As virtudes de não-lutar
A vitória política será de quem não se perder em batalhas inúteis.
Existem inimigos contra os quais temos que lutar com todas nossas forças. Algumas vezes, porém, temos que lutar com todas as nossas forças… contra a tentação de atacar aqueles inimigos que se alimentam de nossos ataques.
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Estamos no século III antes da Era Comum. Roma, então somente uma cidade-estado na península itálica, estava em guerra com outra cidade-estado, Cartago (perto da atual Túnis), pelo controle do Mediterrâneo.
Aníbal Barca, um dos grandes generais de todos os tempos, desembarcou um exército de mercenários e elefantes na Espanha, cruzou os Alpes enfrentando mil perigos e penetrou na Itália pelo norte, surpreendendo Roma e suas aliadas.
Durante dezoito longos anos, Aníbal perambulou pela península, vencendo todas as batalhas que travou.
Roma sofreu derrotas achapantes, que teriam derrubado qualquer cidade mais fraca, e que são estudadas até hoje em academias militares pelo mundo, como as de Lago Trasimeno e Canas.
Ainda assim, não caiu.
Por quê?
Aníbal, longe de casa e isolado, precisava de batalhas: eram elas que lhe davam forças, renovavam seus víveres, impediam seu exército de se autoconsumir em lutas internas.
O cônsul romano Fábio Máximo sugeriu uma nova tática: simplesmente lhe negar suas tão desejadas batalhas. Quando Aníbal se aproximasse, as cidades romanas se fechariam dentro de suas muralhas e esperariam que fosse embora. Ataques somente às suas linhas de abastecimento, nunca ao exército principal.
Para a maioria dos cidadãos romanos, entretanto, orgulhosos das virtudes militares de sua poderosa república, a ideia de simplesmente não fazer nada enquanto um implacável general inimigo passeava pela península era intolerável.
Roma também era ciosa de sua democracia: mesmo enfrentando uma ameaça existencial, continuava conduzindo eleições regulares. Nas seguintes, Fábio Máximo foi prontamente substituído por líderes mais marciais e mais viris, que deram batalha a Aníbal, foram derrotados e mortos.
Roma queria lutar, mas também estava exausta: toda uma geração de jovens foi exterminada nessas batalhas fúteis. Finalmente reconduzido à liderança com plenos poderes, Fábio Máximo implementou a assim chamada “estratégia fabiana” que consistia, basicamente, em não dar a Aníbal o que ele tanto queria.
O general cartaginense ainda ficou uns anos batendo pezinho pela península, exigindo a batalha decisiva que achava que Roma lhe devia e chamando os romanos de covardes, mas acabou empacotando seu exército e voltando para a África.
Então, com a casa segura, Roma cruzou o Mediterrâneo com todas as suas forças e impôs a Aníbal sua primeira, única e última derrota. Pouco anos depois, Cartago foi destruída e sumiu do mapa.
Aníbal era brilhante: Fábio Máximo foi mais.
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Existem inimigos contra os quais temos que lutar com todas nossas forças.
Algumas vezes, porém, temos que lutar com todas as nossas forças… contra a tentação de atacar aqueles inimigos que se alimentam de nossos ataques.
A vitória política pertencerá a quem conseguir diferenciar um do outro.
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O melhor livro sobre Aníbal Barca e as Guerras Púnicas ainda é o de Tito Lívio. Ninguém, ninguém, ninguém escreve sobre História de forma tão emocionante. Melhor que todos esses historiadores-divulgadores de hoje. Recomendo com ênfase.
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Seja Mecenas
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Grande Conversa Medieval: quando as línguas eram jovens e tudo estava em aberto
Meu curso para 2024 será a Grande Conversa Medieval. Somente para mecenas. :)
Um vídeo apresentando o curso
Curso em resumo
Curso de literatura e história, com foco na experiência estética de alteridade radical dos textos medievais, como também nas continuidades e rupturas históricas e literárias com a cultura contemporânea. // Leituras não obrigatórias. 24 aulas, 2h cada, última quarta-feira do mês às 19h, de janeiro de 2024 a dezembro de 2025. Encontros e aulas ao vivo via Zoom; aulas gravadas via Facebook; grupo de discussão no Whatsapp. // R$88 mensais, no Apoia-se, por todos os meus cursos. (Recomendo fortemente o Apoia-se, pois dá direito a muitas outras recompensas.) Compre agora.
