Perdendo a batalha para o câncer e para a decência
Se uma pessoa pode "perder a batalha para o câncer" é porque o jornalismo já perdeu a batalha contra a decência.
(Sempre quero saber sua opinião — é só responder esse email.)
Somos tão obcecadas pela dinâmica soma-zero de tabular tudo como "perdas e ganhos", “vencedores e perdedores”, que já não conseguimos mais dizer que alguém apenas "morreu de câncer" — como aliás morreremos todas.
Em uma demonstração de extremo mau-gosto, definimos a falecida como uma perdedora:
"Perdeu a batalha contra o câncer."
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Ressaltar a pretensa "coragem" de algumas pessoas na "guerra contra o câncer"...
…pode estigmatizar outras pessoas que também (corajosamente?) decidem não se engajar nessa mesma guerra.
Afinal, quem somos nós, aqui de fora, para decidir o que é corajoso e o que não é na luta de outra pessoa contra uma doença que ameaça a vida dela?
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Quando elogiamos alguém por sua coragem diante do câncer...
…contra quem estamos comparando essa pessoa? Quem está sendo implicitamente excluída desse elogio? O que seria "não ter coragem" diante do câncer?
(Afinal, só faz sentido elogiar a coragem de alguém diante de algo em comparação ao seu oposto, ou seja, se tivermos pelo menos uma ideia mental do que seria não ter coragem diante desse algo.)
Ou então:
"Ela não se rendeu!"
"Lutou até o fim!"
Mas.... o que exatamente significa "não se render" e "lutar até o fim" contra uma doença que, muitas vezes, é terminal?
Ou, por outro lado, o que seria "se render" ou "não lutar contra o câncer"? Talvez, não fazer quimio, recusar operações invasivas? é isso?
Mas, nesse momento crítico de fim da vida, não seriam essas opções também corajosas ou, no mínimo, igualmente válidas?
Se é corajoso receber um diagnóstico de câncer e obedecer ao médico e fazer quimio.... não seria também corajoso rejeitar o tratamento e tentar aproveitar o tempo que resta?
Não estou dizendo que uma atitude é tão boa, ou tão recomendável quanto a outra. (Até que porque só a própria pessoa sabe do seu câncer.)
Minha pergunta é:
Faz sentido falarmos em "se render ao câncer", "batalhar até o fim", "ter coragem"?
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Antigamente, morríamos.
A natureza, as doenças, a decadência do corpo eram inimigos poderosos demais. Morrer era triste, era terrível, era uma catástrofe a ser evitada a todo custo, mas também era uma parte integrante e necessária da vida.
Hoje, a morte se transformou em uma fatalidade azarada, uma oportunidade perdida, uma derrota pessoal.
Nós é que não comemos alimentos orgânicos o suficiente, não nos exercitamos a contento, não paramos de fumar antes dos trinta, nos estressamos demais. A culpa é toda nossa: se apenas tivéssemos feito o que nos mandavam as revistas de saúde (menos ovo nos anos pares, mais ovo nos ímpares) iríamos viver para sempre — como tem de ser! Mas não: fomos fracas e, por isso, por nossas falhas de caráter, pelos pecados originais da gula e da preguiça, estamos aqui nessa cama de hospital, ao pé da morte. Mea culpa, mea maxima culpa.
Pior ainda, a miragem do progresso eterno e irresistível nos promete a solução de todos os problemas, logo ali, na próxima esquina… se apenas conseguirmos chegar lá!
Então, desenvolver um câncer não é somente uma derrota pessoal, fruto de nosso fracasso em manter um estilo de vida correto, mas também, coitadas de nós, uma fatalidade do destino.
Cientistas suecas estão testando nesse momento, agorinha mesmo, a droga milagrosa que iria nos salvar. Segundo estudos de Harvard, deve chegar no mercado ano que vem e esse câncer deve estar extinto antes da próxima Copa do Mundo. Se tivéssemos comido mais açaí, menos óleo de coco (ou mais?) e muito leite de amêndoa, teríamos aguentado até lá e, então, claro, não morreríamos nunca mais.
Ó vida, ó azar.
Meus melhores textos sobre morte e entropia.
