A voz do outro na obra de Ondjaki
Depois de explorar a subalternidade das crianças, Ondjaki mergulha agora no universo feminino
Em nova experimentação estilística, Ondjaki aposta em contos elípticos e femininos.
(A Quatro Cinco Um acabou de publicar uma resenha minha do novo livro de conto do autor angolano Ondjaki. Como o espaço na revista é reduzido, o texto saiu editado. Aqui, abaixo, vai o texto completo. Posso pedir um favor? Vão lá no texto da Quatro Cinco Um, e comentem, compartilhem, retuítem? Muito, muito obrigado. Minha aula avulsa de abril de 2024 será sobre Ondjaki: confira toda a programação aqui. Clicando nos links de livros e comprando qualquer coisa na Amazon BR, eu ganho uma comissão e te agradeço por apoiar meu trabalho.)
Infância
Ondjaki, nascido em 1977, surge na cena literária falando de infância. Em 2000, aos 23 anos, publica o romance Bom dia, Camaradas, sobre as vidas de um grupo de crianças angolanas da sua geração: nascidas logo após a independência (1975) e crescendo durante a guerra civil (1975-2002), educadas por professores cubanos, enfrentando o racionamento de comida e assistindo paradas militares do governo socialista.
O brilhantismo do livro está no comedimento narrativo de Ondjaki: suas crianças não são profundas nem super-dotadas, nem sábias nem prescientes. São crianças, falam como crianças e têm preocupações de criança. Cabe a nós, pessoas leitoras adultas, captar nas entrelinhas tudo o que elas não conseguiam captar naquela época: Angola foi um dos campos de batalhas mais quentes da triste Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética.
Mais tarde, nos contos de Os da minha rua (2007), o Autor volta à mesma época e aos mesmos personagens. Enquanto isso, publicava também poesia, teatro, infanto-juvenil e já começava a colecionar prêmios – sua obra infantil lhe rendeu, só no Brasil, um Jabuti e três FNLIJ.
Pseudônimo
Sempre que publica um livro novo, as matérias jornalísticas destacam que Ondjaki é um pseudônimo e informam seu “nome real”. Mas, em entrevista à revista manauara Contracorrente, em 2017, ele confidenciou:
“Dizem que Ondjaki quer dizer guerreiro, em Umbundo, mas já ouvi tantas versões, que prefiro acreditar que quer dizer várias coisas. Vou me servir dos variados significados ao longo da vida. O meu verdadeiro nome, deixo-o reservado à família e aos amigos. Começar a ser Ondjaki fez-me bem, foi-me libertando para esse eu de escritor. O nome de verdade, mesmo, dentro de mim, agora é um refúgio.”
Então, nessa resenha, Ondjaki é Ondjaki.
Consagração
Em 2012, quando alguns críticos já começavam a especular que Ondjaki só sabia escrever sobre e para crianças, ele publica o que muitos consideram sua obra-prima, Os transparentes.
Parcialmente escrito no Rio de Janeiro, onde morou entre 2008 e 2016, esse romance é uma carta de amor para Luanda. Em um único prédio do centro da cidade, Ondjaki compõe um vasto painel com todo tipo de personagem daquela Angola desiludida com as promessas do socialismo, do petróleo e até da paz.
O romance tem a vastidão de um Tolstoi em um cenário de Perec, embalado pela inventividade de um português literário que é caudatário de José Saramago e Lobo Antunes, herdeiro de Mia Couto e Guimarães Rosa. Os transparentes é a culminação e o aperfeiçoamento de décadas de experimentos lingüísticos dos maiores mestres da literatura lusófona de ambos os lados do Atlântico.
No ano seguinte, o romance ganhou merecidamente o Prêmio José Saramago e, em 2016, o Prix Littérature-Monde, na França.
Experimentação
Rubem Fonseca escreveu cinco livros sensacionais nas décadas de 1960 e 1970, mudou a literatura brasileira para sempre e, depois, passou as quatro décadas seguintes comodamente se autoplagiando. Ondjaki, uma vez estabelecido como um dos maiores autores vivos tanto da África quanto da língua portuguesa antes de fazer quarenta anos, poderia ter seguido o mesmo caminho.
Mas decidiu experimentar: estudou em Lisboa e nos Estados Unidos, fez doutorado na Itália, produziu documentários e dirigiu curtas, abriu uma editora e deu oficinas literárias.
Seu novo livro de contos, Vou mudar a cozinha, que sai agora no Brasil pela carioca Pallas, é mais uma aposta inovadora e arriscada de um jovem mestre que escolheu explorar as descobrir as possibilidades e os limites de sua arte.
