"O céu, a terra, o vento sossegado": um soneto piscatório, existencialista de Camões
A Grande Conversa, de Virgílio à "Marília de Dirceu", passando por Camões
Posso mostrar pra vocês um sonetinho de Camões?
Como cheguei (de novo) em Camões
Uma das coisas que mais gosto na minha vida (e o motivo, por exemplo, de ter saído do doutorado e, apesar das tentações, não ter voltado ao mundo acadêmico) é a liberdade suprema de poder encafifar com uma coisa e simplesmente poder persegui-la, investigá-la, remexê-la por quanto tempo me der na telha.
Enfim, preparando o curso de Literatura Espanhola, me apaixonei pela poesia renascentista de Garcilaso de la Vega, que aperfeiçoou a poesia petrarquista trazida para a Espanha por Boscán.
Aí, claro, aproveitei pra ler Petrarca, um daqueles grandes mestres italianos (que como seu contemporâneo Boccaccio) hoje nos parece lugar-comum porque simplesmente inventou a nossa subjetividade: o que, para nós, soa clichê é porque ele, revolucionário, inventou e, depois, foi canonizado por quase um milênio e usado à exaustão.
Dali, fui ler As Bucólicas, de Virgílio, que pautaram tanto Petrarca quanto os renascentistas. (Aproveitei e li As Bucólicas na tradução espanhola de Frei Luis, que já é, por si só, um monumento da poesia quinhentista espanhola.)
Por essa via, acabei chegando em Portugal, onde Camões levou ao ápice essa arte trazida ao português por Sá Miranda. Eu já tinha lido Os Lusíadas (claro, tem uma aula sobre ele na Introdução à Grande Conversa) mas ainda não tinha lido seus outros poemas, sonetos, odes, redondilhas, canções.
E, pronto, me apaixonei por Camões. Que me parece muito superior como poeta lírico do que épico.
Aí, comecei a ler tudo sobre sua obra. E comecei a gostar mais da sua épica também, comecei a ver cada vez mais elementos inesperados, surpreendentes em Os Lusíadas.
Esses são só os livros físicos (a maioria está no tablet):
Posso mostrar um soneto de Camões pra vocês?
Um soneto, duas versões
Dependendo de qual filólogo você consulta — filólogo é a pessoa que decide qual é a versão mais confiável do texto — esse soneto pode aparecer em duas versões. A primeira é a mais consagrada. Percebam as diferenças:
O céu, a terra, o vento sossegado….
O céu, a terra, o vento sossegado...
as ondas, que se estendem pela areia...
os peixes, que no mar o sono enfreia...
o noturno silêncio repousado...
O pescador Aônio que, deitado
onde co vento a água se meneia,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado.
Ondas, dizia, antes que Amor me mate,
tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita».
Ninguém lhe fala. O mar, de longe, bate;
move-se brandamente o arvoredo...
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
Ao céu, à terra, ao vento sossegado,
Ao céu, à terra, ao vento sossegado,
às ondas, que se estendem pela areia,
aos peixes, que no mar o sono enfreia,
ao noturno silêncio repousado,
O pescador Aônio que, deitado
onde co vento a água se meneia,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado.
«Ondas — dizia —, antes que Amor me mate,
tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita».
Ninguém lhe fala. O mar, de longe, bate;
move-se brandamente o arvoredo.
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
Por que tão diferentes?
Na primeira versão, as reticências dão ao poema um ritmo ao mesmo tempo rápido — cortes bruscos de uma cena a outra — e também lento — pois são cenas bucólicas e aparentemente não relacionadas.
Na segunda versão, todos esses elementos que antes apenas compunham o tom da cena tornam-se interlocutores do pescador Aônio, ou seja, personagens do “enredo”. Além disso, o que eram frases curtas tornam-se agora uma longa frase de duas estrofes.
De qualquer modo, são mudanças significativas. Não sei dizer qual eu prefiro. A maioria dos estudiosos prefere a primeira. A segunda é defendida por Antônio Salgado e está na Obra Completa, da Aguilar — uma edição que eu amo e recomendo.
Mas por que tão diferentes?
Porque esse soneto foi publicado pela primeira vez em 1616, quase 30 anos depois da morte de Camões. Ou seja, como as provas do livro não foram aprovadas por ele em pessoa, os especialistas debatem até hoje que isso ou aquilo não seria realmente camoniano, ele não teria aprovado, que o original seria distinto, etc etc.
