Camões, um poeta do "desconcerto do mundo"
É justamente em sua falha de ser Petrarca que consiste a modernidade e o gênio de Camões.
Por que Camões é um poeta tão contemporâneo, que ainda fala tanto conosco, aos nossos medos, amores, anseios?
É porque ele não cantava só amores idealizados, mas também nossa perplexidade ante a morte, o acaso, o “desconcerto do mundo”.
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No século XIV, Petrarca inaugura a poesia lírica como a conhecemos e pauta 600 anos de poesia européia ao cantar seu amor por uma Laura efêmera, diáfana, idealizada. Era um amor sem nenhuma carnalidade, puro ideal. As edições do Cancioneiro de Petrarca em geral são divididas entre os poemas escritos antes e depois da morte de Laura, mas a maior surpresa é o quão pouco eles mudam. Afinal, o poeta antes só a tinha visto de longe um par de vezes: o que muda é apenas o tipo de ausência. De qualquer modo, é um amor idealizado, que se projeta na eternidade: o poeta não tem dúvidas que ele e sua amada ideal estarão para sempre juntos no céu. Dante, na esteira de Petrarca, imagina sua amada guiando-o literalmente no próprio céu. (Dante foi o tema da primeira aula do curso Grande Conversa Fundadora.)
No Renascimento, as coisas já começam a mudar. Garcilaso de la Vega, poeta sobre o qual conversaremos na sexta aula do curso Grande Conversa Espanhola, traz para o espanhol a poesia petrarquista e a leva a novos cumes, mas ainda continua preso aos ideais platônicos de amor ideal. Os três, maravilhosos, únicos, poderosos, Petrarca, Dante, Garcilaso, ainda nos parecem poetas de uma outra época, de uma outra mentalidade.
Camões não. Em Camões, já existe, de forma incipiente, uma nova forma de ver a vida.
O amor idealizado ainda está lá, não mais como único amor possível, mas como amor que ao qual o poeta aspira, sem sucesso, dividido que está entre o amor ideal petrarquista (que acha que deveria sentir e cantar) e o amor físico e carnal, concreto e sensual, que ele sente, deseja, necessita.
(Na sua poesia lírica, esse movimento é sutil, mas está lá: em Os Lusíadas, protegido pelas convenções do épico e por mulheres que não eram cristãs, mas sim ninfas, Camões pode cantar a literal orgia sexual da Ilha dos Amores no Canto IX.)
Mais importante, em Camões pulsa a História, o acaso, a progressão dos fatos.
Em Petrarca, existe profundidade de sentimento, mas o poeta parece habitar um espaço fora do mundo, fora do tempo. Um fato “histórico” e contingente crucial, como a própria morte de Laura, não muda quase nada no tom do poeta: seu cancioneiro é a mesma lamentação do começo ao fim.
Em Camões, é o oposto: ele é o poeta do “desconcerto do mundo”, da vida real que não se ajusta à vida idealizada, da contingência, da sorte, do acaso.
Camões quer, tenta ser Petrarca… mas a vida real sempre se mete no caminho: fraquezas, naufrágios, mortes. Pois é justamente nisso, nessa falha em ser Petrarca, nesse seu “desconcerto” em relação a seu ideal, que consiste a modernidade e o gênio de Camões.
No vídeo abaixo, eu explico porque os sonetos de Camões ainda nos parecem tão urgentes, ainda falam tanto conosco.
Camões é o tema da próxima aula do curso Grande Conversa Fundadora, que acontece na quarta q vem, 27 de julho de 2022. Ainda dá tempo de se inscrever.
Abaixo, os poemas que menciono no vídeo, na ordem em que os menciono.
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Ah! minha Dinamene! Assim deixaste
quem não deixara nunca de querer-te?
Ah! Ninfa minha! Já não posso ver-te,
tão asinha esta vida desprezaste!
Como já para sempre te apartaste
de quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te,
que não visses quem tanto magoaste?
Nem falar-te somente a dura morte
me deixou, que tão cedo o negro manto
em teus olhos deitado consentiste!
Ó mar, ó Céu, ó minha escura sorte!
Que pena sentirei, que valha tanto,
que inda tenho por pouco o viver triste?
* * *
Quando de minhas mágoas a comprida
maginação os olhos me adormece,
em sonhos aquela alma me aparece
que para mim foi sonho nesta vida.
Lá nüa soïdade, onde estendida
a vista pelo campo desfalece,
corro par'ela; e ela então parece
que mais de mim se alonga, compelida.
Brado: Não me fujais, sombra benigna!
Ela (os olhos em mim cum brando pejo,
como quem diz que já não pode ser),
torna a fugir-me; e eu, gritando: Dina...
antes que diga mene, alardo, e vejo
que nem um breve engano posso ter.
* * *
O céu, a terra, o vento sossegado...
as ondas, que se estendem pela areia...
os peixes, que no mar o sono enfreia...
o noturno silêncio repousado...
O pescador Aônio que, deitado
onde co vento a água se meneia,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado.
Ondas, dizia, antes que Amor me mate,
tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita.
Ninguém lhe fala. O mar, de longe, bate;
move-se brandamente o arvoredo...
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
* * *
Cara minha inimiga, em cuja mão
pôs meus contentamentos a ventura,
faltou te a ti na terra sepultura,
porque me falte a mim consolação.
Eternamente as águas lograrão
a tua peregrina fermosura;
mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minh'alma te acharão.
E se meus rudos versos podem tanto
que possam prometer te longa história
daquele amor tão puro e verdadeiro,
celebrada serás sempre em meu canto;
porque enquanto no mundo houver memória,
será minha escritura teu letreiro.
* * *
Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
qualquer alma farão segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm do confuso mundo o regimento.
Efeitos mil revolve o pensamento
e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.
Doutos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas,
e por isso é melhor ter muito visto.
Cousas há i que passam sem ser cridas
e cousas cridas há sem ser passadas,
mas o melhor de tudo é crer em Cristo.
* * *
Um beijo, do
Alex Castro