'A Morte É Meu Ofício', livro dos anos 1950, ousa dar voz a oficial nazista, resenha na FSP
Romance de Robert Merle joga ao leitor o ônus de fazer todo o contraponto por conta própria
Uma das grandes alegrias da literatura contemporânea é a possibilidade de termos acesso a vozes que antes não ouvíamos, de penetrarmos na consciência de outras pessoas, de entendermos quem são, o que querem, como se definem.
Mas existirá um limite para essa empatia? Será que tudo entender não traz o risco de tudo perdoar? Afinal, sabemos o quão facilmente um mesmo documentário sobre a natureza, dependendo de sutis escolhas de edição e narração, pode nos fazer torcer pela leoa e não pela gazela.
Então, dar voz, sim, mas para quem?
(A Folha de São Paulo acabou de publicar uma nova resenha minha. Como o espaço em jornal é reduzidíssimo, saiu apenas uma versão pequena do texto original. Aqui, abaixo, vai o texto completo, com todas as nuances. Posso pedir um favor? Vão lá no texto da Folha, e comentem, compartilhem, retuítem? Muito, muito obrigado. E, se gostou mesmo, tem uma aula minha, no YouTube, desenvolvendo ainda mais essas questões. Me ajuda a divulgar?)
Lolita (1955), de Vladimir Nabokov, é narrado por um pedófilo assassino e mentiroso. Apesar de denunciar essa pedofilia e de apresentá-la na pior luz possível, o romance ainda é consistentemente acusado de normalizar a prática. Hoje, o discurso pedófilo está cada vez mais normalizado: a palavra mais buscada nos sites de pornografia é “novinha”. Deveríamos ter “dado voz” a Humbert Humbert?
O estrangeiro (1942), de Albert Camus, também é narrado por um assassino, ainda mais manipulador. Ninguém fecha Lolita defendendo Humbert Humbert, mas muitos fecham O estrangeiro defendendo Mersault. Sabemos que Mersault é culpado e, mesmo assim, seduzidos por sua voz apática, quase sempre terminamos o romance do seu lado. Deveríamos ter “dado voz” a Mersault?
Tropa de elite (2007), de José Padilha, é narrado por um policial assassino, desequilibrado e drogado. Apesar de o filme mostrá-lo torturando pessoas e batendo na esposa, uma parcela grande do público saiu dos cinemas considerando-0 um herói. Deveríamos ter “dado voz” ao Capitão Nascimento?
Por fim, no Brasil de hoje, a mídia “deu voz” a políticos extremistas que pareciam piadas inócuas, mas cujos impropérios geravam engajamento, e nós, do público, “demos voz” a seus absurdos para mostrar a todos como eram palhaços. De repente, para nossa surpresa, um deputado folclórico que há décadas se elegia com algumas dezenas de milhares de votos se transformou em um presidente eleito com cinquenta milhões. Deveríamos ter “dado voz” a Bolsonaro?
São essas as principais questões trazidas por A morte é meu ofício, romance do escritor francês Robert Merle que sai agora no Brasil pela Editora Vestígio. Ele lutou na Segunda Guerra, esteve na retirada de Dunkirk, não conseguiu pegar seu navio e foi prisioneiro dos alemães por três anos. Seu primeiro romance, de 1949, foi sobre Dunkirk, narrado do ponto de vista dos soldados franceses e, neste segundo, de 1952, ele opta por dar voz aos seus inimigos. O narrador é Rudolf Lang, comandante do campo de concentração de Auschwitz, que conta a história de sua vida desde a infância sob o jugo de um pai carola até o julgamento em Nuremberg. Merle nos propõe um perigoso mergulho de empatia radical na mente de um nazista da SS. Quem é essa pessoa? O que a levou a essa posição? Como justifica para si mesma suas escolhas?
