Para pessoas norte-americanas e europeias, o Brasil não é um país ocidental. Para as pessoas brasileiras, é. Faz diferença? Quem está certa? Afinal, o que é esse tal “Ocidente”?
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Um aviso prévio
O texto abaixo talvez seja dos mais incompreendidos que já escrevi. Compartilho previamente as duas desleituras principais, para vocês já lerem de sobreaviso contra elas.
Não é uma crítica às arrogantes pessoas brasileiras que se acham ocidentais — quando claramente não somos!!
Não é uma crítica às arrogantes pessoas estrangeiras que acham que não somos ocidentais — quando claramente somos!!
Como em todos os meus textos, estou tentando mostrar que tudo é mais complexo e mais interessante do que parece.
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Morei em Nova Orleans por seis anos. Trabalhei no Departamento de Espanhol & Português considerado o segundo mais produtivo do país. A biblioteca da minha universidade tinha o segundo maior acervo latino-americano dos Estados Unidos.
Nas minhas aulas, ensinadas em português, pessoas alunas norte-americanas (mas não somente) liam, no original, autores como José de Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Gilberto Freyre, Dias Gomes, Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues, entre outros. (E também uma das mais importantes autoras brasileiras de todos os tempos, tão esquecida entre nós: Carolina Maria de Jesus, que será tema da próxima aula do meu curso A Grande Conversa Brasileira, inscrições abertas.)
A universidade, para evitar que as pessoas alunas ficassem muito bitoladas em sua visão de mundo, só cursando as mesmas disciplinas sobre Estados Unidos e Europa, exigia que todas cumprissem pelo menos quatro créditos de "Cultura Não-Ocidental".
Para a surpresa e o horror de todas as pessoas brasileiras para quem contei isso, as disciplinas que eu ensinava sobre literatura brasileira supriam esse requisito curricular.
Nada mais natural. Pois, do ponto de vista norte-americano e europeu, o Brasil não faz parte do Ocidente. Quando listam os países ocidentais, não nos incluem. Quando falam em cultura ocidental, não estão pensando no romance Dom Casmurro ou na música "Garota de Ipanema". (E nem Jorge Luis Borges ou Gabriel García Marquez.)
O que não quer dizer, entretanto, que tenham uma definição concreta e convencionada de "Ocidente" em suas cabeças. Pelo contrário, como tantos conceitos, é uma daquelas palavras usadas de forma acrítica e não-problemática: as pessoas "sabem" instintivamente seu significado sem nunca ter parado para conscientemente defini-la.
Por isso, já na primeira aula, eu abria o curso colocando em discussão o conceito de Ocidente.
Um exercício interessante era pedir às minhas trinta e poucas pessoas alunas que escrevessem em um papel sua definição de Ocidente e uma lista de países ocidentais. Depois, trocávamos os papéis.
Somente na minha sala de aula, as definições eram bem díspares. As mais restritas incluíam apenas Estados Unidos, Canadá e os países europeus anglo-germânicos e nórdicos. (Se nem Portugal é ocidental, imagina se nós vamos ser!) As mais amplas incluíam também a América Latina, África do Sul, Israel, Austrália, Nova Zelândia e até o Japão.
De modo geral, do ponto de vista europeu e norte-americano, Ocidente não é um conceito nem geográfico e nem cultural, como aparentemente é entendido no Brasil, mas sim econômico e político.
O Ocidente, então, seria composto pelas nações ricas, capitalistas, democráticas, industrializadas e, dependendo de quem vê, brancas.
Para a maioria das pessoas norte-americanas ou europeias, seria inconcebível incluir na definição de Ocidente países seja do Terceiro Mundo ou que estavam ou estiveram do outro lado da Cortina de Ferro.
Daí ser possível debater se o Japão ou o Brasil são ou não ocidentais, mas não passar pela cabeça de ninguém e ser autoevidentemente óbvio que Cuba ou Hungria ou Gana não eram.
(Nas listas de países ocidentais elaboradas na minha sala de aula, nunca entrou nenhum país africano — com exceção da África do Sul — e nenhum país que havia sido aliado da União Soviética.)
Uma aluna israelense ficou surpresa de ver seu país em quase todas as definições de Ocidente: segundo ela, em sua terra, eles não se consideravam ocidentais e falavam de Ocidente para se referir aos Estados Unidos e à Europa.
Naturalmente, minhas pessoas alunas norte-americanas também ficaram surpresas: como podia ser tão "óbvio" para quase todas elas que Israel era um país ocidental... se Israel não se enxergava assim?