Sem esse tipo de discussão infindável (e maravilhosa e inútil e bela e ociosa), como nós literatos ganharíamos a vida?
Três questões de vocabulário
“Enfreia” (4) é literalmente “colocar freio”, e, assim, metaforicamente, “conter”, “reprimir”, “segurar”. Na época, esse verbo provavelmente era mais usado no sentido de “enfrear cavalos”, então, presumivelmente, a leitora original visualizaria peixinhos sonolentos no mar, com freios de cavalo em suas bocas, quase dormindo.
Era comum os poetas citarem conhecidos em seus poemas. Nesse caso, Aônio é anagrama de João ou Joana, que na época se escrevia Ioan/a.
Por fim, “Amor”, assim em maiúsculas, antropomorfizado, era outro nome para a figura que hoje chamamos de Cupido.
Existencialismo renascentista
O soneto parece simples, sem grandes malabarismos verbais, sem palavras difíceis, repleto de imagens simples e diretas: um pescador (Aônio), à noite, à beira-mar, em uma atmosfera de sono e de sonho, chora a morte da amada que o mar levou (que chama de Ninfa) e implorando às ondas que a devolvam (“tornai-me”).
Um poema sobre dor, sobre luto, sobre saudade.
Mas, também, um poema existencial, sobre a vida e sobre a morte, sobre o caos e sobre a entropia. O assunto não é apenas o luto de Aônio, mas sim a total insensibilidade do universo, do cosmos, da existência, a esse luto, a essas vidas, a nossas vidas.
Os quatro Vs da última linha, os dois usos da palavra “vento”, remetem à nossa própria vida, que não passa de vento, um sopro e nada mais, e, depois que esse sopro passar, essas mesmas ondas que batem por nós baterão por outras pessoas.
O céu, a terra, o vento estão sossegados…. apesar de nós, pobres pessoas humanas, estarmos sofrendo e morrendo diante deles. Lido em uma chave inversa, então, esse próprio sossego pode ser visto como mórbido e insensível. O que pode ser mais terrível do que sofrermos e morrermos diante de quem não se importa com nossa dor?
O poema inteiro foi um sopro do vento, e nossas vidas, idem.
(Camões teoricamente teria tido uma companheira chinesa que perdeu em um naufrágio na foz do Mekong e, mais teoricamente ainda, esse soneto faria referência a sua morte. Mas a verdade é que quase todos os elementos da biografia de Camões são, em larga medida, lendários. Tudo isso pode ser invenção extrapolada a partir dos próprios poemas.)
A Grande Conversa, de Roma à Ouro Preto
Quando Aônio interpela as ondas, Camões está dialogando diretamente com a Segunda Écloga, do seu grande antecessor ibérico, Garcilaso de la Vega, que começa com o pastor Albanio interpelando as ondas e cantando saudades de sua amada.
As éclogas eram poesias pastoris, onde pastores andavam por um campo idealizado (não havia tentativa de descrever a natureza realisticamente) chorando seus sofrimentos amororos. O maior praticante foi Virgílio, nas Bucólicas. (Por isso, o gênero também pode se chamar "bucolismo".)
Quando Petrarca, no século XIV, começa a compor poesias nesse gênero, emulando Virgílio, mas em língua vulgar (ou seja, em italiano e não em latim), já demos o primeiro passo em direção ao que se convencionou chamar de Renascimento.
Tanto em Portugal quanto na Espanha, se convenciona marcar o início do Renascimento na literatura a partir do momento em que o primeiro poeta local começa a compor sonetos pastoris e bucólicos a moda de Virgílio e Petrarca. Na Espanha, é Boscán; em Portugal, Sá Miranda. Depois, Garcilaso e Camões seriam considerados os mestres espanhol e português dessa arte.
Finalmente, dois séculos depois, aquela que talvez é a obra inaugural da literatura brasileira, o poema Marília de Dirceu, de Tomás Antonio Gonzaga, representa não só o último sopro desse gênero (são as liras que o pastor Dirceu canta para sua amada Marília) mas já apontando para o novo Romantismo que vai nascendo e trazendo consigo uma maior interiorização dos sentimentos, uma representação mais realista da natureza e um forte sentimento nativista-naturalista.
E assim, das Bucólicas, de Virgílio à Marília de Dirceu,, de Gonzaga, a Grande Conversa nos leva, ao longo de quase dois mil anos, da Antiguidade Clássica ao nascimento da brasilidade literária.
Por que pastores?
