"Não quer matar, não mata!": alguns comentários sobre o aborto
Como entender essas pessoas?
Essa semana, nós, a sociedade progressista conseguimos nos mobilizar ao ponto de fazer o congresso rever a PL do Aborto. Não foi o Lula, não foi o governo, não foi o PT: fomos nós, aqui, fazendo a grita e deixando claro o quanto essa PL era intolerável.
Enfim, foi uma pequena vitória, mas foi uma vitória, e merecemos celebrar. Amanhã, a luta continua.
Abaixo, alguns comentários dispersos. O tema é polêmico, sintam-se à vontade para responder por email ou comentário.
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“Não quer matar, não mata!”
Nosso slogan “não quer abortar, não aborta!” é terrível. Na melhor das hipóteses, é burro. Na pior, desonesto. Quase sempre, ambos.
Porque se a outra pessoa é contra o aborto por considerar que aborto é homicidio, então retrucar “Ué, se vc é contra homicidio, basta não matar ninguém” não só não responde à questão ética, importante, de vida ou morte que a outra pessoa está trazendo e que está lhe angustiando, como também invisibiliza completamente essa questão que não é, ou não deveria ser, nem fácil e simplista.
Qualquer discussão inteligente sobre o aborto precisa passar pela questão de onde começa a vida e, portanto, onde começa a possibilidade de extinguir essa vida.
Então, responder “não quer matar, não mata” é ou burro (você não percebeu que a outra pessoa está fazendo um argumento completamente diferente) ou desonesto (você fingiu não entender o que a pessoa está dizendo e escolheu responder outra coisa radicalmente diferente.)
De qualquer modo, não ajuda, não melhora, não resolve. Mais importante, não convence a outra pessoa, porque ela não se sente ouvida (não foi mesmo) e, por isso, só finca o pé ainda mais na sua posição anti-abortista.
Para convencer qualquer pessoa de qualquer coisa, ela precisa antes se sentir ouvida e levada a sério em suas preocupações. Sem isso, o diálogo nem começa. Esse slogan “não quer abortar não aborta” mata o diálogo na raiz e garante que nada vai mudar.
Talvez mais importante, às vezes as pessoas não querem e não estão dispostas a serem convencidas, e tudo bem também. É por isso que temos contagem de votos: porque sabemos que nenhuma posição nunca será unânime e que não dá pra convencer todo mundo de nada.
Por fim, para quem é a favor da descriminalização do aborto (como eu!), um lembrete duro. Estamos em minoria. Se o tema for a voto em plebiscito hoje, a gente perde. De lavada. Se o Congresso é contra a descriminalização do aborto, é porque o Congresso, para bem ou para mal, representa a sociedade como ela é hoje.
Então, não adianta ficar gritando slogans vazios na cara das pessoas que estão na maioria anti-aborto: essas pessoas precisam ser ouvidas, acolhidas, convencidas. Senão, não tem jeito.
Porque esse jogo a gente hoje não ganha no voto e, no grito, não vamos ganhar nunca.
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Vamos parar de chamar “abandona paterno” de “aborto masculino”?
Outra comparação para se parar de fazer. Abandono parental não é aborto. Porque abandono parental é infinitamente mais sério que aborto.
Quando o pai “aborta”, ele está abandonando uma pessoa de verdade, uma cidadã com CPF e direitos humanos.
Quando a mãe aborta, ela está interrompendo uma gravidez. Não existe nenhuma vítima com CPF, cidadania ou direitos humanos.
Não dá para comparar ambas as coisas como se fossem equivalentes. A primeira é crime em qualquer lugar do mundo. A segunda é epermitida em todos os países mais ricos.
Algumas pessoas dizem:
“Ah, chamamos ‘abandono’ de ‘aborto’ para chamar atenção para a gravidade dessa prática!”
Mas, gente, de novo, abandono é muito pior e mais sério que aborto. Vamos parar de diminuir o peso do abandono chamando de aborto.
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Como entender essas militantes antiaborto?
Tenho ouvido muito:
“Meu Deus, não consigo entender como podem essas pessoas sinceramente acharem que a pena por aborto deve ser maior do que por estupro. Como pode um negócio desses?! Deve ser má-fé! Ninguém pode realmente achar isso! etc”
Esse comentário me deixa triste, pois revela falta de inteligência, falta de imaginação, falta de generosidade.
Porque não tem nada de difícil de entender nas pessoas de direita antiaborto.
Se a pessoa sinceramente acredita que aborto é o assassinato de um incapaz....
Então, por consequência lógica e quase necessária, ela provavelmente também acredita que:
Por pior que seja o fato da mãe ter sido estuprada (e, sim, todo mundo acha que esse é um crime hediondo), é ainda pior o cenário onde, além desse crime hediondo, se cometam dois crimes hediondos, e o outro ainda pior: assassinato de incapaz. (Por óbvio, o cenário 1, Só Estupro, é menos pior que o cenário 2, Estupro + Homicídio.)
Porque o homicídio tende a ser considerado um crime mais grave do que estupro, a pena para o crime mais grave teria que naturalmente ser maior do que a pena para o crime menos grave, ainda mais com o agravante de ser um homicídio de um incapaz cometido pela pessoa que teria a obrigação de protegê-lo.
