A dimensão moral da sorte
Merecemos nossos privilégios? Faz sentido falar em meritocracia? (Reflexões sobre a Prisão Classe.)
Reconhecer a dimensão moral da sorte é uma atitude revolucionária que desnuda privilégios e desconstrói hierarquias. Não por negar nossa autonomia ou liberdade individual. Não por negar nossa responsabilidade por nossos atos ou suas conseqüências. Mas por reconhecer que, assim como ninguém “merece” ser sem-teto, ninguém também merece ser bilionário. Somos todas produto de circunstâncias fora de nosso controle.
As pessoas ricas não reconhecem sua sorte pelo mesmo motivo que não reconhecem sua riqueza: para não levantar questões desagradáveis que não querem responder. Afinal, se tudo foi sorte, o quanto devem, pessoalmente, às pessoas que tiveram menos sorte?
(A próxima aula do Curso das Prisões, Prisão Patriotismo, acontece na quarta, 31 de maio de 2023, às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
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Quando falamos "eu mereço", o quê merecemos?
Sempre que usamos a frase “eu mereço” é porque estamos prestes a fazer besteira. Pior: normalmente, uma besteira relacionada ao consumo.
Não dizemos “eu mereço comer uma deliciosa e saudável saladinha orgânica”, e sim “eu mereço tomar um milkshake desta mega corporação que paga mal seus funcionários e faz propagandas que remetem à felicidade e padrões de sucesso”. Não pensamos “eu mereço ir caminhar pela praia numa manhã fresca”, e sim “eu mereço passar o dia inteiro maratonando seriados babacas e cheios de violência.”
Nossas vidas são programadas para que essa frase seja seguida de consumo. Todo dia merecemos enfiar o pé na jaca porque o trabalho foi duro (se não fosse duro, não seria trabalho) ou porque estamos engolindo sapos, ou porque finalmente chegaram as férias. Uma vida que nos esgota menos também nos faz precisar compensar menos. De forma bem prática, vivendo com menos dinheiro e menos demandas, deixamos de “merecer” o consumo, pois ele se torna menos necessário.
(Esse será um dos temas da Prisão Trabalho, em julho.)
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O que é merecer?
Uma vez, andando de mãos dadas com minha então-namorada e hoje grande amiga Carol, em meio a um dia absolutamente perfeito, ela suspirou, feliz:
— Você acredita que, até pouco tempo atrás, eu achava que não merecia um dia tão lindo e tão incrível, uma felicidade tão gostosa como essa?
E eu, apesar do medo de estragar nosso dia perfeito, comentei:
— Mas não merece mesmo.
O que seria isso de "merecer"? Merecer como? Merecer por quê? Como alguém faria para merecer essa felicidade? Mais importante, o que faria alguém des-merecer?
Achar que não merecemos ser felizes é péssimo, mas achar que merecemos é quase tão ruim quanto, porque ainda estamos presas na mesma falsa dicotomia. Afinal, se eu mereço esse dia tão perfeito é porque existe gente que não merece. Quem são essas pessoas? O que elas fizeram? Ou, pior, se tem gente que merece um dia perfeito também tem gente que merece um dia trágico: meu amigo surfista Fábio mereceu o dia em que capotou com o carro e perdeu o braço? (Ele hoje surfa com uma prótese de pé de pato.) As pessoas pobres mereceram ser pobres? As pessoas com câncer mereceram seu câncer?
Todas temos dias bons e ruins: eu não mereço nem o dia perfeito com a minha namorada nem o dia trágico em que perdi o braço. Merecimento não entra na questão. O universo me dá uma mão de cartas e me questionar se mereci ou não essas cartas não me ajuda em nada a fazer o melhor jogo possível com elas. Pelo contrário, na pior das hipóteses, se acho que não mereço, fico insegura, com baixa auto-estima, paralisada; na melhor das hipóteses, se acho que mereço, fico arrogante, complacente, paralisada.
A introspecção é sempre paralisante: além de egocêntrica e narcisista, ela não me coloca nem um passo mais perto de aprender a lidar melhor com as circunstâncias da minha vida, sejam elas positivas ou negativas. Para mim, a ideia de "merecimento" parece competitiva e capitalista, hierárquica e fatalista. Prefiro abandonar o conceito. Eu não mereço nada.
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A dimensão moral da sorte
Não falo em “mão de cartas” à toa. Poucas atitudes podem ser mais políticas e revolucionárias do que reconhecer a dimensão moral da sorte.
Fiz boa parte da minha pesquisa de mestrado e doutorado em Cuba. Estive no país inúmeras vezes, trabalhei, fiz pesquisa, publiquei livro, palestrei. Amo Cuba. Quando estive em Cuba em 2016, lançando a edição cubana da Autobiografia de Juan Francisco Manzano nas feiras do livros de Havana e de Matanzas, surgiu a oportunidade de finalmente morar lá, dando aulas de português no ano letivo de 2016-2017. Mas eu não quis.