Hoje em dia, e já desde o Romantismo do século XIX, a poesia bucólica pastoril está fora de moda.
"Por que eu me interessaria em ler poema atrás de poema de literatos sofisticados fingindo que são pastores incultos, andando em uma natureza totalmente estilizada, cantando amores platônicos?"
É uma boa pergunta. Aqui vai outra:
Ao longo de séculos, os artistas ocidentais escolheram verbalizar e articular suas questões através de pastores. Estranho? Sim. Mas hoje uma parte grande da nossa produção narrativa, seja literária ou audiovisual, usa policiais (tão falsos e estilizados quanto os pastores bucólicos) para discutir os temas mais importantes da contemporaneidade (aborto, abuso, estupro, direitos humanos, luta de classes, etc).
Então, talvez uma pergunta melhor, virando o espelho para nós, seja: por que os nossos pastores são policiais? (Ou espiões, ou bruxos, etc.)
Assim como, hoje, ninguém pensaria em usar pastores chorando suas mágoas para refletir sobre a entropia, durante milênios ninguém pensou em usar narrativas de crimes para discutir questões sociais.
E havia crimes antigamente, e existem pastores hoje.
Um soneto piscatório
Camões era marinheiro, passou a vida no mar, quase morreu diversas vezes.
Eu, que devia passar oito horas por dia dentro d'água na infância, que já naufraguei, já virei o barco, já resgatei e fui resgatado, também já quase morri diversas vezes, eu entendo essa atração que o mar exerce. Viver longe do mar não é uma vida concebível.
Então, parte do que me atrai nesse soneto é ele fazer parte de uma tradição “marítima” dentro do bucolismo de tirar os pastores do campo e de transformá-los em pescadores, a beira de um rio ou do mar.
Ou seja, ao invés de um soneto pastoril, um soneto piscatório.
Leio e releio esse poema, belíssimo, sinestésico, e ele, pra mim, tem cheiro de maresia.
Sabe? Fim da tarde de verão, aquele sudoeste leve que nem encrespa as ondas, o sol se pondo na água ali do ladinho do Dois Irmãos.
Enfim, o mar. Sempre insensível, tão maior que nós, e, ainda assim, apaixonante e irresistível.
Obrigado, Luís. Tamo junto.
Um soneto, quatro traduções
Robert Frost definia poesia como “aquilo que se perde na tradução”.
Uma maneira de percebermos como traduções sempre nos traem é lendo um texto em nossa própria língua-mãe traduzido para outras. Abaixo, vão quatro traduções desse soneto para o inglês, duas do século XIX, duas do XX.
Os quatro tradutores são excelentes, fazem um esforço hercúleo e muito válido, mas, fundamentalmente, uma leitora anglófona que não leia português sempre terá uma experiência radicalmente diferente da nossa. Ela estará tendo contato primordialmente com as habilidades poéticas do tradutor… não de Camões.
Por isso, é fundamental, sempre que possível, tentarmos ler literatura no original.
Se podemos estar no quarto, sozinhas, só nós e Cervantes, com Dom Quixote no meio… não tem porque enfiar uma outra pessoa na relação.
Três coisas para vocês observarem
Como os tradutores resolveram a primeira e a última linhas, e a linha 8. (A primeira, para nós, até parece fácil, simples, não problemática... até vermos as traduções.)
O que fizeram com as rimas. (O esquema original é ABBA ABBA CDE CDE)
Os títulos que inventaram. (O soneto original não tem título, por isso, nos referimos a ele por sua primeira linha)
Richard Burton, 1884
The Heavens and Earth all husht; no gusts to moan;
The waves dispreading o'er the sandy plain,
The fishes slumber-reined in the Main,
The nightly Silence on her rest-full throne:
The Fisher-youth Aonio, sadly strown
Where to the wind-breath sways the watery reign,
Weeps, and the loved name bewails in vain,
Which may no longer save by name be known.
"Wavelets! ere Love shall do me dead (he cried)
To me return my Nymph, whose early Death
Despite my dolour was by you design'd!"
None answer! Tombleth from afar the tide;
With gentle movement slow the forest sway'th;
Winds catch the words and waft them on the wind.
(The Lyricks, englished by Richard F. Burton, 1884.)
Burton é bastante fiel a Camões. Gostei especialmente do verso 8, muito bem resolvido. Também gosto da sonoridade ventosa dos quatro Ws da última linha.
