A literatura é ingrata: Carolina Maria de Jesus e O Escravo
Romance 'O Escravo' é sintoma do que ocorre quando se nega tudo a uma autora com abundante talento literário
Como parte de um projeto de publicar a obra completa da escritora Carolina Maria de Jesus com o mínimo de interferência editorial, a Companhia das Letras está lançando agora seu romance “O Escravo”, inédito, escrito por volta da década de 1960 e transcrito de cadernos hoje disponíveis no Museu Histórico Nacional de Sacramento, em Minas Gerais, cidade natal da autora. A publicação das obras está a cargo de um conselho editorial formado por quatro acadêmicas estudiosas de sua obra e coordenado pela escritora Conceição Evaristo e por uma das filhas de Carolina.
(A Folha de São Paulo acabou de publicar uma resenha minha do novo romance inédito de Carolina Maria de Jesus. Como o espaço em jornal é reduzido e eu escrevi o triplo do tamanho máximo, o texto saiu editado. Aqui, abaixo, vai o texto completo. Posso pedir um favor? Vão lá no texto da Folha, e comentem, compartilhem, retuítem? Quero muito saber o que pensaram, sintam-se à vontade para comentar. Aliás, aqui estão todas minhas resenhas para a Folha. Enquanto isso, clicando nos links de livros aqui da newsletter e comprando qualquer coisa na Amazon BR, eu ganho uma comissão e te agradeço por apoiar meu trabalho.)
Como ler Carolina Maria de Jesus
Para a maioria das pessoas leitoras, a primeira dificuldade ao chegar em “O Escravo”, romance inédito de Carolina Maria de Jesus que a Companhia das Letras publica esse mês, será a ortografia. Alguns dirão que o livro está escrito “errado”, mas a verdade é que apenas não segue as padronizações da norma culta do português escrito.
O texto de Carolina lembra os textos medievais da nossa língua, quando o português ainda estava misturado com o galego e o castelhano e outras línguas, quando essas regras e padronizações que Carolina não respeita ainda não existiam, e quando cada texto basicamente falava sua própria versão de uma língua que ainda era basicamente oral e apenas seria dicionarizada no século XVI. Se, na escola, todas lemos as cantigas de amigo do século XIII respeitando que era uma literatura escrita em um português que, ao mesmo tempo, era e não era o nosso, aqui estranho e ali familiar, por que não ler Carolina da mesma maneira?
A melhor maneira de extrair sentido de um texto marcado por forte registro oral e pontuação muito irregular é lendo-o em voz alta. Assim, construções antes confusas subitamente farão sentido, os sujeitos vão se atrelar aos verbos corretos e as pausas intuitivamente se revelarão. Nosso desafio, como pessoas leitoras, é suspender os hábitos adquiridos de leitura silenciosa, abraçar a oralidade da prosa de Carolina e permitir que o texto fale em seus próprios termos. Quebrar essa normatividade de nosso modo de leitura tradicional pode ser difícil, mas a recompensa será experimentar os diferentes caminhos que a literatura em prosa poderia ter seguido se o advento da pontuação não tivesse restringido a diversidade textual.
“O escravo”, um romance fraco
Não existem "escravos" em “O Escravo”: todas as personagens são metaforicamente “escravizadas” por dinâmicas de classe, dinheiro, poder que atravessam as relações entre duas abastadas famílias paulistanas. Carolina, a partir de sua posição subalterna, é uma observadora arguta e implacável dos pequenos dilemas e tragédias engendrados pela desigualdade, um tema que a literatura brasileira certamente não aborda tanto quanto deveria.
Aliás, se não existem "escravos" em “O Escravo”, também não existem nem pessoas negras: Carolina, ao não descrever ninguém racialmente em nenhum momento, permite a presunção que sejam brancas. Como diríamos hoje, essa lacuna ressalta a branquitude como modo default da sociedade: o negro é descrito, o branco, presumido. No posfácio de Fernanda Silva e Sousa, ela desenvolve essa questão e aponta alguns momentos que teriam sido escritos de outra maneira se Carolina tivesse personagens negros em mente.