(Mais tarde, outras pessoas amigas israelenses a quem contei essa história me afirmaram o exato oposto: que ser Ocidental é parte integrante da cultura de Israel. Conheço muito pouco sobre o país para poder afirmar qualquer coisa sobre ele, mas a própria divergência exemplifica o que estou tentando demonstrar.)
Outra grande surpresa foi quando revelei que todas as pessoas brasileiras que conheço se consideram autoevidentemente ocidentais. Que nunca passou por suas cabeças não serem de um país e de uma cultura ocidental. Que ficam chocadas e ofendidas ao perceberem que não são vistas como ocidentais justamente pelos países e culturas que mais respeitam.
Uma aluna, bem-intencionada, disse que as pessoas brasileiras não deviam se sentir assim: para ela, considerar o Brasil um país não-ocidental era um elogio, um gesto de não-apagamento em relação a todas as pessoas e culturas originárias, pré-colombianas, não-ocidentais que havia no Brasil.
Respondi que era um belo gesto mas, de acordo com essa lógica, os Estados Unidos e o Canadá também não seriam países ocidentais.
Afinal, os territórios onde hoje estão os Estados Unidos, o Canadá, a Argentina e o Chile eram originalmente repletos de pessoas indígenas, que foram praticamente exterminadas por potências européias conquistadoras. Agora, são quatro nações democráticas, majoritariamente brancas e cristãs, onde quase toda a população fala a mesma língua europeia e onde os descendentes dos povos originárias formam um percentual mínimo da população.
Por que então as duas primeiras estavam em rigorosamente todas as definições de Ocidente e as duas últimas, em quase nenhuma?
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Uma sala de aula nunca será um ambiente neutro: toda pergunta de um professor traz consigo todo um complexo jogo de poder, de expectativas, de agrados.
Só um punhado de pessoas incluiu Brasil e América Latina em suas definições de Ocidente e suspeitei que pode ter sido por presumirem que era isso que eu, brasileiro, professor, em posição de poder, queria ouvir.
Para testar essa hipótese, fiz uma busca na internet por notícias recentes com a expressão "western countries", ou seja, "países ocidentais". Acabara de acontecer o terremoto do Haiti e uma das reportagens dizia:
"Países ocidentais se comprometem a ajudar as vítimas da catástrofe: a França enviará uma fragata, o Canadá prometeu alguns milhões de dólares, médicos belgas já estão no local, etc."
Então, li em voz alta essa e outras notícias, mas trocando os países:
"Países ocidentais se comprometem a ajudar as vítimas da catástrofe: o Brasil enviará uma fragata, o Chile prometeu alguns milhões de dólares, médicos cubanos já estão no local, etc."
E perguntei:
"Soou insólito? Bateu aquele estranhamento imediato? Isso é algo que seria possível ou concebível de estar em uma matéria jornalística norte-americana ou europeia?"
Até mesmo os alunos que tinham dito que sim, o Brasil era um país ocidental, tiveram que dar o braço a torcer: a presença do Brasil em uma relação de países ocidentais... soava simplesmente estranhíssima.
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Nesse ponto, a pessoa leitora talvez esteja pensando: o problema, na verdade, é a ignorância, a arrogância e o autocentramento tipicamente norte-americano das minhas pessoas alunas. Assim como provavelmente não "sabiam" que língua se falava em Gana ou qual a capital da Nigéria, também não "sabiam" que o Brasil era, na verdade, um país ocidental.
Sem entrar no mérito da arrogância, ignorância ou autocentramento das minhas pessoas alunas (que, em minha opinião, não eram nem um pouco mais arrogantes, ignorantes ou autocentradas do que as típicas pessoas alunas das universidades públicas e particulares do eixo Morumbi-Leblon), elas apenas repetem, como todas nós, os conceitos que estão à nossa volta.
Depois de passar a vida inteira consumindo matérias jornalísticas onde, depois de "países ocidentais", aparecem listados sempre Canadá ou Alemanha, e nunca Cuba ou Gana, as pessoas vão, lentamente, dia-a-dia, internalizando e deduzindo o significado de conceitos que nunca lhes foram formalmente definidos.
Essa definição de Ocidente não foi inventada por minhas pessoas alunas: ela está na imprensa, nos livros didáticos, nos estudos históricos, nos trabalhos acadêmicos. Por todos os lados.
Por exemplo, esse artigo acadêmico, "Identidade e o conceito do Ocidente: o caso do Brasil e da Índia", em inglês, escrito por um pesquisador alemão, presume sempre que o Brasil não é um país ocidental.