Reparem que entender não é concordar. Não precisamos concordar com esse raciocínio. Mas, sabendo que essas pessoas partem da premissa que “aborto é assassinato”, então, realmente, todo o resto é bem fácil de entender.
Por isso, a grande questão filosófica no cerne do debate é justamente onde começa a vida, e, por consequência, onde começa a possibilidade de homicídio.
Repetindo de novo e quantas vezes for necessário: entender não é concordar, justificar, perdoar, autorizar, defender, passar mão na cabeça, bater palma, etc etc.
Entender é literalmente só entender mesmo. A gente entende as coisas porque temos cérebros capazes de raciocínio. Entender não nos obriga a nada. Entender um argumento não nos obriga a concordar. Entender as razões de um criminoso não nos obriga a absolvê-lo.
Qualquer uma dessas grandes questões polêmicas que achamos simples nunca realmente são. Nós é que provavelmente estamos entendendo errado.
Além de falta de generosidade, é falta de imaginação da nossa parte achar que todo mundo está sempre mentindo.
Porque achar isso, fundamentalmente, é negar a riqueza de opiniões e percepções da humanidade.
É muito mais rico, e até mais assustador, encarar de frente o fato de que muitas pessoas sinceramente tem opiniões muito muito diferentes das nossas.
Se a gente diminui o outro... quem sai diminuído somos nós. Se a gente não vê a humanidade do outro... quem sai desumanizado somos nós.
Até para brigar com outra pessoa precisamos reconhecer nela a mesma humanidade que reconhecemos em nós mesmas.
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Dar biscoito é certo ou errado?
As pessoas falam em “dar biscoito” como se fosse uma coisa ruim, mas qualquer pessoa que tem cachorro sabe que dar biscoito é literalmente a única maneira de treinar um animal para fazer o que você quer. Ele se comportou bem? Dá biscoito. Ele vai se comportar bem mais vezes.
Um exemplo recente, de mil outros possíveis. Muitas mulheres postaram coisas como “não estou vendo nenhum homem se manifestando contra a PL do Aborto!”
Mas, na maioria desses casos, eu e essas mulheres seguíamos vários homens em comum e eu sabia que muitos deles estavam se manifestando contra a PL do Aborto sim.
Aliás, praticamente todo homem q eu sigo se manifestou contra... porque os que não se manifestariam eu já deixei de seguir anos atrás. A gente segue quem a gente quer!
E, vejam, é verdade, homem é uma merda, tem que criticar sim. Etc. Vocês sabem que o que mais faço aqui é criticar omi.
Mas, digo e repito, como alguém que treina cachorros há 40 anos: muito mais importante do que criticar o comportamento errado (algo que quase sempre não funciona) é recompensar o comportamento correto.
Se tem alguém fazendo o que você acha que deve ser feito, qualquer coisa que seja, mesmo se não for mais que a obrigação, vá lá, reconheça, dê um biscoito. Não pra ser boazinha, mas bem maquiavelicamente porque você quer ver esse bom comportamento mais vezes.
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O que O inimigo do povo, de Ibsen, tem a ver com as enchentes no sul do Brasil e com o Katrina?
Todo mês, dou uma aula de literatura contemporânea para as minhas mecenas. Em junho, o livro em si não é contemporâneo, mas o tema sim: vamos ler a peça clássica de Ibsen O inimigo do povo à luz da catástrofe climática que se abateu sobre o Sul do Brasil.
Além de valer a pena só a oportunidade de ler e conversar sobre uma das melhores peças de todos os tempos, o mais interessante é trazermos as questões levantadas pelo texto para a nossa vida contemporânea.
Afinal, de que maneira a grande literatura do passado nos ajuda a entender melhor os dilemas do presente?
Além disso, de bônus, vou contar com todos os detalhes sobre a minha experiência de refugiado climático durante o furacão Katrina, em 2005. (A história toda está aqui.)
As aulas são exclusivas para mecenas, mas é super fácil ser mecenas: basta fazer uma contribuição no meu Apoia-se.
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados no último ano:
Felicidade (em breve)
Empatia (em breve)
Bom texto amigo. Precisamos ser mais consistentes até para pautar a questão.
Mto bom seu texto. Não concordo com muitas coisas, mas seu ponto de vista foi honesto num mar de absurdos ditos. Eu sou a favor tb, mas como já passei por um, sei que não é simples como os progressistas colocam tb. Então sou a favor mas com ressalvas. A pessoa que aborta tem que ter plena ciência de exatamente como é o procedimento e os efeitos emocionais que ela terá. Ainda que for menor de idade. O apoio e educação emocional a respeito dos efeitos pós aborto são uma discussão muito mais importante do que a descriminalização. E não vejo absolutamente NINGUÉM falando disso. A criança que aborta carregara marcas físicas, emocionais e até espirituais pro resto da
Vida, talvez até mais fortes do que se tivesse mantido a gravidez e dado para adoção. A vida dela já foi estragada. E falar disso no meu ver é muito mais importante. Eu saí da sala de cirurgia dopada e gritando que tinha matado um bebê, e olha que meu caso foi uma perda gestacional simples. O processo todo é MTO PESADO. Claro que é mais complexo do que isso, mas se houvesse uma educação real do que acontece exatamente durante e pós aborto, a discussão seria muito mais rica do que simplesmente pode ou não pode. Enfim, um tema muito delicado e seu texto foi o primeiro lúcido que li. ❤️