Em Cuba, tenho amigas e leitoras, colegas de trabalho e parceiras de pesquisa, já visitei suas casas, já lhes trouxe papel higiênico do Brasil, conheço na pele as dificuldades. Graças ao criminoso bloqueio estadunidense que permite que a ditadura tenha a desculpa perfeita para se eternizar no poder, a vida em Cuba é dura, é difícil. Eu, hoje, sendo a pessoa que sou, teria uma vida pior em Havana do que no Rio de Janeiro.
Mas se você me perguntar onde eu preferiria nascer de novo, se em Cuba ou no Brasil, eu responderia sem hesitar Cuba. Porque, nascendo no Brasil, minhas chances de não ter esgoto tratado, passar fome, dormir na rua, não ter acesso a livros, morrer de tiro, são muito grandes – podemos debater o quão grande, mas é grande. Em Cuba, é quase zero para todas elas. No Brasil, só tem uma vida digna quem deu muita, muita sorte.
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A dimensão moral da sorte
Reconhecer o impacto existencial da sorte é desconstruir na base um dos mitos mais poderosos da contemporaneidade: a meritocracia. As nossas pessoas ricas, ao mesmo tempo em que as pessoas ricas fazem de tudo para não admitir que são ricas, também adoram enfatizar seu mérito por suas próprias conquistas. Aliás, não são dois movimentos simultâneos, mas o mesmo movimento: não tem como criar a narrativa de sua própria ascensão vitoriosa se ela começa com um empréstimo do seu próprio pai ou se você trabalha na empresa de sua família.
Poucos exemplos são melhores do que essa matéria da Veja: “Luciana Salton: Sobrenome não garante emprego”, cujo lide é “A diretora executiva da vinícola que leva o sobrenome de sua família fala de sua atuação e do grande impacto da quarentena no mercado de vinhos”. O grotesco é tão escancarado que quase parece ironia intencional da repórter. Já o ex-presidente Donald Trump deu o pontapé inicial em sua duvidosa carreira de empreendedor com um empréstimo de um milhão de dólares de seu pai e outro, de nove milhões, dando sua futura herança como garantia.
Nesse sentido, cutucar pessoas ricas e bem-sucedidas e lhes lembrar da importância da sorte em suas vidas, como o escravizado que seguia os vitoriosos generais romanos, é considerado quase um insulto, pois equivale a minar sua própria tão bem construída autonarrativa: “memento mori”, diziam os escravizados aos generais, ou seja, “lembre-se que vai morrer”. “Memento fortuna”, diria eu: “Lembre-se que foi sorte”.
As pessoas ricas não reconhecem sua sorte pelo mesmo motivo que não reconhecem sua riqueza: porque fazer isso levantaria questões desagradáveis que não querem responder. Afinal, se tudo foi sorte, o quanto devem, pessoalmente, às pessoas que tiveram menos sorte?
Via de regra, quanto mais acreditamos em nosso mérito, ou seja, em nosso controle sobre as circunstâncias de nossa vida, mais aceitamos que as pessoas merecem as vidas que têm e, portanto, mais nos conformamos ao status quo. Por outro lado, se reconhecemos que nossas vidas são largamente determinadas por eventos fora de nosso controle, então é mais provável de sentirmos compaixão e de enxergarmos com generosidade aquelas pessoas que não tiveram a mesma sorte que nós. Em outras palavras, se reconhecemos o papel preponderante da sorte no destino das pessoas, então, aliviar o sofrimento causado pela má sorte transforma-se, por si só, em um projeto moral.
Desconstruímos o discurso meritocrático quando reconhecemos o quanto do nosso mérito foi pura sorte, uma sorte que já começa antes mesmo de nascermos.
Nos Países Baixos, a geração de crianças nascida de mães subnutridas durante a ocupação nazista é até hoje mais baixa e menos saudável do que as gerações anteriores e posteriores. Existem pessoas idosas ainda hoje sofrendo os efeitos da fome que suas mães passaram durante a gravidez em 1944.
Nós não somos responsáveis pelas circunstâncias que envolveram nossa concepção, a gravidez de nossas mães e nossos primeiros anos. Nada disso não é nem nosso mérito nem nosso demérito. Ainda assim, essas circunstâncias determinam, em grande medida e de várias maneiras diferentes, o sucesso que teremos na vida.
Discute-se muito se somos mais influenciadas por nossa genética ou por nosso meio ambiente, mas, na prática, ambos simplesmente acontecem conosco por pura sorte ou azar. vários estudos demonstram que os cuidados que recebemos em nossas primeiras horas, dias, meses, anos de vida são fundamentais para determinar nosso temperamento e como vamos reagir aos imprevistos da vida, se seremos otimistas ou pessimistas, autoconfiantes ou inseguros, etc.