Para quem gosta de feira-livre, duas discussões em fóruns da internet sobre a "ocidentalidade" do Brasil: Why are Brazil & Argentina not considered Western countries? e Is Brazil a Western country?
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Para muitas pessoas brasileiras, essa minha revelação é um verdadeiro soco no estômago. Quase todas ficam surpresas, se sentem agredidas, menosprezadas, humilhadas.
Finalmente, me perguntam:
"Bem, pelo menos você ensinou para elas que o Brasil faz parte do ocidente?"
Mas não existe definição "certa" de Ocidente. Cada cultura define Ocidente como quer, e se insere ou não no Ocidente convencionado que ela mesma inventa.
Muito mais interessante do que ensinar uma definição certa de Ocidente (que nem mesmo existe) é mostrar às minhas pessoas alunas que cada cultura define o termo de maneira diferente, tentar entender historicamente as forças que determinaram tanto o seu surgimento quanto essas diferenças de definição e debater se esse conceito ainda serve para alguma coisa.
Aliás, muito mais interessante do que eu contar que outras culturas distantes definiam Ocidente de forma diferente foi perceberem na prática que, mesmo entre elas, as diferenças eram enormes. Que uma palavra que usavam como se fosse autoevidente no seu significado era, na verdade, entendida de formas radicalmente diferentes dentro do próprio grupo.
Em outras palavras, não ensinar que o Ocidente é isso ou aquilo, mas sim que nossos conceitos culturais e políticos nunca são tão simples e autoevidentes e aproblemáticos quanto pensamos.
Ridículo e mesquinho seria eu dar uma aula “ensinando” que, só porque eu, na minha cultura, cresci me considerando ocidental, que então, ó, eu sou ocidental mesmo, de verdade, hein!, e que eles tinham que me enxergar assim também, por favor!!
Como se eu fosse um loser implorando pra entrar no clubinho mais cool do bairro. Como se ser ocidental fosse intrinsecamente bom e ser não-ocidental, intrinsecamente ruim.
Eu me sinto e me considero ocidental porque minha língua nativa é ocidental, porque cresci lendo os grandes autores da tradição ocidental, porque vivo em um país onde grande parte das instituições e tradições é ocidental. Essa é minha autoidentidade.
O fato de qualquer outra pessoa, de uma cultura diferente, com um ponto de referência diferente, com uma história diferente, não me considerar ocidental não afeta em nada minha autoidentidade, nem é justificativa para que eu embarque numa cruzada para convencê-las de que estão “erradas”.
Se os países norte-americanos e europeus seriam pretensamente arrogantes, por "tomar" para si a definição de Ocidente, considerar que essa definição é a única certa e nunca perceber que outras pessoas têm definições diferentes de Ocidente... então, nós, no Brasil, também somos arrogantes, rigorosamente pelo mesmo motivo.
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“Se não somos ocidentais, o que somos?”
Uma pergunta comum:
“Ok, Alex, entendi. Ninguém é dono da definição de Ocidente. Eles não nos consideram ocidentais, nós nos consideramos, tudo certo, cada uma na sua. Mas, se eles não nos consideram ocidentais, o que nos consideram? Orientais?”
Talvez ele seja o maior golpe para o nosso ego: talvez não considerem nada.
A imagem abaixo, desse artigo bem legal do UOL, ilustra a concepção das pessoas norte-americanas e europeias sobre o que seriam “ocidente” e “oriente”.
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Esse texto faz parte da Prisão Patriotismo. Se você gostou, dá uma olhada.
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Civilizados & bárbaros
A próxima aula do meu curso A Grande Conversa Brasileira: a ideia do Brasil na literatura acontece na quinta, 5 de agosto, e vamos conversar sobre Os sertões, de Euclides da Cunha, O Uraguai, de Basílio da Gama e Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.
E sim, ainda dá tempo de participar. (Eu não estaria divulgando se não desse, né?)
Poucos anos depois da Proclamação da República, o Exército Brasileiro mobilizou quase todas as suas forças para enfrentar e destruir uma pequena aldeia rebelada no sertão da Bahia, Canudos. Entre os correspondentes de guerra, estava Euclides da Cunha, de O Estado de São Paulo, para contar aos seus leitores paulistas sobre as hordas bárbaras que ameaçavam a sagrada República. Se tivesse conseguido contar o que pretendeu, hoje não seria nem nota de pé de página na História da Literatura. É preciso ler Os sertões sem tentar classificá-lo, pois é nas classificações fáceis que ele escorre por nossos dedos: nas entrelinhas do projeto classificador de Euclides da Cunha, pelas frestas de seu determinismo racial, Os sertões é um livro que vibra de idealismo e compaixão.
