BDSM não é defesa: o caso Neil Gaiman
Predadores que se defendem debaixo do manto do BDSM só estão confessando seus crimes. Mais: é possível separar autor da obra?
Predadores sexuais, quando confrontados com evidências de seus crimes, adoram se esconder debaixo do manto do BDSM:
“Ah, é que eu sou BDSM, sabe? E ela, essa minha acusadora, é uma caretona que nunca entendeu (nem mereceu) um cara tão cool quanto eu!”
Mas qualquer interação sexual só é BDSM se houve um pacto prévio consensual articulado explícito. Se não houve, se você mesmo admite que a moça não “entendia” um cara “cool” como você (quem não entende não consente), então você está CONFESSANDO que não foi BDSM: foi abuso, foi agressão, foi crime.
* * *
Primeiro, uma definição: BDSM quer dizer, em inglês, "bondage domination sado-masochism" e se refere a relacionamentos onde dominação e submissão são fundamentais.
Depois, um disclaimer: sou BDSM desde sempre. Na prática, é a minha orientação sexual: porque, sem o elemento fetichista, pra mim nem existe a possibilidade de sexo; o sexo ou é kinky ou somos só bons amigos. E tudo bem: é por isso, entre outras coisas, que tenho tantas amigas mulheres, apesar de ser um homem “hétero”. (Para quem tiver curiosidade sobre meus fetiches específicos, recomendo esses dois textos: Elogio aos pés & Malvadas, vilãs & Femme fatales.)
Em terceiro, um pouco sobre lógica. Digamos que você afirme: “Nenhum escocês bebe Pepsi”. Aí eu apareço com um amigo: “Olha, o McLeod aqui é escocês e bebe Pepsi.” Você, naturalmente, tem a opção de reconsiderar sua afirmação inicial, que claramente não se sustenta. Ou você pode insistir no erro e tentar invalidar o meu escocês: “Ah, nenhum escocês de verdade bebe Pepsi. Esse seu McLeod aí não conta: ele não é um escocês de verdade porque tem pai espanhol/cresceu em Londres/etc.” (O nome disso é Falácia do Escocês de Verdade.)
Agora, ao caso em questão: Hoje, a New York Magazine publicou uma matéria de capa com um longo e detalhado perfil sobre as acusações de abuso, assédio e estupro que o escritor Neil Gaiman está recebendo. Já na capa, a chamada da matéria remete ao BDSM:
“Call me master: The sadistic power games of fantasy author Neil Gaiman” (“Me chama de Mestre: os jogos de poder sádicos do autor de fantasia Neil Gaiman”)
Além de seu comportamento agressivo e dominador, ele fazia questão de ser chamado de “Mestre” no contexto sexual. (Até aí, nada de errado – se tivesse sido consensual!) Depois, dentro da revista, o título da matéria também remete ao BDSM:
“There Is No Safe Word: How the best-selling fantasy author Neil Gaiman hid the darkest parts of himself for decades” (“Sem palavra de segurança: como o autor bestseller Neil Gaiman manteve escondido por décadas o seul ado mais negro”)
No corpo da matéria, de novo BDSM. Como muitos predadores sexuais quando expostos, Gaiman está tentando se esconder debaixo do manto do BDSM. Ele teria respondido o seguinte através de seus representantes:
“Sexual degradation, bondage, domination, sadism, and masochism may not be to everyone’s taste, but between consenting adults, BDSM is lawful.” (“Degradação sexual, amarração, dominação, sadismo e masoquismo podem não agradar a todos, mas entre pessoas adultas que consentem, o BDSM é lícito.”)
Então, deixa eu afirmar aqui:
Como o BDSM é POR DEFINIÇÃO consensual, se o BDSM não foi acordado, se havia qualquer tipo de dúvida, se a outra parte não consentiu explicitamente, se saiu da interação se sentindo agredida, vitimizada, explorada, etc... então, POR DEFINIÇÃO, não foi uma relação BDSM.
Nesse ponto, alguma leitora implicante poderia alegar que estou usando a Falácia do Escocês Verdadeiro para defender o BDSM. Como se nenhum praticante BDSM nunca errasse ou passasse dos limites.
Não. Estou falando da definição mesmo.
Quando afirmo que relacionamentos BDSM são consensuais por definição, não estou afirmando nada sobre as pessoas que praticam BDSM nem sugerindo que são todas santas, éticas, ilibadas: estou só compartilhando a definição de BDSM.
