As cortinas azuis
Em memória de Roberto José Rivera, 23 de junho de 1976 — 2 de julho de 2009
Um dos meus textos mais queridos. Aqui vai, de novo, para quem quiser reler e para quem ainda não conhece.
(Ah, a conversa livre da Prisão Empatia acontece hoje, às 19h. Preciso muito da sua interlocução para conseguir escrever esse texto. Então, por favor, venham.)
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roberto e eu morávamos em nova orleans durante o furacão katrina, mas ainda não nos conhecíamos.
eu abandonei a cidade dois dias antes da tempestade e só voltei seis meses depois. ele passou o furacão cuidando de pacientes no hospital universitário, foi evacuado em helicópteros do exército e deixado em uma estrada deserta com as roupas do corpo. dez meses depois, respondeu a um anúncio meu procurando um colega de casa.
moramos juntos por um ano.
formado em cinema e concluindo sua residência médica, roberto me ensinou a malhar direito e comer melhor. ensinou ao oliver, meu poodle sem vergonha e também bravo sobrevivente do katrina, os melhores truques que ele usa até hoje pra seduzir as visitas. para se comunicar com o oliver, que não respondia bem ao inglês, roberto falava “blá blá blá” mas imitando meu sotaque, meu ritmo, minha cadência com tamanha perfeição que o oliver respondia empolgado aos seus comandos.
mais tarde, abrigou por dois meses a cachorrona de uma amiga sua que estava reformando a casa. ginger e oliver se deram muito bem.
ao terminar a residência, roberto decidiu que não queria mais saber de medicina, se candidatou a um posto de professor de inglês no japão e nos mandou procurar outro colega de casa. poucos dias depois de termos fechado com uma nova pessoa, ele soube que inexplicavelmente não tinha sido aceito. queríamos romper o acordo com o outro, para que ele continuasse morando conosco, mas roberto achou antiético. foi morar sozinho.
pelo ano seguinte, trabalhou de médico do trabalho por somente dois dias por semana (para pagar suas gigantescas e massacrantes dívidas estudantis) e, no resto do tempo, se dedicava a buscar um rumo. aprendeu piano, começou a fazer stand-up comedy, fotografou profissionalmente. minhas melhores fotos são dele. ninguém jamais me fotografou melhor, com um olhar tão generoso.
nos víamos com frequência, mas não tanto quanto deveríamos.
quando o furacão gustav forçou uma nova evacuação da cidade, em 2008, liguei para roberto e perguntei quais eram seus planos. evacuações forçadas são excelentes para recuperar contato com os amigos. soube que ele estava de mudança de volta ao texas justamente naquele dia: era uma despedida digna de nova orleans, sempre festeira e intensa, tempestuosa e caribenha.
em austin, decidiu adotar um cachorro e me citou como referência. avisou q talvez me ligassem pra perguntar se seria um bom dono. claro que seria, confirmei.
mas deve ter mudado de planos: dois meses depois, na véspera dos festejos do quatro de julho de 2009, formatou seu computador, doou quase todos seus objetos pessoais, dirigiu até a casa do lago do pai, parou o carro na garagem e ligou um pequeno forninho a gás. bem onde sabia que seria encontrado por toda a família durante o feriado.
roberto morava com a irmã nessa época e ela veio até nova orleans para me conhecer e visitar a casa. conversar e rememorar, aceitar e entender. trabalhar nosso luto. ela disse que eu tinha sido seu último contato humano importante. quando saiu da minha casa, roberto se tornara cada vez mais isolado e deprimido – algo que eu, cego e egocêntrico, não tinha visto nos nossos encontros esporádicos.
a irmã de roberto e eu passamos um fim-de-semana agridoce. comemos, bebemos, passeamos. foi bom ter alguém com quem conversar sobre ele. ninguém chorou.
voltei para o rio definitivamente há poucos meses, deixando para trás meu velho quarto de cortinas azuis.