O estilo barroco-científico febril de Euclides da Cunha é marcado por uma eterna dicotomia entre opostos irreconciliáveis: ler Os sertões é acompanhar, ao vivo, uma verdadeira batalha entre esses titãs. De um lado, um militar positivista e patriótico, narrando a épica batalha através da qual o glorioso (e civilizado!) exército nacional derrotou uma horda de fanáticos primitivos e degenerados que ameaçava a própria essência do país. Do outro lado, um escritor, um cronista e um jornalista, mestre contador de histórias, arguto observador, dotado de enorme empatia, desmentindo todas as teorias do positivista ao mostrar homens e mulheres de fibra e de coragem, de força física e de inteligência, vivendo momentos dramáticos de intensa humanidade enquanto defendiam seu líder, sua religião, suas casas, seus entes queridos… sua civilização, enfim.
Mas quem são os bárbaros e quem são os civilizados? Quem é o “nós” e quem é o “eles”? Os sertões é um clássico porque sua contradição interna ainda é a mesma que a nossa, sua fratura exposta é a mesma que ainda nos incomoda. Como todo clássico, Os sertões vive e pulsa e respira porque ainda fala diretamente a nós.
O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, é um poema épico que, assim como Os sertões, foi escrito no calor do momento: narra um conflito que acabara de acontecer. Em 1756, Portugal e Espanha, inimigos sempre irreconciliáveis, se unem militarmente pela primeira vez em sua história para expulsar o povo guarani e os missionários jesuítas que os defendiam do território das Missões — hoje, na Argentina. Por seus esforços em construir o indígena como personagem-chave da literatura nacional, Basílio da Gama antecipa o indianismo fundacional de Alencar e de Gonçalves Dias. Por sua ambivalência em relação aos civilizados e aos bárbaros, antecipa as dualidades irreconciliáveis de Euclides da Cunha: os espanhóis, aliados de momento, não são amigos; os guaranis, adversários, se comportam como nobres e lutam por seus lares. Quem está certo? Quem está errado? O Uraguai, escrito na atmosfera humanista do iluminismo pombalino de meados do XVIII, em versos livres e em linguagem clara, é de certo modo mais aberto e mais tolerante, mais fluente e mais legível, do que Os sertões, quase esmagado pelo peso do determinismo científico do começo do século XX.
A escritora Carolina Maria de Jesus, mulher negra e autora de um diário sobre sua vida na favela (1960), entre muitas outras obras, foi durante décadas a pessoa autora brasileira, de qualquer sexo, mais vendida e mais conhecida em todo o mundo. Respondona e altiva, Carolina Maria de Jesus se recusou a interpretar o papel de “favelada bem-comportada” que quiseram lhe impingir e foi rapidamente colocada no papel de “Outra”, “selvagem”, “não-civilizada”: duvidavam até que tivesse escrito seus próprios livros — best-sellers no mundo inteiro, vamos lembrar. (Até poucos anos atrás, continuava mais conhecida no exterior: quando ensinei Quarto de despejo em uma universidade norte-americana, na década de 2000, a enorme maioria das pessoas leitoras do meu blog, no Brasil. nunca tinha ouvido falar dela.) Se, em Os sertões, Euclides da Cunha narra como o Exército exterminou um terrível Outro, no diário de Carolina Maria de Jesus temos a chance de ouvir esse Outro — na verdade, uma pessoa como nós, mas subalternizada na posição de Eterno Outro — falando em sua própria voz, sobre sua própria vida, sua própria subjetividade. O que não teriam nos contado os diários das mulheres sertanejas canudenses?
(Entrando agora, você assiste as primeiras quatro aulas na gravação, as seis seguintes ao vivo e ainda participa do nosso grupo no Whatsapp.)
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Meus textos tiveram impacto na sua vida?
Eis como pode me ajudar:
O curso de história e literatura que dei ano passado, Introdução à Grande Conversa: Um passeio pela história do ocidente através da literatura, ainda está à venda, por preço bem reduzido. Entrando hoje, você tem acesso às dez aulas gravadas.
Experimente comprar alguns dos meus livros.
Faça uma doação proporcional ao valor que meus textos têm na sua vida.
Compre algum livro na Amazon Brasil clicando nos links dos meus textos.
Ou me dê um livro de presente da minha lista de desejos — basta escolher, pagar e a Amazon manda o livro pra mim.
Ou simplesmente encaminhe esse texto para suas pessoas amigas ou compartilhe esse link nas suas redes sociais.
De qualquer modo, te agradeço demais. :)
Um beijo do
Alex Castro