Como criar cursos online realmente interativos
Eu não sei pensar sozinho: só sei responder a vocês. Sem vocês falando aí, eu não tenho o que dizer aqui.
Em agosto agora, vai fazer 30 anos que entrei em sala de aula como professor pela primeira vez. Já dei aulas em dois países, em três línguas, em escolas, universidades e cursos livres.
Meu objetivo sempre foi tentar criar o ambiente mais interativo possível. Sou um curioso e um fofoqueiro: o que eu tenho pra falar eu já sei. Então, pra mim, a maior graça era descobrir o que as pessoas alunas tinham a dizer.
Nem sempre é fácil. As alunas são naturalmente ressabiadas e, às vezes, basta um tom um pouco mais duro, um olhar atravessado, para uma turma inteira nunca mais abrir a boca.
Acabei mudando de História pra Literatura em larga medida porque a aula de Literatura é mais interativa, mais horizontal: em História, a professora transmite um conteúdo; em Literatura, todo mundo lê junto.
Finalmente, com a pandemia, cedi e comecei a dar cursos online. O que trouxe muitos desafios novos. Como criar um ambiente realmente interativo… pela internet?
Depois de três anos ensinado literatura pela internet, o desafio de 2023 foi criar um curso sobre As Prisões — um curso que só faria sentido se fosse muito, muito interativo.
Mas como?
O texto abaixo é sobre o Curso das Prisões, mas também é sobre os desafios de tentar criar um curso verdadeiramente interativo.
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As Prisões: projeto dialógico
As Prisões são um projeto que venho desenvolvendo há 21 anos. Não são textos: são diálogos. Comecei a escrever em 2002 e criei meu primeiro blog em 2003 justamente porque pensei que esses textos precisavam da interlocução das pessoas leitoras para crescer. Ou seja, não é só que eu quero ouvir vocês, eu preciso ouvir vocês. Meu processo mental é totalmente dialógico. Eu não sei pensar sozinho: eu só sei responder a vocês. E, sem vocês falando aí, eu não tenho o que responder aqui.
Então, todo o curso foi pensado para maximizar as possibilidades de interação de um jeito que um curso presencial jamais poderia.
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Quais são os problemas de interação em um curso presencial?
Pra começar, uma aula presencial tem uma duração fixa e não-negociável. Então, o tempo é limitado, não só para a aula expositiva da professora, como para os comentários das alunas. Por essa limitação, a professora precisa não só resumir o que ela tem a dizer ao tempo disponível, como também guiar o debate, cortar algumas pessoas, trazer a conversa de volta para o assunto, etc.
Outro problema em cursos presenciais, ainda mais em aulas densas e expositivas, é que as alunas também precisam de tempo pra absorver, elocubrar, entender o conteúdo. Não basta terem tempo de falar, precisam de tempo para pensar no que vão falar. Senão, não terão como fazer comentários interessantes, pertinentes, refletidos. Quando a aula é dada de supetão e a aluna só tem aquele momento ali, de improviso, para opinar, é muito mais provável que aceitem tudo acriticamente. Pois são alunas pensantes e críticas que possibilitam as melhores aulas.
(E eu, como escritor, preciso de alunas pensantes e críticas justamente para me ajudarem a enxergar as falhas nos meus raciocícios. Como vimos na Prisão Verdade, somos as piores juízas de nós mesmas.)
Por fim, um terceiro problema de aulas presenciais é que, para muitas pessoas, estar ali, fisicamente, com seus corpos, faz com que se sintam intimidadas, com vergonha, com medo de falar.
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Como tentei resolver esses problemas
Elaborei o Curso das Prisões especificamente para tentar superar esses problemas e favorecer uma maior, melhor interação.
Cada mês é dedicado a uma Prisão (Verdade em fevereiro, Religião em março, etc).
Começamos o mês, no primeiro domingo, com uma conversa livre sobre o tema em questão, ao vivo, no Zoom, sem roteiro, sem exposição, sem gravar. Uma conversa livre mesmo pra gente começar a conversar, para pensarmos as questões, pra eu ouvir vocês, pra gente discutir sobre como essa prisão nos afeta na prática, de verdade.
Não é uma aula expositiva, mas uma sessão de troca e de escutatória. Sem a interlocução de vocês, sem ouvir como essa prisão afetou as suas vidas, eu não teria nem como começar a pensar a aula. Aqui, tudo é prático, nada é teórico. O que está em jogo são nossas vidas.
(Um cuidado importante: nenhuma pessoa aluna nunca é obrigada, e nem mesmo chamada, à falar. Toda fala é rigorosamente voluntária. Fala quem quer. E, quem não quer, entra muda e sai calada.)