Então, digamos que eu considero que mereço meu sucesso porque, afinal, sou uma pessoa que enfrentou todos os desafios da vida com otimismo e autoconfiança. Bem, o quanto desse otimismo e autoconfiança foi mérito meu e o quanto foi simplesmente eu ter tido a sorte de nascer de pais que fizeram tudo certinho para estimular essas características durante os meus primeiros anos de vida?
Em outras palavras, é fácil ver que a herdeira da Salton, trabalhando na empresa da própria família, ou Trump, que começou nos negócios com o empréstimo do pai, não se fizeram “por conta própria” mas sim contaram com a substancial ajuda de uma herança.
Mesmo para nós que não herdamos grandes fortunas, entretanto, também é importante nos darmos conta que tudo o que somos, nosso temperamento, nosso otimismo ou nossa insegurança, também foram igualmente herdados.
Não estou dizendo aqui que não podemos mudar. Se não pudéssemos, esse próprio Curso das Prisões perderia a razão de ser. Nosso livre-arbítrio para nos autoconstruirmos será o tema de uma das últimas e mais importantes Prisões, a Prisão Liberdade. Pois nossa herança, ao nascer, é um dado: nossas ações, ao longo da vida, é que podem ou multiplicá-la ou extingui-la.
Poucas desculpas, para qualquer coisa, sejam positivas ou negativas, podem ser mais patéticas do que “fui criada assim”. Por óbvio, todas nós fomos criadas de um determinado jeito. E, mais obviamente ainda, todas nós podemos, em larga medida e dentro de certas limitações, tentar nos recriar para sermos pessoas diferentes.
Nossa criação não é uma âncora que nos condena a nunca navegar para longe daquele pequeno círculo que nossos pais e as circunstâncias da vida moldaram para nós. Pelo contrário, e trocando de meio de transporte no meio da metáfora, nossa criação é uma pista de pouso e decolagem. Cada uma de nós recebe uma pista diferente, algumas bem mais acidentadas que outras – uma boa definição de privilégio é a qualidade de nossa pista. Ao longo da vida, podemos tentar asfaltá-la, ou, pelo contrário, deixar esburacar. Tem gente que fica taxiando na pista a vida inteira e nunca nem tenta decolar. Tem gente que decola aos trancos e barrancos, e se espatifa. Tem gente que voa. Mas se eu não acreditasse que todas nós podemos ao menos decolar, não faria sentido escrever um livro sobre as Prisões. Reconhecer a dimensão moral da sorte é enxergar que nem todo mundo teve uma pista de decolagem tão plana e bem asfaltada como a nossa. Se estamos voando, o que devemos a quem ainda está tentando decolar?
Reconhecer a dimensão moral da sorte é uma atitude revolucionária, que desnuda privilégios e desconstrói a ordem estabelecida. Não por negar nossa autonomia ou liberdade individual, não por negar nossa responsabilidade por nossos atos ou pelas conseqüências que colhemos deles, mas simplesmente por reconhecer que, assim como ninguém “merece” ser sem teto, ninguém também merece ser bilionário. Somos todas, em larga medida, o produto de circunstâncias fora de nosso controle.
A verdade é que somos maquininhas de inventar justificativas para os nossos comportamentos. Quando fazemos tudo certo, o mundo precisa reconhecer isso e nos premiar — ou é muita injustiça! Quando agimos errado, é porque foi um lapso, uma fraqueza, uma exceção, e o mundo precisa reconhecer isso e nos entender — ou é muita injustiça! De um modo ou de outro, julgamos as outras pessoas por suas ações e queremos ser julgadas por nossas intenções.
Mas o que acontece quando invertemos isso? No budismo, um bodisatva é a figura mítica que se iluminou, mas que se recusa a entrar no nirvana até que todos os seres sencientes se iluminem também. Nós também, em nossas vidas, podemos nos recusar a aceitar a desigualdade, a injustiça, o azar. Especialmente da Outra pessoa.
(Esse texto parafraseia trechos do artigo "The radical moral implications of luck in human life", de David Roberts, publicado na Vox, em 17 de fevereiro de 2020. Falo mais sobre a importância política da figura do bodisatva na introdução do meu livro Atenção.)
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em abril, nosso tema foi a Prisão Classe. (Esse texto faz parte das reflexões surgidas em nossas conversas.)
Em maio, estamos conversando sobre a Prisão Patriotismo. Nossa aula expositiva acontece na quarta, 31 de maio de 2023. Antes disso, estamos debatendo sobre Classe e Patriotismo nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp.
Sim, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?
Excelente como sempre os seus textos Caro Alex ...vivendo e aprendendo hoje e sempre contigo, abraços-luz-amor e paz
amei amei amei
queria sair na rua gritando pra todo mundo ler esse texto