Em maio de 2021, eu li 19 livros, muitos deles absolutamente sensacionais. Em poucos outros meses lembro de ter lido tantos livros tão bons. O tema principal acabou sendo a Floresta Amazônica ou, expandido mais um pouco, a literatura e a selva. Abaixo, mais detalhes.
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Por puro prazer, li dois livros da minha poeta brasileira preferida, esquentando os tambores para os outros dois livros que ela vai lançar em junho (o mais recente e uma reedição do primeiro), que lerei com certeza. O livro das semelhanças é certamente um dos grandes livros brasileiros de poesia de todos os tempos.
1.88 O livro das semelhanças, de Ana Martins Marques, 2015, português.
2.89 Da arte das armadilhas, de Ana Martins Marques, 2011, português.
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Também por prazer, quatro livros de um poeta espanhol que eu não conhecia. Ele ganhou o Nobel de Literatura em 1956 e, três dias depois, perdeu a esposa. Ficou tão triste que não foi receber e viveu somente mais dois anos.
Foi interessante dar essa passada por sua obra toda. Percebi que só gostei mesmo de sua primeira fase, que inclui Platero y yo, sobre as aventuras do poeta com seu burrico (que livro lindo e singelo!) e os primeiros poemas da Antologia poética. Os outros dois simplesmente não me bateram. Platero y yo foi publicado no Brasil, em edição bilíngue.
3.90 Platero y yo, de Juan Ramón Jiménez, 1914, espanhol.
4.91 Antologia poética, de Juan Ramón Jiménez, c.1900-60, espanhol.
3.92 Diario de un poeta reciencasado, de Juan Ramón Jiménez, 1916, espanhol.
4.93 La realidade invisible, de Juan Ramón Jiménez, c.1920, espanhol.
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Também por prazer, mais leituras de poesia espanhola, especialmente sobre o personagem do El Cid. O primeiro é uma poesia épica medieval muito muito fraca. O segundo é uma peça de teatro do Siglo de Oro que pega o mesmo enredo da poesia épica e o transforma em literatura de altíssimo nível. Ambos são prequels do Cid, mostrando o herói em sua juventude — pois é, a moda de fazer isso não vem de hoje. O enredo de Guillén de Castro foi pouco depois largamente copiado pelo dramaturgo francês Corneille, em sua peça Le Cid, que fez um sucesso estrondoso na França e tornou o personagem famoso no mundo inteiro. O filme hollywoodiano da década de 1960, com Charlton Heston, basicamente é uma releitura dessas peças.
7.94 Las mocedades de Rodrigo, anônimo, c.séc.XIV, espanhol.
8.95 Las mocedades del Cid, de Guillén de Castro, 1618, espanhol.
9.96 Le Cid, de Pierre Corneille, 1637, francês. [Trad: Carlos R. de Dampierre, 1986; John Caincross, 1975.]
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Porque agora tenho uma colméia em casa, reli, com a esposa, As geórgicas, de Virgílio. (O quarto livro é sobre abelhas.) Esposa não achou nada de mais, eu continuo apaixonado.
10.97 As geórgicas, de Virgílio, 30aEC, latim. [Trad: Smith Palmer Bovie, livro/áudio, 1956.]
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Em meu curso A Grande Conversa Brasileira, o tema do mês foi o Sul e o Norte do Brasil. Abaixo, os livros que li para a aula:
11.98 O tempo e o vento, volume I: O continente, tomo 1, de Érico Veríssimo, 1949, português.
12.99 O tempo e o vento, volume I: O continente, tomo 2, de Érico Veríssimo, 1949, português.
Simplesmente sensacional. Novelão de primeira. Impossível parar de ler.
13.100 Poesia Completa, de Raul Bopp, c.1920-70, português.
Cobra Norato é certamente, disparado, de longe, a melhor obra literária a sair do nosso modernismo. E a nossa maior obra literária sobre a selva e sobre a Amazônia.
14.101 História da Amazônia: do período pré-colombiano aos desafios do século XXI, de Márcio Souza, 2019, português.
Não é bom, mas é um livro único em sua categoria.