Depois disso, temos o mês inteiro, no grupo do zap, para trocar ideias e links, imagens e textos, para elaborar questões e desenvolvermos críticas. (Minha ideia, sempre, é que vocês tenham não só tempo, como também um ambiente propício, para pensar e para refletir.)
Ao longo do mês, vou liberando os textos que formarão o roteiro da aula, de modo que as alunas já podem ir lendo, refletindo, questionando: ou se acostumando com essas ideias ou se rebelando contra elas. Assim, esses temas mais densos não são tratados na aula de supetão, pela primeira vez, mas as alunas têm o mês inteiro para elaborá-los.
Em janeiro e fevereiro, por exemplo, liberei doze partes do roteiro da aula da Prisão Verdade. Então, para quem leu esses textos, quase nada do que falei na aula foi novidade.
Por fim, na última quarta feira do mês, a aula em si acaba sendo mais um encerramento de conversa: é uma palestra expositiva, bastante desenvolvida, com começo, meio e fim — que eu preciso apresentar sozinho, sem interrupções, senão eu me perco no próprio argumento.
Abro espaço para perguntas nos intervalos e, depois que termino, temos uma última conversa livre, sem regras e sem gravação, para quem quiser ficar e cuja duração depende só do interesse das participantes.
Muita gente não consegue ficar até essa conversa livre final, que começa bem tarde, mas tudo bem, porque todas as alunas já tiveram o mês inteiro para conversar no Zoom e no Zap, ler textos e trocar ideias, desenvolver críticas e manifestar opiniões.
Naturalmente, ninguém precisa fazer tudo. Quem quiser só chegar na aula expositiva, ouvir e não falar, pode. Assim como quem quiser só ficar lendo os textos (meus e da bibliografia), apontando meus erros e levantando questões no grupo do zap, e nunca nem vir a nenhuma aula, também pode.
Ou seja, o curso inteiro é muito interativo, mas cada momento permite um tipo diferente de interação. Então, cada pessoa, por seu temperamento, interesse, disponibilidade de tempo, pode escolher em qual etapa, de qual Prisão, vai preferir se envolver mais, interagir mais, falar mais.
Quem gosta de vir à aula ao vivo, vem ao vivo. Quem gosta de assistir aula gravada, assiste gravado. Quem gosta de assistir aos pedaços, assiste aos pedaços. Quem gosta de ouvir como se fosse podcast, ouve como se fosse podcast. Quem gosta de ouvir acelerado, ouve acelerado. Quem gosta de ler os roteiros da aula, lê. Quem gosta de bater boca no grupo, bate boca no grupo.
Meu esforço maior nesse curso foi possibilitar um ambiente onde cada aluna, através de suas próprias ações, pode criar o curso que faz mais sentido para ela.
Só as alunas podem me dizer se estou tendo sucesso.
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Um curso para iluminar ignorâncias
Uma última coisa: cada Prisão, sem exceção, não só daria uma curso completo, como os livros que existem sobre ela já formam uma biblioteca. Não é minha intenção (nem seria possível!) esgotar assuntos como liberdade e religião em um único mês, seja em conversas de zap, ou em uma única aula, não importa sua duração.
O objetivo do Curso das Prisões, um de muitos, é demonstrar como cada uma dessas Prisões, assuntos que nos parecem tão sólidos, tão hegemônicos, tão inquestionáveis, são, na prática, muito mais fluidos, muito mais relativos, muito mais questionáveis, do que nos pareciam.
O curso não é para adquirir conhecimentos, mas para iluminar ignorâncias, na esperança que todas nós, mais conscientes de nossas limitações, possamos agir no mundo de forma mais consciente, efetiva, compassiva.
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O Curso das Prisões
O meu curso de 2023 é o Curso das Prisões.
Começamos pela Prisão Verdade. A aula expositiva já está disponível para as alunas do curso em nosso grupo do Facebook, aqui.
Março será o mês da Prisão Religião.
A religião, assim como ideologia, são as lentes pelas quais enxergamos o mundo, apreendemos a verdade, decidimos nosso caminho. Dependendo das lentes, entretanto, podemos não estar enxergando muitos caminhos possíveis. Não podemos enxergar o mundo a não ser por essas lentes, mas podemos pelo menos tentar enxergar as lentes.
Nossa primeira conversa livre, no Zoom, para trocarmos ideias e experiências sobre Religião e Ideologia, será no domingo, 5 de março. Depois, a aula expositiva será na quarta, 29 de março.
Nesse meio tempo, a ideia é passarmos o mês inteiro, no grupo de zap do Curso das Prisões, discutindo coisas como:
Afinal, o que é religião? O que é ideologia? Ideologia é sempre negativa ou pode ser neutra? Tem como enxergamos nossas próprias ideologias ou ideologia é como espinafre no dente?
Vem com a gente?