A Bíblia tem ideologia, e pode ser a nossa
A Bíblia não é inocente. Ainda bem que nós também não. Ela pode, e deve, ser uma ferramenta de mudança política a partir da esquerda.
Como ler a Bíblia? Como ler qualquer texto distante, produzido em outra época por uma civilização que já não é mais a nossa?
Todo texto (especialmente os grandes clássicos com tradição crítica e literária) já contem em si mesmo os elementos que sabotam, fraturam o seu próprio sentido: fios soltos que a crítica literária pode puxar e, ao fazer isso, desmontar (ou desconstruir) o texto. Essa possibilidade deve estar sempre em nossa mente ao ler todas as obras de nosso curso. Alguns fios soltos são mais óbvios (como o Velho no Restelo, em Os Lusíadas, nossa leitura da sexta aula do curso Introdução à Grande Conversa e da terceira aula do curso Grande Conversa Fundadora), outros menos, mas sempre existem, e podemos encontrá-los.
Muitos críticos mais conservadores são contra essa abordagem: argumentam, por exemplo, que leituras anticolonialistas ou feministas da Bíblia só fazem divorciar o texto de seu contexto, de sua base, de sua mensagem, fazendo desse tipo de leitura uma violência ao próprio texto. Por outro lado, não interpretar o texto à luz do nosso tempo, de nossos valores, de nossas prioridades, significa abrirmos mão de nosso direito de pessoas pensantes contemporâneas — um direito do qual todas nossas antepassadas, de todas as gerações anteriores, usaram e abusaram; significa fecharmos os olhos às muitas implicações contemporâneas desses textos; e, talvez o pior, significa condenarmos o texto à mudez e à irrelevância. Afinal, se ele já não fala para o hoje, então, para que serve? O clássico não é, por definição, aquele texto que continua falando para além de sua época? (Collins 59)
Um texto bíblico muito interpretado em uma chave anticolonialista é o Êxodo. Por um lado, ele narra a libertação dos israelitas de seu cativeiro no Egito e seu êxodo em direção à Terra Prometida — onde chegam somente em Josué. A frase de Moisés ao Faraó, “Deixa o meu povo partir”, preferida pela Teologia da Libertação, é fácil e tentadora de se converter em slogan de lutas anticoloniais de independência.
Mas essa operação ideológica só funciona, entretanto, se pararmos de ler a Bíblia em um ponto bem específico. Porque já havia pessoas morando na tal Terra Prometida e Deus comanda que seu Povo Escolhido extermine todas elas, em uma verdadeira limpeza étnica, para que a terra possa ser ocupada somente pelos escolhidos, sem precisarem se misturar com povos ditos inferiores.
A questão não é nem se essa limpeza étnica realmente aconteceu quando os israelitas chegaram em Canaã, mas sim o texto explicitamente autorizar e aprovar que um grupo tome a terra de outro, sem qualquer tipo de provocação, exterminando todos os habitantes originais. Se esse era o livro que os europeus traziam embaixo do braço quando chegaram nas Américas, como estranhar o seu comportamento genocida? (Collins 62) Um membro dos povos originários, sendo catequizado por padres católicos e lendo Josué… vai se identificar com os israelitas chegando em Canaã, ou com os cananeus, que já viviam pacificamente na Terra Prometida e foram violentamente invadidos e exterminados?
Na Bíblia e, especialmente, no Pentateuco (que são os cinco primeiros livros), os israelitas sempre são “nós”, “o povo”, “a civilização”, enquanto babilônios e cananeus, seja mais fortes ou mais fracos, sempre são o “outro”, o povo idólatra e ameaçador que precisa ser destruído para que o final feliz tão prometido aconteça. Essa dicotomia “Civilização vs Bárbarie” marca tanto o Antigo Testamento, tema da primeira aula do curso Introdução à Grande Conversa, como o Martin Fierro, tema da nona, e também Os sertões, leitura da quinta aula do curso Grande Conversa Brasileira.
Sim, o Antigo Testamento inclui alguns dos primeiros textos na História a clamar por justiça social, igualdade, defesa dos mais pobres, mas esses textos existem lado a lado, às vezes na mesma página, de outros exigindo e autorizando genocídios. A Bíblia, enquanto texto, é um objeto como outro qualquer, que nós, aqui no presente, tanto quanto todas as gerações anteriores antes de nós, podemos ressignificar, escolher os trechos mais relevantes, usar para nossos objetivos políticos.
O que não podemos esquecer é que o texto não se limita aos trechos que pinçamos para representar nossos valores e defender nossas ideias.
A Bíblia não impõe uma opção pelos pobres, como muitas vezes parecem sugerir os teólogos da libertação. (Se fosse verdade, não existiriam tantos judeus e cristãos de extrema direita.)
A Bíblia permite essa leitura — por isso, nada mais justo que ressaltarmos e valorizarmos essa interpretação ou fazermos dela uma bandeira em nossa luta política— mas sem esquecer que a Bíblia também igualmente permite leituras genocidas e imperialistas.
Os conquistadores, que mataram e rapinaram nosso continente com a Bíblia em riste, não tinham lido errado, assim como nós também não: eles simplesmente pinçaram outros trechos, escolheram ler outra Bíblia, uma Bíblia que também está lá, junto com a nossa, uma Bíblia tão Bíblia quanto a outra.
O perigo, portanto, não está em usarmos a Bíblia, pois o outro lado, e todos os lados, também usam, mas em alçarmos ou mantermos a Bíblia em uma posição de guia ou autoridade moral. Porque, se fizermos isso, ela servirá igualmente de guia moral para justificar o genocídio. (Collins 68-69)
A Bíblia (assim como qualquer outro texto, assim como nós mesmas) nunca é inocente. Ela pertence a quem fizer o melhor uso dela. Que sejamos nós.
(Referências: The Bible after Babel, Historical criticism in a postmodern age, de John J. Collins, e A Bíblia pós-moderna, Bíblia e cultura coletiva, de David Jobling et al, inglês, 1995.)
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Qual edição da Bíblia ler?
Minha recomendação rápida: Bíblia do Peregrino ou Bíblia de Jerusalém.
No texto Escolhendo uma Bíblia, explico melhor as razões da recomendação e aproveito pra contar um pouco da história da Bíblia.
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso aconteceu em 2020, mas todas as aulas continuam disponíveis para minhas pessoas mecenas. Torne-se mecenas aqui.
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Quarta, 26mar, 19h: aula, Prisão Monogamia
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