alguns anos antes, enquanto passava as férias longas no brasil, subloquei meu quarto para uma moça chamada athena, de são francisco. os verões em nova orleans são quentes e batia muito sol no meu quarto de manhã. athena estava vulnerável, recém-saída de um mau relacionamento, e se apaixonou forte por roberto. ele não se apaixonou de volta, mas gostava dela e tentou não feri-la – óbvio que não deu certo. foram amantes de verão. transaram na minha cama e na dele. em algum ponto, talvez em um gesto másculo de carinho protetor, talvez em um gesto egoísta para salvaguardar seu sono, roberto instalou as cortinas azuis.
quando voltei para nova orleans, roberto já tinha se mudado da casa e athena (que nunca conheci) voltara para são francisco. durante os anos seguintes, nas minhas manhãs mais preguiçosas, as cortinas azuis continuaram sempre me protegendo do sol forte.
hoje, a casa tem novos moradores. eles comem e cozinham, dormem e decoram, brincam e brigam. e não fazem ideia que roberto um dia viveu. ainda assim, as cortinas azuis – penduradas com tesão ou egoísmo – os protegem igualmente do sol.
nunca conversei com roberto sobre as cortinas azuis: agora me ocorreu que podem também ter sido um presente pra mim.
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em memória de roberto josé rivera, nascido em 23 de junho de 1976, falecido em 2 de julho de 2009.
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Minhas palavras te tocaram? Então, faz uma contribuição
Se meus textos tiveram impacto em você, se minhas palavras te ajudaram em momentos difíceis, se usa meus argumentos para ganhar discussões, se minhas ideias adicionaram valor à sua vida, por favor, considere fazer uma contribuição do tamanho desse valor.
Assim, você estará me dando a possibilidade de criar novos textos, produzir novos argumentos, inventar novas ideias.
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Praticar arte de forma mais inclusiva e, ao mesmo tempo, ganhar a vida como artista é um dos grandes dilemas da arte contemporânea.
Publicar minha literatura de graça na internet, sempre disponível para todos, e ganhar dinheiro vendendo esse mesmo conteúdo na forma de livros e encontros para quem pode e quer pagar… essa me parece ser uma das formas mais inclusivas de fazer literatura no brasil.
É o que posso fazer.
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Nessa minha vida frugal de artista mambembe, tenho tentado ao máximo fugir das tentações institucionalizantes pelo caminho. Não tenho vínculo fixo com nenhuma organização. Ninguém me apoia, patrocina, coloca seu logotipo na minha camisa. Tudo o que faço e organizo eu faço e organizo 100% sozinho.
Então, dependo muito da ajuda das pessoas que me leem, que me acompanham, que valorizam os meus textos, que usam meus argumentos pra ganhar discussões, que sentiram suas vidas tocadas por minhas palavras.
Escrever esses textos que mudaram a sua vida dá muito trabalho. E esse é o único trabalho que eu tenho.
É o meu prazer e o meu privilégio dar esses textos para você ler de graça.
Mas, se você puder me ajudar financeiramente a produzir novos textos, eu lhe serei imensamente grato.
Hoje, se consigo ganhar a vida exclusivamente como escritor, é graças à generosidade das minhas mecenas, que participam da minha produção artística com suas contribuições em dinheiro.
São elas que permitem que eu dê o meu trabalho de graça para quem deseja usufruir dele e não pode pagar.
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Grande Conversa Medieval: quando as línguas eram jovens e tudo estava em aberto
Meu curso para 2024 será a Grande Conversa Medieval. Somente para mecenas. :)
Um vídeo apresentando o curso
Curso em resumo
Curso de literatura e história, com foco na experiência estética de alteridade radical dos textos medievais, como também nas continuidades e rupturas históricas e literárias com a cultura contemporânea. // Leituras não obrigatórias. 24 aulas, 2h cada, última quarta-feira do mês às 19h, de janeiro de 2024 a dezembro de 2025. Encontros e aulas ao vivo via Zoom; aulas gravadas via Facebook; grupo de discussão no Whatsapp. // R$88 mensais, no Apoia-se, por todos os meus cursos. (Recomendo fortemente o Apoia-se, pois dá direito a muitas outras recompensas.) Compre agora.