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Em 2017, o senador John McCain, famoso por ter sido capturado durante a Guerra do Vietnã, recebeu um diagnóstico de câncer. Como ele já era visto como um "guerreiro", não faltaram metáforas bélicas na imprensa.
Do artigo "McCain is considered a warrior. But is that the right metaphor for his struggle with cancer?":
“I get it. … If you don’t want something in your life, name it as an ‘enemy’ and go to war with it. This will allow you to marshal all sorts of extraordinary energy. The problem is, all too often, it’s not a battle you can win, and then you’re left with the fallout of your own making. You’ve set yourself up to be a ‘loser’ on top of everything else. This is especially crazy when it comes to going to war with death, a war everyone who has ever lived, has lost."
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Sempre brilhante, o jornal satírico The Onion consegue levantar todas essas questões em um único artigo:
Loved Ones Recall Local Man's Cowardly Battle With Cancer
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A cruz e o carma
Outro dia, um moço me procurou. Setenta anos, alguns distúrbios mentais, um câncer no cérebro. Estava raivoso, puto, frustrado.
Em um dado momento, me acusou de não estar fazendo nada para ajudá-lo. Que o que ele precisava mesmo era que eu pegasse aquele câncer pra mim. Afinal, por que no cérebro dele e não no meu?!
E eu respondi:
"Se você pudesse pegar o meu diabetes, a minha hipertensão, a minha gota, a minha gastrite, eu pegaria o seu câncer de cérebro."
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Se fosse uma parábola inventada, a história pararia por aqui. Como aconteceu mesmo, eu preciso contar o que ele fez depois de eu dizer isso.
Ele franziu a sobrancelha e, primeiro, fez cara de surpreso e, depois, de desconfiado, e retrucou:
"Peralá, esse troço de diabetes mata, não mata?!"
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E balancei a cabeça afirmativamente e continuei:
"Eu posso te ouvir e te acolher, te abraçar e te aceitar, mas não tenho como efetivamente tirar a sua dor e extirpar seu câncer, carregar a sua cruz e incorporar o seu carma. Sua dor e seu câncer, sua cruz e seu carma, tudo isso é seu."
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Update para quem comprou Mentiras Reunidas
O livro está sendo impresso. Em breve, começarei a autografar. Deve ser enviado, como previsto, em junho. :) Vai valer a pena esperar.
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Se meus textos tiveram impacto em você, se usa meus argumentos para ganhar discussões, se minhas ideias adicionaram valor à sua vida, por favor, considere fazer uma contribuição do tamanho desse valor.
Assim, você estará me dando a possibilidade de criar novos textos, produzir novos argumentos, inventar novas ideias.
Pix: eu@alexcastro.com.br
(Se pagar por Pix, não esquece de me mandar seu nome completo e email, para entrar na lista das mecenas.)
Outras opções de mecenato aqui.
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Para leitoras na Espanha, um pedido sem vergonha
Minhas leituras sobre poesia medieval espanhola estão custando uma quantidade de dinheiro irrazoável na Amazon Espanha. Se tenho algumas pessoas leitoras espanholas, ou que estejam na Espanha, ou que tenham conta na Amazon Espanha, e caso queiram retribuir tudo o que meus textos já fizeram por elas depositando alguns euros de presente em meu cheque-regalo, eu não poderia ser mais grato.
Basta ir na URL amazon.es/cheques-regalo e depositar o valor que você quiser e puder no cheque-regalo de lll.alexcastro@gmail.com.
E saiba que você estará retribuindo, com muito troco e muita sobra, todo o bem que eu possa lhe ter feito. :)
Um beijo,
Alex Castro
Perfeito! Eu sobrevivi a um câncer de mama, grávida. E ODEIO quando falam que eu venci o câncer, enquanto trocentas amigas minhas morreram por causa deles. Como assim, então eu venci e elas não? Quando elas morreram o câncer morreu junto, ou seja, ele não venceu. Odeio quando falam que fui guerreira ou corajosa, não fui! Eu só fiz oq eu tinha que fazer pra me manter viva, nada mais e nada menos. E as que morreram fizeram a mesma coisa.