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Grande Conversa Medieval
O curso Grande Conversa Medieval não é apenas para pessoas interessadas em história e cultura medieval, mas para qualquer leitora apaixonada por literatura. Os objetivos mais óbvios do curso são dois:
— Apresentar às pessoas alunas algumas das autoras e obras, conceitos e fatos, mais conhecidos da Idade Média, aquelas que talvez já tenham até ouvido falar mas não saibam bem quem são, de Tristão e Isolda a Abelardo e Heloisa, das Cruzadas ao Graal, de Marco Polo ao Rei Arthur, das Mil e uma noites ao Orlando Furioso, de Chaucer a Petrarca;
— Suprir uma lacuna nas histórias literárias que sempre tratam esse período como um grande buraco escuro entre a Antiguidade e o Renascimento. Como me perguntou uma aluna, “Por que tem tão poucas obras-primas literárias na Idade Média?” Pois o curso é para mostrar que tem muitas.
Mas existe um terceiro objetivo, talvez surpreendente e bem mais importante, que será o nosso foco principal.
A Idade Média europeia foi um dos períodos mais ricos em inventividade linguística e criatividade literária da história do mundo. Quando o latim já estava engessado pela idade e pela obsolescência, e as línguas modernas ainda não estavam engessadas pelas gramáticas e pelas convenções, houve um mágico intervalo de tempo onde todas as possibilidades estavam em aberto, tudo ainda era possível, qualquer experimento literário parecia factível.
Por isso, o grande objetivo do curso será não uma busca pela tradição ou pela essência do Ocidente, como tantas pessoas conservadoras idealizam na Idade Média (Deus me livre, que curso chato seria esse!), mas sim uma busca, a partir de uma perspectiva de esquerda, pelo novo e pelo estranho, pelo inesperado e pelo subversivo.
Hoje, em larga medida, nossos cânones, estilos e gêneros literários mais caretas ainda são aqueles da Antiguidade greco-romana, como foram “recuperados” pelos homens renascentistas que tentavam superar as “trevas” dessa “idade média” que acabavam de inventar.
Por isso, quando nossas vanguardas literárias mais experimentais decidem atacar toda essa caretice institucional, onde mais buscar inspiração que não nessa Idade Média tão rejeitada, tão escondida, tão surpreendente?
Paradoxalmente, portanto, e essa é a premissa no cerne do nosso curso, a literatura medieval hoje é mais subversiva, experimental e, por que não?, inovadora do que as literatura antiga ou moderna, realista ou modernista.
Guerra e paz e Os miseráveis, A montanha mágica e Os maias, Vidas secas e O estrangeiro, Dom Quixote e Dom Casmurro são maravilhosos (amo todos de paixão mesmo!), mas também são diferentes variações do mesmo molde novelesco realista.
Já Cantar do meu Cid não tem nada a ver com nossa ideia de uma poesia épica medieval. Abelardo e Heloísa, Tristão e Isolda, um casal real e outro ficcional, também não correspondem às nossas ideias de como seriam os casos de amor medievais. As sagas islandesas tem o vigor e a frescura da literatura contemporânea. François Villon, bandido e assassino, poderia ser um poeta trash em qualquer grande cidade atual. Tomás de Aquino, concordando ou não com suas premissas, é um verdadeiro professor de como pensar e desenvolver um argumento logicamente. Marco Polo era um mercador prático que descreveu suas viagens como um guia sóbrio para futuros homens de negócios. Alcassino e Nicoleta é único ao ponto de ser um gênero literário composto de uma só obra. As cantigas de amigo que aprendemos na escola são muito mais complexas e picantes do que nos ensinaram. Petrarca só parece lugar-comum porque inventou nosso conceito de “Eu” e passou 700 anos sendo imitado à exaustão. O Orlando Furioso talvez seja o clássico canônico mais puramente divertido de todos. Por fim, até hoje, não existe nada na literatura parecido à Celestina. (O Cid, o Orlando, a Celestina estão entre minhas obras preferidas da vida e quero muito compartilhá-las com vocês.)
Então, se te perguntarem por que está fazendo um curso de literatura medieval (!) em pleno 2024 (!!), responda:
“Pra ler uma literatura tão radicalmente nova que eu nem imaginava que pudesse existir (!!!) e que eu nunca teria encontrado por conta própria sem esse curso.” (!!!!)