Inovação
Se antes Luanda era seu cenário principal, agora Ondjaki parece querer ganhar o mundo: os contos se passam não só em Angola, mas no Brasil, na Sérvia, na China.
O estilo também mudou: se antes era singelo e direto nos livros da infância, ou fragmentário e experimental em Os transparentes, agora é elíptico e sinestésico, com enredos comprimidos ao máximo, reminiscente das melhores narrativas bíblicas ou kafkianas.
Os seis contos desse livrinho de meras 78 páginas são densas parábolas a serem decodificadas.
Alteridade
Em suas obras da infância, Ondjaki está sempre tentando canalizar o olhar de uma criança, que enxerga a realidade de um ponto de vista difuso, distante e, sobretudo, impotente e subalterno. Mesmo a criança mais privilegiada, como parece ser o narrador de Bom dia, Camaradas e Os da minha rua, efetivamente se limita a observar um mundo em larga medida fora do seu controle.
Mas criança Ondjaki um dia foi.
Em Vou mudar a cozinha, ele dá um passo além em busca dessa alteridade radical e incorpora a subalternidade do olhar feminino em um mundo misógino. Todos os contos são centrados em mulheres – solitárias ou abandonadas, surradas ou vingativas, saudosas ou excêntricas – e co-estrelados por animais: moscas e galinhas, vacas e pássaros, pandas e camelos.
Símbolos
As narrativas são tão abertas que é difícil escrever sobre elas sem impor uma interpretação à pessoa leitora – que merece a chance de chegar nelas com olhos limpos.
No primeiro conto, por exemplo, “A mosca e o ladrão”, uma mulher está dormindo em um mosquiteiro vermelho, vê uma mosca dançando na janela e sua casa é invadida por um ladrão. Tudo é claramente simbólico, mas símbolo do quê? A mosca é o agora? A impermanência? Seria o ladrão o tempo, que rouba nossas lembranças, as pessoas que amamos e o controle que fingimos ter sobre a vida? A leitora que o diga.
Mas, para isso, é necessário pegar na mão do autor, mergulhar em suas descrições sinestésicas, preencher as lacunas do seu estilo elíptico e acompanha-lo nessa viagem de alteridade radical para dentro de cada Outro que ele nos apresenta.
Cozinha
O ponto alto do livro é o último conto, “Vou mudar a cozinha”, também um curta-metragem escrito e dirigido por Ondjaki. Em meio à guerra de Angola, uma mulher reflete sozinha em sua casa, cigarro apagado na boca, hesitando entrar em sua própria cozinha, destruída pelo marido.
Na mente, ecoam os conselhos absurdos e conformistas do pai:
“Deves ter paciência com o seu marido”.
No corpo, sente as saudades do homem que já não está:
“Ainda dividias cigarros e momentos comigo. Voavas outros aviões que não esses de bombardear pessoas. Ainda a nossa relação estava longe da guerra, dos gritos, das bombas. A nossa cozinha, com as madeiras que poliste, todas as noites adormecia intacta.”
Entre homens condescendentes e raivosos, em meio a uma guerra longa e cruenta, Ondjaki habita, dá voz, canaliza toda a dor das mulheres forçadas à domesticidade, à impotência, à solidão.
Conclusão
Talvez não tão brilhante quanto suas obras-primas Bom dia, Camaradas e Os transparentes, Vou mudar a cozinha é um excelente livro de um dos maiores artistas escrevendo em língua portuguesa hoje. Sempre vale a pena acompanhar os percursos de experimentação de um grande escritor no auge da sua forma.
* * *
Seja Mecenas
Se meus textos tiveram impacto em você, se minhas palavras te ajudaram em momentos difíceis, se usa meus argumentos para ganhar discussões, se minhas ideias adicionaram valor à sua vida, por favor, considere fazer uma contribuição do tamanho desse valor.
Assim, você estará me dando a possibilidade de criar novos textos, produzir novos argumentos, inventar novas ideias.
* * *
Grande Conversa Medieval: quando as línguas eram jovens e tudo estava em aberto
Meu curso para 2024 será a Grande Conversa Medieval. Somente para mecenas. :)
Um vídeo apresentando o curso
Curso em resumo
Curso de literatura e história, com foco na experiência estética de alteridade radical dos textos medievais, como também nas continuidades e rupturas históricas e literárias com a cultura contemporânea. // Leituras não obrigatórias. 24 aulas, 2h cada, última quarta-feira do mês às 19h, de janeiro de 2024 a dezembro de 2025. Encontros e aulas ao vivo via Zoom; aulas gravadas via Facebook; grupo de discussão no Whatsapp. // R$88 mensais, no Apoia-se, por todos os meus cursos. (Recomendo fortemente o Apoia-se, pois dá direito a muitas outras recompensas.) Compre agora.