Uma curiosidade: Burton era um aventureiro que teve uma das vidas mais interessantes de todos os tempos, foi o primeiro europeu a peregrinar a Meca, traduziu o Kama Sutra e as Mil e Uma Noites, participou da Guerra do Paraguai e até escreveu um interessantíssimo livro sobre ela. Sua biografia é uma verdadeira saga de aventuras.
J. J. Aubertin, 1881
The Fisher Ionio Calls on the Waves to Restore to Him His Drowned Love
All hushed the heaven and earth, and wind the same,
The waves all spreading o’er the sandy plain,
While sleep doth in the sea the fish enchain,
Nocturnal silence brooding as a dream;—
Prostrate with love, Ionio, fisher, came
Where the breeze moved the waters of the main;
Weeping, the well-loved name he called in vain,
That can no more be called but as a name;
Oh! waves, or ere love slay me, thus he cried,
Restore to me my nymph who, ah! so soon,
Ye taught my soul was subject to the grave.
No one replies; from far beats ocean’s tide;
All softly moves the grove; and the wind’s moan
Bears off the voice that to the wind he gave.
(Seventy sonnets of Camoens, translated by J. J. Aubertin, 1881.)
Aubertin toma muitas liberdades, mas leiam em voz alta, sintam a sonoridade das rimas, a força das aliterações. Poesia é som, só pode ser realmente aproveitada lendo em voz alta. (Um textinho sobre isso.)
William Baer, 2005
The Wind
The sky, the earth, and the wind are blessed
with calm tonight; the waves reach for the shore;
the fish are lulled to sleep; and more and more,
the silent night is full of peace and rest.
At least, until the young fisherman came—
who lying down, where the winds are whirling above
the sea, wails in vain the name of his love,
who now is nothing more, nor less, than a name.
“Waves!” he cries, “This grief is killing me! Before
I die, return my lovely nymph, whom you
have cruelly drowned to death for ever and ever.”
But nothing replies. The ocean still beats the shore;
the trees still softly stir; and the residue
of his fading voice is lost on the wind forever.
(Luís de Camões, selected sonnets. Edited and Translated by William Baer, 2005)
Baer também toma muitas liberdades. Ele traz a linguagem ao século XX, inclusive deliberadamente simplificando as construções poéticas:
"os peixes, que no mar o sono enfreia" --> "The fishes slumber-reined in the Main" (Burton) --> "While sleep doth in the sea the fish enchain" (Aubertin) --> "the fish are lulled to sleep" (Baer)
O resultado não é nem que a poesia é perdida, mas sim que é deliberadamente abandonada pelo caminho.
O resultado final de Baer é belíssimo, mas tem muito pouco da sonoridade de Camões, não remete ao soneto original a não ser de maneira mais genérica.
Landeg White, 2008
The heavens, the earth, the tranquil breeze...
the waves dispersing on the beach...
the fish slumbering in the reach...
the night peaceful and at ease...
Fisherman Aónio, as he wandered
where the light winds ruffled the spume,
wept as he pronounced the beloved name
that could no more than be conjured.
“Waves,” he said, “before I die of love,
give me back my nymph whom, so untimely,
you made liege-woman of death.”
No one answered. The sea beat far off.
The casuarinas stirred gently.
The wind returned his voice in the same breath.
(The Collected Lyric Poems of Luís de Camões. Translated by Landeg White. 2008.)
White estava me ganhando até a última estrofe. Ele é o único que resolve bem a primeira linha. Sua poema tem uma sonoridade não só belíssima, mas que também, ao contrário de Baer, remete mais diretamente ao original.
Mas a última estrofe não tem alma, não tem sonoridade. O último verso é fraco. E, vou confessar, essas “casuarinas” que surgiram do nada me tiraram totalmente do poema.
Ele também traduziu Os Lusíadas para a Oxford World’s Classics, e escreveu um livro, disponível gratuitamente, sobre sua experiência de traduzir Camões.
Meu preferido: Aubertin
No geral, se tivesse que escolher uma preferida, diria que o tradutor que melhor consegue transmitir à leitora anglófona a sonoridade, a beleza, a poesia de Camões é Aubertin. Mas, vamos combinar, nenhuma delas chega aos pés (nem teria como chegar) do soneto original.
A lição mais importante desse tipo de texto é sempre a mesma: sempre que puderem, leiam literatura, especialmente poesia, no original.
(Meus textos antigos sobre Camões.)
Um beijo,
do Alex
UAU! Com certeza é visivel sua paixão por literatura e pelo nosso querido Camões.