O documentário Shoah (1985), de Claude Lanzmann, uma das maiores obras-primas do século XX, também se arrisca a dar voz aos oficiais nazistas, mas sempre lado a lado às vítimas e aos observadores passivos, de modo que um discurso se contrapõe ao outro. Em A morte é meu ofício, o risco é maior, pois só o narrador Rudolf Lang fala, jogando ao leitor o ônus de fazer todo o contraponto por conta própria. Caso se distraia, pode ser seduzido e acabar concordando com ele, como tantos concordaram com o assassino Mersault.
Será que ao dar voz a um narrador tão detestável, o romance não corre o risco de criar novos Capitães Nascimento? Afinal, na França de 1952, recém-liberada do domínio nazista, em uma Europa ainda chocada pelos horrores dos campos de concentração, o absurdo do nazismo era uma unanimidade. Hoje em dia, setenta anos depois, os subterrâneos da internet fervilham de jovens neonazis e até o então secretário de cultura do Brasil faz vídeos oficiais de inspiração claramente nazista. Devemos “dar voz” a um comandante da SS que pode seduzir e convencer essas pessoas ou, no mínimo, lhes presentear com argumentos e justificativas?
Pois o toque de gênio de A morte é meu ofício é justamente, em suas páginas finais, puxar o tapete do narrador-protagonista de uma maneira que Tropa de elite e O estrangeiro jamais ousaram. Quando Rudolf Lang descobre que Himmler, seu superior imediato e quem havia lhe encarregado pessoalmente da Solução Final, havia cometido suicídio sob custódia dos Aliados, fica furioso com essa traição:
“[Himmler] me traiu. Ele deu ordens terríveis e, agora, deixa-nos sós para enfrentar o vexame. Em vez de dizer ‘Sou o único responsável’, veja o que ele fez! Ele se esquivou! Ele que eu respeitava como a um pai!”
Mais tarde, já durante seu julgamento, o promotor pergunta a Lang se ainda estava convencido que era necessário exterminar os judeus e ele responde que não. “Por quê?” pergunta o promotor. A resposta:
“Porque Himmler suicidou-se. Isso prova que não era um verdadeiro líder e, se não era um verdadeiro líder, poderia perfeitamente ter mentido ao apresentar o extermínio dos judeus como uma medida necessária.”
O extermínio talvez tenha sido um erro, acrescenta, mas, nesse caso, seria culpa de quem ordenou, jamais dele, que somente executou.
O que Lang buscava, desde criança, era um líder que lhe permitisse abdicar da responsabilidade por suas próprias decisões. O que o líder ordenasse, por ser o líder, era automaticamente correto e deveria ser obedecido. Nesse universo moral, o único crime possível era obedecer a ordem de um falso líder. Daí o suicídio indigno de Himmler ter roubado Lang de todas as suas certezas.
É nesse momento que o romance também aponta o dedo para o leitor. A indignação de Lang ao perceber que comprou acriticamente a narrativa de Himmler é o último alerta para que o leitor perceba que não pode fazer o mesmo com a narrativa de Lang. Essa é a chave de leitura que impede até o leitor mais passivo de ceder a Lang como tantos cederam a Mersault e a Nascimento.
A lição desse grande romance que ousa dar voz a um nazista é jamais terceirizarmos nosso sentido moral. Às vezes, o mito não é mito e sacrificamos nossa vida seguindo um bobo da corte.
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Devemos dar voz aos vilões?, uma aula
Todo mês, na última quarta-feira, dou uma aula avulsa sobre História e/ou Literatura. A aula de outubro de 2022, se chamou Devemos dar voz aos vilões? e foi sobre as questões levantadas por A morte é meu ofício.
As aulas avulsas são só para as mecenas dos planos ENCONTROS, CURSOS & MIDAS. (Para fazer parte, visite o meu Apoia-se.)
Mas, extraordinariamente, para dar um gostinho pra vocês, aqui vai a aula completa, abaixo, ou no YouTube:
Gostou? Vem pro meu Apoia-se. Não é fácil viver de literatura no Brasil e preciso de toda ajuda que puder conseguir. :) E te agradeço, muito, muito mesmo.
Um beijo do
Alex Castro