* * *
Grande Conversa Medieval
O curso Grande Conversa Medieval não é apenas para pessoas interessadas em história e cultura medieval, mas para qualquer leitora apaixonada por literatura. Os objetivos mais óbvios do curso são dois:
— Apresentar às pessoas alunas algumas das autoras e obras, conceitos e fatos, mais conhecidos da Idade Média, aquelas que talvez já tenham até ouvido falar mas não saibam bem quem são, de Tristão e Isolda a Abelardo e Heloisa, das Cruzadas ao Graal, de Marco Polo ao Rei Arthur, das Mil e uma noites ao Orlando Furioso, de Chaucer a Petrarca;
— Suprir uma lacuna nas histórias literárias que sempre tratam esse período como um grande buraco escuro entre a Antiguidade e o Renascimento. Como me perguntou uma aluna, “Por que tem tão poucas obras-primas literárias na Idade Média?” Pois o curso é para mostrar que tem muitas.
Mas existe um terceiro objetivo, talvez surpreendente e bem mais importante, que será o nosso foco principal.
A Idade Média europeia foi um dos períodos mais ricos em inventividade linguística e criatividade literária da história do mundo. Quando o latim já estava engessado pela idade e pela obsolescência, e as línguas modernas ainda não estavam engessadas pelas gramáticas e pelas convenções, houve um mágico intervalo de tempo onde todas as possibilidades estavam em aberto, tudo ainda era possível, qualquer experimento literário parecia factível.
Por isso, o grande objetivo do curso será não uma busca pela tradição ou pela essência do Ocidente, como tantas pessoas conservadoras idealizam na Idade Média (Deus me livre, que curso chato seria esse!), mas sim uma busca, a partir de uma perspectiva de esquerda, pelo novo e pelo estranho, pelo inesperado e pelo subversivo.
Hoje, em larga medida, nossos cânones, estilos e gêneros literários mais caretas ainda são aqueles da Antiguidade greco-romana, como foram “recuperados” pelos homens renascentistas que tentavam superar as “trevas” dessa “idade média” que acabavam de inventar.
Por isso, quando nossas vanguardas literárias mais experimentais decidem atacar toda essa caretice institucional, onde mais buscar inspiração que não nessa Idade Média tão rejeitada, tão escondida, tão surpreendente?
Paradoxalmente, portanto, e essa é a premissa no cerne do nosso curso, a literatura medieval hoje é mais subversiva, experimental e, por que não?, inovadora do que as literatura antiga ou moderna, realista ou modernista.
Guerra e paz e Os miseráveis, A montanha mágica e Os maias, Vidas secas e O estrangeiro, Dom Quixote e Dom Casmurro são maravilhosos (amo todos de paixão mesmo!), mas também são diferentes variações do mesmo molde novelesco realista.
Já Cantar do meu Cid não tem nada a ver com nossa ideia de uma poesia épica medieval. Abelardo e Heloísa, Tristão e Isolda, um casal real e outro ficcional, também não correspondem às nossas ideias de como seriam os casos de amor medievais. As sagas islandesas tem o vigor e a frescura da literatura contemporânea. François Villon, bandido e assassino, poderia ser um poeta trash em qualquer grande cidade atual. Tomás de Aquino, concordando ou não com suas premissas, é um verdadeiro professor de como pensar e desenvolver um argumento logicamente. Marco Polo era um mercador prático que descreveu suas viagens como um guia sóbrio para futuros homens de negócios. Alcassino e Nicoleta é único ao ponto de ser um gênero literário composto de uma só obra. As cantigas de amigo que aprendemos na escola são muito mais complexas e picantes do que nos ensinaram. Petrarca só parece lugar-comum porque inventou nosso conceito de “Eu” e passou 700 anos sendo imitado à exaustão. O Orlando Furioso talvez seja o clássico canônico mais puramente divertido de todos. Por fim, até hoje, não existe nada na literatura parecido à Celestina. (O Cid, o Orlando, a Celestina estão entre minhas obras preferidas da vida e quero muito compartilhá-las com vocês.)
Então, se te perguntarem por que está fazendo um curso de literatura medieval (!) em pleno 2024 (!!), responda:
“Pra ler uma literatura tão radicalmente nova que eu nem imaginava que pudesse existir (!!!) e que eu nunca teria encontrado por conta própria sem esse curso.” (!!!!)
Os Transparentes está entre as melhores obras que li recentemente. Texto e escrita maravilhosos.