Infelizmente, porém, “O Escravo” é um romance fraco. Não porque Carolina escrevia “errado” ou fosse ingênua ou tivesse pouco talento (não escrevia, nunca foi, tinha muito), mas porque os personagens são pouco diferenciados, a linguagem soa desnecessariamente difícil e a narrativa parece não ter estrutura.
A falta de um editor
O livro é fraco porque, em grande parte por ser uma mulher preta favelada, Carolina não teve acesso a um bom editor que levasse seu texto a sério e trabalhasse nele para ajudá-lo a dizer melhor o que estava tentando comunicar. Seu descobridor e primeiro editor, Audálio Dantas, em depoimento ao livro “Cinderela negra”, manifesta seu explícito desinteresse por outros textos da autora que não seu diário, publicado como “Quarto de despejo”.
Não é uma falha de Carolina enquanto escritora: qualquer autor, inclusive os grandes, como Carolina, se beneficia do trabalho de um bom editor. “On the road”, de Jack Kerouac, um dos grandes livros da literatura estadunidense, foi severamente editado por Malcolm Crowley, da Viking Press, e publicado quase a revelia do autor, que não autorizou as últimas provas. Kerouac se ressentiu tanto da interferência editorial que, para os próximos livros, já cacifado como best-seller, impediu que mexessem na sua prosa. Para saber o valor de um bom editor, basta comparar a versão original de “On the Road” com os livros posteriores de Kerouac – que, sim, são bons, mas falta... alguma coisa. Falta editor.
Ler “O Escravo” é um testemunho da importância desse profissional, que possa sentar diante de um autor e, de igual pra igual, e dizer: “Olha, aqui você falou difícil e perdeu o tom, esse personagem não está fazendo nada, melhor cortar, essa cena ficou confusa, expande”, etc.
“O escravo”, documento histórico
Infelizmente, ao contrário do que desejaria a própria Carolina e seu atual comitê de publicação na Companhia das Letras, o maior valor de “O Escravo” ainda é como documento histórico: eis aqui o que acontece quando a um grande autor é negado tudo (educação, escolaridade, apoio, divulgação, acesso, respeito) menos a prática e o gozo do seu próprio abundante talento literário.
Esse é um documento da desigualdade social e racial do Brasil que lemos com assombro e pena. Assombro por tudo que Carolina conseguiu efetivamente realizar e produzir, literalmente contra tudo e contra todos; e pena, não dela, nunca dela, que era orgulhosa, indomável, irredutível, e não teria aceitado, mas pena de nós mesmas, pessoas leitoras brasileiras, por todas as grandes obras literárias que nunca chegaram a existir porque suas autoras estavam moendo cana ou varrendo chão.
Podem as pessoas negras não escrever sobre raça?
Não é segredo que, até pouco tempo atrás, a sociedade racista só permitia que autores negros falassem se o assunto fosse raça e racismo. Richard Wright escreveu dois livros brilhantes, um de ficção e outro de não-ficção, sobre a condição das pessoas negras nos Estados Unidos e, quando tentou mudar de assunto, encontrou seu caminho editorial sutil e não tão sutilmente barrado. Só quando se mudou para a França ele se sentiu levado a sério enquanto escritor – ao contrario de “apenas” uma pessoa negra escrevendo sobre sua experiência de ser negra.
No caso da Carolina, Audálio literalmente só tinha interesse em seu diário: “escrevia poemas... ruins... fracos se comparados ao diário... que tinha uma força de expressão narrativa muito grande.” E ele critica até mesmo o fato de ela querer publicar suas outras obras: “o resto foi besteira... a busca da glória... Eu poderia até arrumar uma editora que lançasse os livros... mas me recusei a isso.” (“Cinderela negra, pp.120-3.) Sabemos, pelo depoimento de seus filhos, que o grande objetivo de Carolina era ser autora de ficção: “os editores da Francisco Alves não queriam publicar seus romances. Ela gostava de escrever RO-MAN-CE, mas o pessoal da direção queria continuar com as fofoquinhas de “diário”. (“Cinderela negra”, pp.111.)