15.102 Mad Maria, de Márcio Souza, 1980, português.
Já li uns seis romances do autor e esse aqui desbancou Galvez, Imperador do Acre da minha posição de favorito. Livraço. Talvez o grande romance brasileira da selva amazônica — apesar de ter tão poucos personagens brasileiros! Na verdade, é um romance amazônico… internacional, globalizado.
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Por fim, empolgado por Mad Maria, decidi ler outros dois romances sobre a selva amazônica que estavam na minha fila há anos:
16.103 La voragine, de José Eustasio Rivera, 1924, espanhol.
17.104 Paraíso Suspeito: a Voragem Amazônica, de Leopoldo M. Bernucci, 2017, português.
O romance é narrado por um poeta do altiplano (equivalente ao nosso Sudeste) que se mete numa confusão romântica com uma moça e acaba tendo que fugir com ela para a Amazônia. A verdade é que nem ele está tão apaixonado pela moça assim, nem ela por ele, mas sabe como é, aparências.
De repente, a moça some. Foi sequestrada por um outro homem? Foi com ele voluntariamente? O narrador sabe apenas que sua gigantesca vaidade está ferida e vai atrás da moça (que ele nem ama, que estava pensando abandonar!), se embrenhando cada vez em uma floresta amazônica que se mostra um verdadeiro cenário de pesadelo.
La voragine é famoso tanto pelo narrador não-confiável, por suas idas e vindas morais, e por seu progressivo enlouquecimento na selva, e também por ser uma das primeiras, e mais contundentes, denúncias da escravidão que ainda acontecia nos seringais da Amazônia profunda.
Escrito em 1924, o romance oscila entre o realismo de Dom Casmurro (especialmente pelo narrador não-confiável) e o naturalismo de O cortiço (pelas denúncias sociais brutas).
Talvez o elemento mais contemporâneo do romance seja a masculinidade claramente tóxica do narrador, completamente arreganhada e exposta em todos os seus medos e ciúmes, inseguranças e violências.
Tanto a primeira quanto a última frase são memoráveis. A primeira resume todo o narrador:
"Antes que me hubiera apasionado por mujer alguna, jugué mi corazón al azar y me lo ganó la Violencia."
E a última mostra a selva se fechando sobre os personagens:
"¡Los devoró la selva!"
Não é um romance pândego ou irrevente, como será depois Mad Maria, mas tem muito, muito em comum com ele. Em vários momentos, parece que Marcio Souza está dialogando com La voragine.
Faço uma outra comparação: sim, La voragine explora os mesmos temas e denuncia os mesmos males que Mad Maria mas, por sua falta de humor, por seu foco na jornada selva adentro, pela loucura progressiva do protagonista, eu diria que La voragine é o Coração nas trevas da Amazônia.
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18.105 El entenado, de Juan José Saer, 1983, espanhol.
Um marinheiro espanhol, nos princípios da Conquista, é capturado por uma sociedade originária no Rio da Prata e passa dez anos morando com eles. Finalmente, retorna à Espanha. O romance é composto por suas reminiscências sobre a maneira única como esse povo originário encarava a memória, a história, a vida. El entenado, que há décadas entra e sai da minha lista de dez romances preferidos, é tudo que um grande romance tem que ser: ao mesmo tempo em que é fortemente ancorado na especificidade de uma vida concreta em circunstâncias contingentes, ele também é ambicioso numa escala cósmica, existencial, filosófica.
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19.106 Los pasos perdidos, de Alejo Carpentier, 1953, espanhol.
Por fim, talvez El entenado saia da minha lista de dez romances preferidos para Los pasos perdidos entrar. Enquanto El entenado é um romance quase que abstrato na enormidade de suas questões, Los pasos perdidos é a história bem concreta de um pedante intelectual latino-americano, que fez carreira acadêmica em Nova Iorque, e que, num momento de caos pessoal, aceita uma incumbência de viajar ao interior da Amazônia para buscar instrumentos musicais indígenas.
Essa viagem acaba sendo uma jornada da América Latina em busca de si mesma, uma jornada através das mil metamorfoses que a cultura ocidental sofreu ao tomar contato com nosso continente, nossa gente, nossa selva. É absolutamente brilhante, barroco, fortíssimo.