Literalmente, a única coisa que separa, digamos, o crime de lesão corporal de uma prática BDSM é o pacto prévio consensual articulado explícito entre as pessoas participantes. Se houve, é BDSM; se não houve, é crime, chama a polícia.
Se duas pessoas têm uma interação BDSM não-consensual... então, não foi uma relação BDSM, foi uma agressão.
É o mesmo que falar que sexo por definição é consensual – e, se não é consensual, então, é estupro. Não quer dizer que todas as pessoas que fazem sexo são santas, éticas e fofas. Quer dizer que, por definição, se não houve consentimento, não foi sexo, foi estupro.
A existência ou não de pacto prévio consensual articulado explícito é o que separa o sexo do estupro, o BDSM da agressão.
Moral da história: não caiam no papo de predador sexual usando o BDSM para justificar seus crimes. A comunidade BDSM tem tantos problemas quanto qualquer uma, provavelmente até em maior quantidade.
Mas os crimes desses predadores são responsabilidades deles e não têm nada a ver com BDSM.
* * *
Como separar autor da obra?
Em dias como hoje, sempre ressurge essa discussão, uma das mais chatas e estéreis de todos os tempos.
Ao invés de “como separar autor da obra?”, a pergunta deveria ser outra: dado que essas duas coisas nunca estiveram juntas, por que cargas d’água você juntou autor e obra?
Pelo contrário, tem COMO juntar autor e obra? Essa união faz sentido? É útil? Ajuda?
A pergunta “como separar autor-obra” é tão non-sense quanto a pergunta “como separar o peixe do Nutella”. Caralho, quem foi que misturou peixe com Nutella? Eles nunca foram, nem estiveram juntos.
Não delira. Curte seu peixe, curte sua nutella. Cada coisa na sua hora. Desapega. Desjunta. Curte o livro. Curte a música. Foda-se quem escreveu.
Não só “como separar autor-obra” é uma não-questão, mas, se essa questão é importante pra você, então te convido a refletir sobre esse seu afã julgador-da-vida-dos-outros.
É essa a pessoa que você é? Que você sinceramente quer ser?
Deixa as pessoa. Sossega.
Por fim, reparem. Não estou defendendo autor criminoso.
Ao contrário. Dá pra colocar o criminoso na cadeia e jogar a chave fora, e continuar curtindo IGUAL as artes bonitas e relevantes que ele escreveu, pintou, compôs.
Porque uma coisa não tem nada a ver com outra. Graças a Baco.
* * *
Paga um café para um artista que você curte?
Muito obrigado às pessoas mecenas que, com suas contribuições em dinheiro, seja em agradecimento pelos meus textos que já consumiram ou para me possibilitar escrever novos textos, me dão o presente mais concreto que um artista independente poderia desejar.
Se você gosta do que escrevo, por favor, considere se tornar mecenas. Pode ser por qualquer valor. Fazendo meu mecenato de R$88, você ganha acesso a todos os meus cursos — passados, presentes e futuros — textos exclusivos pra ler e grupos de Whatsapp exclusivos pra participar.
Se for comprar na Amazon BR, faça pelos meus links. Você não perde nada e eu ganho uma comissão de tudo o que comprar — não necessariamente só do item que clicou. Link para a página de ofertas do dia em livros. (Se puderem salvar essa bookmark nos seus browsers, já resolve.)
Para quem está fora do Brasil, a melhor, a maior ajuda que você pode me dar é me ajudando a comprar livros. (Livros importados são, longe, minha maior despesa.) Se você puder e quiser, por favor, deposite alguns dólares ou euros via cartão de presente ou na Amazon EUA (amazon.com/gift-cards) ou na Amazon Espanha (amazon.es/cheques-regalo) para o email eu@alexcastro.com.br (É só clicar no link e digitar o valor. Só serve se for na Amazon EUA ou Espanha: nas outras, não tenho conta.)
Se quiser fazer um pix, agradeço: eu@alexcastro.com.br
Excelente como sempre, abraços e um ótimo ano..
Peixe e Nutella não tem nada haver mesmo. Autor e a obra tem ... como não teria? Um criou o outro, e por isso a exposição e popularidade da obra serão afetados por conta do autor ser o que se descobriu.
A pergunta pra mim seria: A obra era fantástica antes de se saber que o cara era um bosta? Entendo o desapontamento de quem era "fan da obra dele", mas é isso.
Eu não conhecia o Neil Gaiman, não era amigo dele, zero proximidade. O que eu conheço e gosto (e continuo a gostar) mesmo, é do Sandman.