Então, por um lado, ler esse seu romance desencavado é um ato subversivo e carinhoso: subversivo contra a sociedade que só considerou Carolina digna de ser diarista e nunca escritora, e carinhoso com ela, ao dar uma chance aos seus textos que ela mesma considerava os mais importantes.
A literatura é ingrata
Por outro lado, porém, a literatura é ingrata: autores raramente ficam famosos pelas obras que gostariam. Joan Didion e Susan Sontag, Paulo Francis e Carl Sagan, Harold Bloom e Gilberto Freyre, todos escreveram romances pelos quais gostariam de ser lembrados, mas que público e crítica consideraram muito inferiores à suas obras não-ficcionais.
A triste e dolorosa verdade é que, quando Carolina escreve seus diários, ela tem uma urgência primordial, uma raiva indomável, que turbina sua prosa e faz com que produza pensamentos e frases memoráveis. “Quarto de despejo” é uma porrada atrás da outra. Hoje, graças ao trabalho de Elzira Divina Perpétua, que cotejou o “Quarto de despejo” publicado em 1960 com os diários manuscritos, sabemos que essa voz narrativa foi em grande parte uma criação de Audálio: os originais alternam momentos de indignação e de sensibilidade; Audálio, buscando dar uma unidade a obra, enfatizou os primeiros e suprimiu os segundos. A pesquisa de Alzira foi publicada em 2014 com o título “A vida escrita de Carolina Maria de Jesus”.
Já “O Escravo” é frio: tudo aquilo que dá vida e potência ao “Quarto de despejo” está ausente. Parece um exercício de escrita criativa, onde uma autora muito talentosa está explorando a ficção pela primeira vez, testando o terreno, descobrindo até onde pode ir, usando palavras difíceis para experimentar o efeito.
Carolina já é uma autora canônica
Não está se dizendo aqui, de maneira alguma, que Carolina, mulher preta, grande autora, só podia falar, ou só deveria ter falado, de suas experiências pessoais como mulher negra favelada.
Mas, comparando os textos como os temos hoje, comparando o “Quarto de despejo” que foi best-seller mundial com a narrativa desconjuntada de “O Escravo”, não é um desserviço à escritora Carolina reconhecer que, quando escrevendo sobre o assunto que sentia como urgente e revoltante, ela era uma autora mais vigorosa e mais potente, do que quando timidamente ensaiando seus primeiros passos no gênero romance.
Também não se está criticando a iniciativa de publicar “O escravo”. Estamos há séculos fazendo isso com homens brancos e mortos. (O próprio Kerouac teve publicado recentemente o manuscrito de “On the road”, antes da interferência editorial de Malcolm Crowley e que padece de muitos dos males de “O Escravo”.)
Carolina Maria de Jesus, mulher preta, já é uma grande autora canônica brasileira. A prova disso é que textos inéditos de qualidade inferior estão sendo desencavados do fundo de seu baú, publicados por nossa maior editora e resenhados por nosso maior jornal. Essa é praticamente a definição de autor canônico. Representatividade importa.
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Ei Alex! Só tive a chance de ler seu texto hoje e me peguei pensando muito no que o Nego Bispo falava sobre um "falar errado"ou "escrever errado"sob uma perspectiva decolonial. Adorei a reflexão que você fez sobre o papel de um editor e como esses profissionais também deveriam ser diversos pra entender a pluralidade das histórias contadas em todas as suas formas.
Alex prazer em ler sua matéria a respeito de O ESCRAVO. Que linha lógica e sensível para conduzir sua análise, suas reflexões. E sua cordialidade com o leitor e com Carolina de Jesus. Gostei muito.