Se eu tivesse lido a tempo, com certeza teria sido uma das leituras do meu curso anterior, Introdução à Grande Conversa: Um passeio pela história do ocidente através da literatura. Poucos livros representam tão bem os dilemas, as dores, as potencialidades dessa relação entre a América Latina e a herança ocidental.
(Não se assustem pela gigantesca quantidade de referências literárias e acadêmicas: elas são ricas, claro, mas também estão lá para ironizar o pedantismo do narrador.)
Carpentier é um dos grandes autores cubanos de todos os tempos. Dele, também recomendo O século das luzes, sobre a Revolução Francesa no Caribe.
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Um lembrete
Meu curso A Grande Conversa Brasileira continua com inscrições abertas. Entrando agora, você assiste as três primeiras aulas na gravação e as sete seguintes ao vivo. A próxima aula, no dia 1º de julho, será sobre Machado de Assis, Cora Coralina e Helena Morley.
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Pedido para leitoras em Portugal ou Espanha
Se tenho algumas pessoas leitoras espanholas, ou que estejam na Espanha, ou que tenham conta na Amazon Espanha, e caso queiram retribuir tudo o que meus textos já fizeram por elas depositando alguns euros de presente em meu cheque-regalo, eu não poderia ser mais grato.
Basta ir na URL amazon.es/cheques-regalo e depositar o valor que você quiser e puder no cheque-regalo de lll.alexcastro@gmail.com.
E saiba que você estará retribuindo, com muito troco e muita sobra, todo o bem que eu possa lhe ter feito. :)
Disclaimer da lista de leituras
Todo mês, desde 1996, faço uma lista das minhas leituras.
Leio porque é bom, porque é gostoso, porque é divertido. Leio sem obrigação, sem ordem, sem pressa. Leio com a liberdade de começar e de largar, de ler rápido ou de ler depressa, de pular de assunto em assunto, de autora em autora. Leio porque é o meu maior prazer na vida.
Faço a lista, mas nem sempre compartilho. Em primeiro lugar, porque imagino que não interesse a quase ninguém. (Se te interessa, me conta?) Em segundo, mais importante, porque fazer listas de livros reforça uma ideia que considero problemática: que “ler é bom”, que todas deveríamos “ler mais”, que ler é uma atividade intrinsecamente melhor do que correr na praia ou montar quebra-cabeças, etc.
Mas ler um livro não é mérito, não é vantagem alguma, não é algo para se gabar. Mais importante, simplesmente ter lido um livro não significa que a pessoa leitora o entendeu, que tirou dele qualquer coisa de relevante, bela, prazerosa ou útil.
Listar os livros que li faz tanto sentido quando listar os vagões de metrô que viajei. (Aliás, quase sempre, o 1022 e o 1026, que operam na linha um e são os últimos vagões de suas composições.) E daí, não?
Apesar disso, incrivelmente, como sou escritor e trabalho com livros, as pessoas pedem e perguntam.
Na verdade, as listas também me ajudam: me pego frequentemente consultando listas antigas para saber qual livro estava lendo em qual época, qual leitura fiz antes da outra, o que achei, etc.
Então, apesar do efeito negativo de divulgar listas assim, esses foram os livros que li em maio de 2021.
Último aviso: todos os links de livros direcionam para a Amazon BR. Se você clicar nos links e comprar qualquer coisa por lá (não precisa ser necessariamente o livro em que clicou), eu ganho uma comissão e você ajuda a me recompensar por esse e outros textos que curtiu. E te agradeço.
Convenções da lista de leituras
Posição no mês. Posição no ano. Título, autor, data da escritura, idioma original. [Organizador/tradutor, data da organização e/ou tradução, editora.]
Quando são dadas várias traduções de uma mesma obra, a primeira foi a principal e as demais usadas para cotejo.
Considero um livro “lido” e acrescento nessa lista quando li o suficiente sobre ele para sentir que posso escrever sobre ele sem estar blefando: o critério é subjetivo e varia de obra a obra.
Esse mês, por exemplo, existem muitas seletas e antologias de poesia. Algumas foram lidas de cabo a rabo, outras não: incluo na lista quando li não apenas o aparato crítico mas também uma quantidade que considero suficiente das principais poesias, textos, verbetes.
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Um grande beijo,
Alex