou a ser tentada na Europa; não posso imaginar onde e quando isso poderia ter acontecido.”
Erich Auerbach, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental.
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Nossa leitura
Recomendo, naturalmente, ler o Dom Quixote inteiro. Entretanto, é a obra mais longa de um curso de obras longas. Se só conseguirem ler uma parte, leiam a segunda, que contém tudo de bom da primeira e mais um pouco. Se possível, tentem ler em espanhol. Sobre as traduções do Quixote, considerem esse trecho do primeiro parágrafo: “Tenia en casa… un mozo de campo y plaza, que así ensillaba el rocin como tomaba la podadera”. A tradução de Molina (34, Aguilar) é mais literal: “um moço de campo e esporas que tanto selava o rocim como empunhava a podadeira”. A de Ssó (Cia das Letras), mais idiomática: “um rapaz pau para toda obra, que tanto encilhava o pangaré como empunhava o podão”. Nenhuma é melhor, ou mais certa: são filosofias diferentes de tradução. Cabe a cada pessoa leitora escolher. A tradução literal às vezes soa estranha, porém dá mais liberdade à pessoa leitora de interpretar e decodificar o texto; a tradução idiomática toma mais decisões em nome da leitora, porém, é mais gostosa e mais fluida de ler. A edição da 34 tem a enorme vantagem de ser bilíngue. Recomendo fazer uma forcinha e tentar ler no original, em uma edição bem anotada. Em caso de dúvidas, aqui tem uma comparação entre várias traduções, uma matéria da Folha que faz o mesmo e uma entrevista com o tradutor da Cia das Letras.
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Edição recomendada
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