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Grande Conversa Medieval
O curso Grande Conversa Medieval não é apenas para pessoas interessadas em história e cultura medieval, mas para qualquer leitora apaixonada por literatura. Os objetivos mais óbvios do curso são dois:
— Apresentar às pessoas alunas algumas das autoras e obras, conceitos e fatos, mais conhecidos da Idade Média, aquelas que talvez já tenham até ouvido falar mas não saibam bem quem são, de Tristão e Isolda a Abelardo e Heloisa, das Cruzadas ao Graal, de Marco Polo ao Rei Arthur, das Mil e uma noites ao Orlando Furioso, de Chaucer a Petrarca;
— Suprir uma lacuna nas histórias literárias que sempre tratam esse período como um grande buraco escuro entre a Antiguidade e o Renascimento. Como me perguntou uma aluna, “Por que tem tão poucas obras-primas literárias na Idade Média?” Pois o curso é para mostrar que tem muitas.
Mas existe um terceiro objetivo, talvez surpreendente e bem mais importante, que será o nosso foco principal.
A Idade Média europeia foi um dos períodos mais ricos em inventividade linguística e criatividade literária da história do mundo. Quando o latim já estava engessado pela idade e pela obsolescência, e as línguas modernas ainda não estavam engessadas pelas gramáticas e pelas convenções, houve um mágico intervalo de tempo onde todas as possibilidades estavam em aberto, tudo ainda era possível, qualquer experimento literário parecia factível.
Por isso, o grande objetivo do curso será não uma busca pela tradição ou pela essência do Ocidente, como tantas pessoas conservadoras idealizam na Idade Média (Deus me livre, que curso chato seria esse!), mas sim uma busca, a partir de uma perspectiva de esquerda, pelo novo e pelo estranho, pelo inesperado e pelo subversivo.
Hoje, em larga medida, nossos cânones, estilos e gêneros literários mais caretas ainda são aqueles da Antiguidade greco-romana, como foram “recuperados” pelos homens renascentistas que tentavam superar as “trevas” dessa “idade média” que acabavam de inventar.
Por isso, quando nossas vanguardas literárias mais experimentais decidem atacar toda essa caretice institucional, onde mais buscar inspiração que não nessa Idade Média tão rejeitada, tão escondida, tão surpreendente?
Paradoxalmente, portanto, e essa é a premissa no cerne do nosso curso, a literatura medieval hoje é mais subversiva, experimental e, por que não?, inovadora do que as literatura antiga ou moderna, realista ou modernista.
Guerra e paz e Os miseráveis, A montanha mágica e Os maias, Vidas secas e O estrangeiro, Dom Quixote e Dom Casmurro são maravilhosos (amo todos de paixão mesmo!), mas também são diferentes variações do mesmo molde novelesco realista.
Já Cantar do meu Cid não tem nada a ver com nossa ideia de uma poesia épica medieval. Abelardo e Heloísa, Tristão e Isolda, um casal real e outro ficcional, também não correspondem às nossas ideias de como seriam os casos de amor medievais. As sagas islandesas tem o vigor e a frescura da literatura contemporânea. François Villon, bandido e assassino, poderia ser um poeta trash em qualquer grande cidade atual. Tomás de Aquino, concordando ou não com suas premissas, é um verdadeiro professor de como pensar e desenvolver um argumento logicamente. Marco Polo era um mercador prático que descreveu suas viagens como um guia sóbrio para futuros homens de negócios. Alcassino e Nicoleta é único ao ponto de ser um gênero literário composto de uma só obra. As cantigas de amigo que aprendemos na escola são muito mais complexas e picantes do que nos ensinaram. Petrarca só parece lugar-comum porque inventou nosso conceito de “Eu” e passou 700 anos sendo imitado à exaustão. O Orlando Furioso talvez seja o clássico canônico mais puramente divertido de todos. Por fim, até hoje, não existe nada na literatura parecido à Celestina. (O Cid, o Orlando, a Celestina estão entre minhas obras preferidas da vida e quero muito compartilhá-las com vocês.)
Então, se te perguntarem por que está fazendo um curso de literatura medieval (!) em pleno 2024 (!!), responda:
“Pra ler uma literatura tão radicalmente nova que eu nem imaginava que pudesse existir (!!!) e que eu nunca teria encontrado por conta própria sem esse curso.” (!!!!)